Hegemonia da força
Créditos da imagem: Joedson Alves / EPA
Por Kim Taiuara[1]
Pode parecer inadequado e incoerente falar de uma hegemonia da força, como se força e hegemonia fossem momentos mutuamente excludentes da supremacia de alguma classe. Porém, em verdade, não o é. A direção intelectual e moral em momento algum dispensa por completo o uso da coerção; a hegemonia jamais se desembaraça plenamente da ditadura. Tampouco é possível falar de direção baseada exclusivamente na força, na coerção, na ditadura. Ocorre, no entanto, que a relação entre força e consenso se dá de maneira variada ao longo das conjunturas e da história.
Há momentos em que o exercício da hegemonia não tem como expediente preferencial o uso da força, mas, pelo contrário, predomina o consenso, ainda que sem abrir mão de doses coercitivas, inclusive, muitas vezes nem tão evidentes como a sua presença indica. Em outros, o emprego da força para a garantia de certa direção se exacerba sensivelmente, agiganta-se a olhos vistos, suplanta os mecanismos que articulam o consenso. Dominam a direção.
Mas Gramsci chama a atenção para algo importante: a força não pode predominar em muito sobre o consenso. Ela deve parecer apoiada nele e por ele ser legitimada. Isto é, deve ser força tornada consenso.
O que estamos a acompanhar na conjuntura presente é exatamente isso: o uso destacado das funções de domínio para o exercício da direção, no entanto, numa curiosa operação em que a força das ideias é a ideia da força, em que a coerção compõe o consenso.
Vejamos. Cotidianamente temos nos deparado com declarações das mais diversas e vindas de distintos cantos que, ao mesmo tempo que acintosas, informam sobre a disposição de uso da violência mais aberta como um dos componentes do projeto hegemônico, isto é, da articulação de um novo consenso, de uma nova direção intelectual e moral. Saudações à ditadura, ameaças à imprensa, desprezo pelas instituições, menções ao nazismo etc. são feitas corriqueiramente, talvez, como um teste para saber a nota, talvez como uma artimanha para nossa distração. Mas, se ao final a nota não é tão ruim, se a reprimenda é pouca ou nenhuma, os preparativos para se tirar a prova prosseguem em marcha e, dessa forma, o que era intolerável não é mais tanto assim, o que era ataque agora é liberdade de expressão, o que era execução agora é excludente de ilicitude.
Há, aparentemente, uma coerção consensual e um consenso coercitivo.
Por esse caminho a barbárie flerta e o seu flerte é aceito, convidado, desejado. As ameaças continuam e o que é ameaçado, na verdade, é a possibilidade de nossa democracia se esgarçar para nela caber um recuo democrático ou uma espécie de novo AI-5, como disseram.
A democracia mantém-se, mas o que se mantém é um arremedo de nossas ilusões que, resistindo num limite de tensão, desencobre a tênue película sob a qual a ditadura deslizou, nela armando-se – nem tão silenciosamente assim – e dela se revestindo para dirigir uma vontade coletiva reacionária, para exercer consensualmente seu domínio autoritário.
Nesse quadro, a exceção passa a compor não só a regra – não exatamente uma novidade entre nós -, mas também a estruturar uma direção amparada no consenso, no convencimento de sua necessidade como norma e como vontade coletiva. Amplia o seu espaço de aceitação, força as fronteiras da democracia para que no seu terreno ela possa ser não apenas um “estado de exceção”, mas sim uma exceção democrática, social e moralmente exercida, constitucional e legalmente adotada. Por essa operação atípica as massas estão sendo aos poucos – e não é de hoje – enredadas num consenso autoritário, dando, gradativamente, bases mais ampliadas a uma direção restrita, universalizando – nem tão lentamente – uma ideologia particular, realizando em força material uma concreta antifilosofia.
Da parte da “esquerda responsável” ouvem-se protestos, gritos e até ameaças de partir para cima. Mas, voltando a si, ela reconsidera, mantém a calma e pede cautela para evitar os excessos, para não dar motivo, os “tiros no pé”. Assim, combate-se recuando, resiste-se desistindo, exige-se respeitando e rompe-se conciliando. Mais uma vez, revela-se a capacidade hegemônica das classes dominantes mesmo ante os seus supostos antagonistas, cuja assimilação ao campo da luta política admitida por aquelas indica, por um lado, a estreiteza da atuação destas e, por outro, a sua função subalterna (auxiliar) no exercício da hegemonia das classes dominantes.
O exercício da força como hegemonia se faz tão violenta e insistentemente que aos poucos vai sedimentando-se no consenso, alargando-o para nele se acomodar, pacificando-se para ser sempre útil, naturalizando-se para nunca mais nos deixar em paz.
A coerção não é um elemento exterior, autônomo, nem apenas se relaciona com o consenso de maneira historicamente variável. Na condição em que estamos refletindo aqui ela se apresenta de modo qualitativamente diferente: coerção é consenso. É exterior, mas não totalmente. É relacionada, mas não só. Ela é consenso, pois o transpassa, preenchendo-o por dentro, alicerçando-o por fora e por ele sendo alicerçado. Não o é em sua inteireza e nem identidade. É parte e síntese de uma direção em processo, de um consenso em elaboração.
Ao que resulta o aparente paradoxo do exercício da coerção pelo consenso, da ditadura pela democracia, da imposição pelo diálogo, da força pela hegemonia. Ou, em outras palavras, da hegemonia da força.
Esta é somente uma dimensão do nosso problema, mas que me parece fundamental.
[1] Assistente social, militante da UJC e do PCB.