Brasília – Onde foi que se errou?

Várias das cidades concretizadas encontram-se ao longo do que então era a Rodovia Transbrasiliana, hoje incorporada à denominada Belém-Brasília. Seriam cidades do trabalho, da produção agropecuária. Goiânia e Anápolis por sua vez deveriam constituir um eixo de industrialização do ferramental necessário a tais atividades e de beneficiamento da produção dessas novas cidades. Encarregado da elaboração do plano diretor de tal eixo pelo governo Mauro Borges foi o eminente professor Luis Saia, de São Paulo.

Esses projetos, assim como o de Atílio Correia Lima para Goiânia, consideravam em muito as teorias das cidades-jardins inglesas. Consideravam a contradição cidade/campo à luz da contradição habitação/trabalho tendo como forma de viabilização o cooperativismo. Considerando fundamentalmente a centralidade do fator trabalho quando do planejamento urbano e territorial e questionando a propriedade do solo e dos imóveis, foram as garden-cities inglesas as principais referências para as realizações dos regimes trabalhistas no mundo. Primeiro para a antiga União Soviética, depois para países marcados pela reconstrução após a Segunda grande Guerra e também para países do chamado Terceiro Mundo. Floresceram nessas novas cidades as teorias da unidade de vizinhança e da cidade para o trabalho.

Despontava assim um novo enfoque da relação entre povoamento e territorialidade no Brasil. Enfoque que iria se ampliar com a política de regionalização e de planejamento nacional defendida por Celso Furtado. Dentro desse contexto maior, Brasília seria simplesmente uma Washington brasileira, uma cidade administrativa, capital do país e não uma urbs qualquer. Um enfoque que preparava terreno para um real Pacto Federativo da República.

Ouvi certa feita de Paul Baran que o planejamento é a tábua de salvação do reformismo. Referia-se à positivista ordenação de situações, já em si positiva quanto à anarquia gerada por casuísticos interesses das chamadas leis de mercado. Ao positivismo falta, no entanto, o interesse pelo conhecimento da mudança, da transformação. Esse o erro maior em relação à Brasília. Trucidaram no nascedouro os instrumentos de ampla participação na aferição das implicações da aplicação de seu projeto. Sindicatos e partidos políticos progressistas foram manietados pelo braço armado das elites. Por imposição de interesses externos o Brasil viu-se forçado a desmontar seu aparelho de planejamento e adotar o desenvolvimento do tipo gota de óleo que vertido sobre São Paulo se acreditava espraiar suas benesses sobre o resto do país. Órgãos de planejamento e coordenação regional, como a SUDENE, foram vitimados por iniciativas casuísticas e privatizantes. Passou a valer a ótica neoliberal. Por fim, face ao adiantado estado de infestação desses organismos, no dizer de Tânia Bacelar, ao invés de se extirpar os bernes preferiu-se matar a vaca.

Afastados das atividades de planejamento a centralidade do fator trabalho e o questionamento da propriedade privada do solo, dos imóveis e dos meios de transporte, escancarou-se a porta para a especulação imobiliária. Corretores, empreiteiros e transportadores ascenderam à condição de elite financeira e política. Tornaram-se deputados, senadores e governadores. Apoderaram-se do Estado. Os partidos e agremiações trabalhistas reduziram sua luta a questões salariais contentando-se em aceitar o planejamento filantrópico da chamada habitação popular. O Ministério do Planejamento reduziu-se a um grande escritório de contabilidade orçamentária.

Planejamento passou a ser coisa de grandes escritórios privados, de consultorias vendendo papel pintado para o governo. O conceito de meio-ambiente viu-se reduzido à consideração de somente metade do ambiente. A universidade foi privada da sua responsabilidade em produzir conhecimento para a solução dos problemas candentes do país. Foi invadida por enfoques fundamentalistas e pela ideologia da não-ideologia, como se essa não o fosse. Não há porque negar que estamos vivenciando uma crise sistêmica.

Face tal quadro, ressalta a questão de como influir na formação de uma consciência coletiva a respeito. É incontestável sermos nós mesmos os instrumentos primeiros de apreensão da realidade externa ao pensamento. Através de nossos sentidos, ativados pela observação e contemplação, é que a realidade vem a nós. Acontece que pensar observando e/ou observar pensando são formas de trabalho imbricadas com outras formas de trabalho; de ação recíproca com o meio ambiente e com os nossos semelhantes. Somos na essência ativos seres sociais. Contentar-se com os enfoques vitalistas para agir, transformando-nos através da transformação do real, é limitar-se a somente uma das categorias da consciência.

Limitar o chamado planejamento físico a uma questão de ordenamento dos lugares da vida é insuficiente para a melhor interação entre a mesma e seu cenário. Sem a centralidade do fator trabalho e o questionamento da propriedade privada dos lugares da vida, estaremos simplesmente favorecendo a mercantilização dos mesmos em detrimento de seu valor de uso.

É brilhante o esclarecimento de Marx caracterizando os lugares da vida como o lócus standi (o lugar em que se atua); como meios indiretos de produção. Abre assim as portas do conhecimento para a mais plena interação entre a vida e seu meio ambiente. Torna assim toda a forma de planejamento de interesse das classes trabalhadoras. E não é por acaso que as experiências de planejamento abençoadas pela História são aquelas que se deram por força de reivindicações e participação trabalhistas.

Abaixo a especulação imobiliária! A cidade e o campo são os lugares da História, da luta de classes também em termos de planejamento. Ele se torna diferente do planejamento positivista na medida em que seu objeto social assume a condição de sujeito do mesmo.

Frank Svensson é professor titular aposentado da FAU/UnB e membro do CC do PCB.

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