Capitalismo, crise e caos social
Charge: Mauro Iasi
Luís Fernandes – professor de História e membro do Comitê Central do PCB
Crise, colapso social e o exercício desigual da soberania dos Estados: o esforço de uma reflexão militante
O avanço da pandemia do coronavírus (COVID-19) e as disputas na geopolítica do petróleo entre Rússia e Arábia Saudita anteciparam uma grande turbulência na economia capitalista global. Para os principais organismos internacionais e economistas, a desaceleração ou até mesmo a recessão do PIB mundial, no primeiro trimestre de 2020, está dada. Diferente de 2008, a crise é acompanhada por sensações apocalípticas de amplos setores da sociedade em função da desinformação, sucateamento de sistemas públicos de saúde e a incapacidade dos Estados nacionais de coordenarem e planejarem medidas efetivas de combate ao custo social em curso.
Além de ocorrer uma grande queima de capitais fictícios nas bolsas de valores, se o novo vírus parece ser inofensivo para os jovens, entre os idosos as taxas de mortalidades e internação são significativas. Tirando os casos de Estados com planejamento central como China, Cuba e Vietnã, a maioria dos infectologistas já reconhecem que as medidas de controle da pandemia nos países ocidentais são insuficientes. Ou seja, a atual crise evidencia cada vez mais os limites civilizatórios da acumulação e reprodução mundial do capitalismo. Seguindo os clássicos do marxismo, o capital é valor que busca se valorizar incessantemente e as crises cumprem um papel de “queimar” capitais em excesso, assim como forças produtivas, incluindo trabalhadores.
Para muitos articulistas liberais de direita e esquerda diante do predomínio da atividade financeira, a lei do valor desenvolvida por Marx estaria ultrapassada para se compreender a dinâmica contemporânea capitalista. A economia financeira existe muito antes do neoliberalismo. O próprio Marx, em seu tempo, já identificava, em seu tempo, a existência de capitais que tinham como finalidade não a troca de diferentes valores de uso, mas a simples valorização do valor. O que é peculiar a esse capital é a forma externa de retorno, apartada do ciclo mediador. O capitalista que cede o empréstimo aparta-se de seu capital, transfere-o ao capitalista industrial, sem receber em troca um equivalente. Sua cessão não constitui de modo algum um ato do processo cíclico efetivo do capital, mas o introduz mediante o ciclo que o capitalista industrial tem de realizar. Essa primeira mudança de lugar do dinheiro não expressa nenhum ato da metamorfose, nem compra nem venda. O que constatamos no capital portador de juros, tanto na devolução como na cessão do capital, é mero resultado de uma transação jurídica entre proprietário do capital e uma segunda pessoa. O que vemos é apenas cessão e devolução. Tudo que se encontra entre esses dois polos se esfuma.
Segundo Marx, a exteriorização da relação capitalista sob a forma do capital portador de juros gera novas funções para os bancos e instituições financeiras. Essas instituições econômicas absorvem bolsões de dinheiro inativo onde quer que estejam e os convertem em capital-dinheiro ao emprestá-los a qualquer um que esteja interessado em aproveitar oportunidades lucrativas de investimento. Na posição de intermediárias, as instituições financeiras agem como o capital comum da classe capitalista. Elas desempenham um papel decisivo na aceleração da equalização da taxa de lucro, retirando fundos daqueles que trabalham com setores econômicos de baixa rentabilidade e redirecionando-os para onde quer que a taxa de lucros seja mais alta. Também têm certo poder de criação de dinheiro, independentemente de qualquer aumento na vazão de valor.
O estouro das bolsas, com as devidas mediações, é o estouro da lei do valor. Trata-se de um afastamento crescente entre valor realizado e valor prometido, tornando-se um grande risco para o grande capital, em especial quando os grandes especuladores percebem que sua expectativa de lucratividade não poderá ser honrada, em outras palavras, quando as mais-valias financeiras jamais poderão ser realizadas por falta de mais-valia suficiente na produção. Esse crescente descolamento e formação de grandes bolhas financeiras possuem determinações multicausais e complexas, já esmiuçadas por alguns economistas marxistas como Michael Roberts e Eric Toussaint. No entanto, nesse pequeno texto de esforço militante destacamos o papel da dívida privada, os seus elos com a geopolítica do Petróleo e o ciclo de juros baixos.
O papel da dívida privada das corporações
No dia 10/03, foi publicado um curioso artigo no Financial Times, assinado pela articulista Ranna Foroohar, onde se afirmava que a dita recuperação da economia norte-americana pós 2008 dependeu de bolhas de ativos para sobreviver. Isto é, a política de estímulos monetários nos EUA geriu uma economia que dependia de juros baixos para puxar o preço dos ativos. A crescente desindustrialização, estagnação da produtividade e compressão dos salários potencializaram o avanço das desigualdades sociais no centro do capitalismo. Já as políticas de injeção de trilhões de dólares no mercado financeiro por parte dos governos engordaram a rentabilidade do grande capital.
Antes mesmo do avanço da epidemia e da crise nos preços do petróleo, a economia mundial já dava sinais de desaceleração. A economia estadunidense crescia em média apenas 2 %, a Itália, tão afetada pelo vírus, enfrentava 17 meses seguidos de declínio de sua produção industrial, a UE e o Japão, esse último com todo estímulo de juros negativos, cresciam apenas 1%. Enquanto isso, os países ditos emergentes (com exceção da China), como o Brasil, vivem um ciclo de estagnação e fuga de capitais. Se, em 2008, o estouro da bolsa se deu a partir dos títulos podres ligados ao mercado imobiliário, em 2020, grande parte do pânico nos mercados financeiros, além das instabilidades típicas do capitalismo de cassino, também se deve à difícil equação para o refinanciamento da dívida privada das empresas, em especial as de grande capital.
Quando falamos de grande capital, nos referimos ao capital financeiro hipercentralizado na atual etapa neoliberal de acumulação. A partir de dados de 2009, coletados do periódico “Financial Times”, constatamos o alto grau de concentração e centralização dos capitais. Grandes empresas controlam a maior parte do mercado mundial. Por exemplo: 10 grandes empresas farmacêuticas controlam 69% do mercado; no ramo de automóveis, as 10 maiores controlam 77%; no setor de equipamentos de telefonia móvel, as três líderes dominam 77% do mercado; e o caso mais espantoso é nos aviões comerciais de grande porte, onde duas empresas controlam 100% do mercado mundial.
Sendo assim, os dados de endividamento das grandes corporações são alarmantes. Segundo reportagem recém divulgada no “Valor Econômico”, empresas não financeiras de países imperialistas e dos “emergentes” precisam refinanciar cerca de 1,3 trilhões de dólares em 2020. Em 4 anos, a fatura a pagar é de 4,4 trilhões. Para manter a sua rentabilidade, essas empresas necessitam ampliar sua margem de lucro num cenário de retração da atividade econômica. Em 2019, o montante total da dívida privada das corporações alcançou 13,5 trilhões de dólares, duas vezes mais que em 2008! A maior parte dessa dívida (mais de 10 trilhões) está concentrada em países da OCDE.
Nos EUA, um dos setores mais endividados é o da produção de petróleo. Desde 2008, esse país deixou de ser um dos maiores importadores de petróleo para se tornar o segundo maior exportador do produto do mundo, graças à utilização de uma técnica chamada fracking [faturamento hidráulico], que permitiu enorme aumento da produção. A política de juros baixos e grande liquidez do mercado de capitais ajuda a prosperar essas empresas. A ação da Rússia, que fez desabar o preço do petróleo, fundamentalmente, foi uma resposta ao cerco e às sanções norte-americanas através de um ataque econômico aos EUA, tendo em vista que o mercado financeiro é o grande credor dessas empresas petroleiras e o risco do não pagamento das dívidas aumentou.
Para além da questão geopolítica em si, podemos suspeitar que, diante do aumento da produção de petróleo nos EUA e da descoberta do pré sal no Brasil, há uma superprodução de petróleo acompanhada da diminuição do tempo de trabalho necessário para a produção dessa mercadoria, fazendo reduzir o seu valor, mas, até então, por outras determinações, mantendo preços altos. Cenário que pode se repetir também com outras mercadorias e cadeias produtivas.
Sendo assim, longe de esgotar o tema, há uma clara tendência do ponto de vista do capital a pressionar no curto, médio e longo prazo a pressão por extração de mais valia dos trabalhadores, principalmente relativa, através de investimentos em produtividade nos centros imperialistas, como na Alemanha e Japão, ou mesmo absoluta, com o avanço da total desregulamentação do mundo do trabalho e expropriações variadas na periferia do capitalismo. Essa tendência entra em contradição com a necessidade de realização da massa de mais valia, isto é, através da circulação de mercadoria. O trabalhador, no capitalismo, além de produz a riqueza também é fonte da realização de sua exploração, através do consumo. Nesse sentido, a atual dinâmica neoliberal de acumulação impõe uma drástica redução da chamada demanda efetiva no mundo.
A crise e o exercício desigual da soberania dos Estados
Além da lei do valor, a atual crise sistêmica tende também a atenuar outra tendência do capitalismo, em sua fase imperialista: o seu desenvolvimento desigual. A dinâmica do desenvolvimento desigual do capitalismo também se relaciona com as diversas formas políticas do Estado capitalista. Na atual fase de mundialização financeira, apesar do desmantelamento de estruturas políticas e econômicas estatais, para o grande capital financeiro o Estado segue sendo um instrumento fundamental para garantir as condições gerais de sua reprodução e, mais do que isso, necessita de um sistema interestatal para garantir a atual etapa de mundialização financeira. Segundo o intelectual marxista latino americano Jaime Osório, é essencial para o sistema mundial capitalista operar com o exercício desigual de soberania entre os centros e periferias. Mais do que uma divisão ou deslocamento do poder, houve uma tremenda centralização e reforço das hierarquias no sistema imperialista.
Mesmo no interior do campo imperialista, é possível identificar que, por exemplo, os EUA possuem muito mais mecanismos para enfrentar a crise capitalista, se comparado a outros países como a Alemanha e o Japão. Ao possuírem a hegemonia do dólar, maior força militar e serem considerados o grande porte seguro para os capitais, os EUA conseguem drenar grande parte dos capitais e da mais valia produzida no capitalismo, mesmo num cenário de recuo de seu setor industrial e aumento das desigualdades. Esse exercício desigual de soberania que repercute em diferentes instrumentos de política econômica entre os Estados imperialistas também merece maior atenção e estudo.
No Brasil, nos últimos dias, se ensaiaram algumas dissidências no interior do pensamento liberal sobre a atual agenda austera e de contrarreformas econômicas, administrativas e sociais. Segundo a economista ligada ao instituto Millenium, Monica de Bolle, com a mudança de cenário o governo deveria adotar medidas contracíclicas, a partir da PEC do teto dos gastos públicos. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, em entrevista para a famigerada neoliberal Miriam Leitão, defendeu que o país deveria adotar algumas medidas emergenciais para a crise, sem abandonar, claro, a agenda de reformas.
Entre os chamados heteredoxos e intelectuais progressistas, seriam flagrantes a incompetência e a insensatez de tais ideias austeras, predominantes nos meios de comunicação, economistas e agentes do Estado, levando, notoriamente, o país para um enorme desmonte e abismo social. O que devemos notar é que, desde 2015, ainda sob governo Dilma, a ideia de um “Estado falido”, “crise fiscal” e a necessidade de reformas do Estado a fim de que a Constituição “caiba no orçamento” ganhou imenso terreno e hegemonia nas políticas governamentais.
Se essas políticas, em grande parte, estão nos levando para uma nova “década perdida” em termos de crescimento, reprimarização econômica e mudanças significativas em nossa pauta exportadora, elas também garantiram o avanço da desnacionalização econômica, a centralização de capitais, aumento das margens dos lucros das maiores empresas não financeiras e a valorização de ativos financeiros. A história do neoliberalismo já nos mostra que a rentabilidade dos capitais não necessariamente leva a desenvolvimento, geração de empregos e promoção de direitos sociais, muito pelo contrário.
Sem menosprezar possíveis disputas interburguesas, está nítido que a insistência de Guedes, Rede Globo e outros agentes na importância das “reformas” para combater a crise é mais uma constatação dos vínculos do atual governo e do remodelamento do Estado dependente com os interesses do grande capital financeiro internacional, em associação com parte da burguesia brasileira que lucra com o processo de centralização de capitais em curso.
Para além das pautas pela revogação do teto de gastos, contrarreformas da previdência e trabalhista, é de suma importância que as forças populares apresentem uma plataforma de lutas concretas contra o neoliberalismo, que reforce a lógica de promoção de direitos, direito ao trabalho, estatização de empresas públicas estratégicas, fortalecimento dos bancos públicos como promotores do desenvolvimento social, planejamento estatal e investimento público direto, com o controle progressivo dos capitais, em especial o especulativo curto-pracista.