A pandemia e a economia da morte

imagemSócrates Menezes*

O mundo se encontra hoje precisamente entre duas pandemias. A primeira está no campo das condições sanitárias globais, precarizadas e dilapidadas por, pelo menos, quatro décadas de políticas neoliberais. Estas que possibilitaram um surto viral se tornar pandêmico e assassino, dada a incapacidade absurda dos sistemas nacionais de saúde tratarem seus doentes infectados pelo novo coronavírus. Como aponta Mike Davis, só nos EUA, atual epicentro da crise (citando um país de economia central), o histórico enfraquecimento do sistema de saúde, que absorveu cegamente a cartilha just in time da produtividade neoliberal, causou a redução em 39% da quantidade dos leitos hospitalares entre os anos 1981 e 1999. Atualmente, os 45.000 leitos dos hospitais americanos, representam um número caoticamente trágico frente a projeção de um milhão de infectados no país. Essa incapacitação do sistema de saúde na principal economia global foi criada por uma lógica muito simples: os hospitais particulares (empresas lucrativas) tiveram que implementar a política de “corte de gordura”, fechando leitos ociosos (mas providenciais nos recorrentes surtos virais, como em 2009 e 2018) para aumentar a taxa de ocupação, reduzindo custos e viabilizado lucrativamente os gastos privados.

A segunda pandemia, não menos desastrosa, está no campo da “racionalização capitalista” da crise. Foi com muita perplexidade que os ouvidos mais sensatos e preocupados com a vida das pessoas escutaram os clamores de algumas de suas principais lideranças políticas e econômicas: o absurdo de que “a economia não pode parar!”, apesar da crescente morte de milhares pelo mundo. E o discurso se apresentou com um claro tom imperativo sobre a exigência do retorno dos trabalhadores aos seus postos, bem como dos consumidores à suas compras. Inicialmente, o clamor ultraliberal saiu de bocas mais estúpidas. Figuras da importância de Donald Trump, Boris Johnson e Jair Bolsonaro defenderam a normalidade econômica frente à extraordinariedade necrófila que se espalhava pelo mundo. Também figuras empresariais brasileiras, não menos patéticas, como Roberto Justus (apresentador), Lucianno Hang (rede Havan) e Alexande Guerra (rede Giraffas), tentaram compor alguma racionalidade na recomendação contrária àquelas dos órgãos de saúde do Brasil e do mundo.

Logo, logo, algum argumento pseudológico contaminaria o esforço solidário com que a sociedade se mobiliza em torno do isolamento social e em prol da vida humana. Esse movimento, então de caráter claramente elitista-empresarial, ganha corpo político até sair às ruas no que ficou chamado no Brasil de “carreatas da morte”. Isso ocorreu exatamente no mesmo momento em que figuras como Giuseppe Sala (prefeito de Milão, Itália), além do próprio Trump e Johnson, revisaram seus posicionamentos e, vergonhosamente, se renderam a desastrosa realidade pandêmica que se montava à suas caras. A pandemia da (ir)racionalidade do mercado e seu discurso fúnebre então se alastra pelo corpo social colocando frente à frente vida humana versus economia capitalista.

O Discurso e a Realidade da Economia da Morte

O discurso da morte é um incrível absurdo, mas cinicamente “humanitário”: “As consequências que nós vamos ter economicamente, no futuro, serão muito maiores do que as pessoas que vão morrer agora com coronavírus”, “O Brasil não pode parar dessa maneira. O Brasil não aguenta. Tem que ter trabalho. As pessoas têm que produzir, têm que trabalhar…”. “Mas nós não podemos [parar], por conta de 5.000 pessoas ou 7.000 pessoas que vão morrer…”, como alardeou Junior Duski, o dono da rede de hamburgueria Madero. Parece que a burguesia redescobriu a centralidade do trabalho e dos trabalhadores na vida econômica (ao mesmo tempo em que os pós-modernos insistem em um milênio que se recusa a chegar).

O absurdo do discurso empresarial está na admissão da morte de milhares de pessoas para a manutenção da vida econômica do mercado. E é igualmente incrível a falta de pudor, minimamente moral, do discurso. A parte cínica do argumento está na formação histórica da própria condição do trabalhador, agora objeto da suposta preocupação burguesa. Se desempregado, se precarizado, se informalizado, se uberizado, se hifenizado, se miserabilizado…, a situação do trabalhador brasileiro, que sofrerá ainda mais com o influxo econômico capitalista, não tem outra origem senão a rapinagem despudorada que essa elite empresarial, financeira e escravista promoveu ao longo das últimas décadas neste país. Recentemente, basta lembrar que os formuladores e apologetas desse discurso da morte foram os mesmos que se esforçaram em engrossar o apoio à reforma da previdência, à reforma trabalhista e à “PEC da maldade”. Estas políticas admitidas pelo Estado, juntas, retiraram ainda mais os direitos do trabalhador brasileiro, rebaixando seu nível de vida material, além de não ter avançado em nada no problema do desemprego e ter jogado as políticas sociais, inclusive aquelas voltadas para a saúde, a um reduto vergonhoso do Estado.

A impossibilidade de o trabalhador empobrecido pelas políticas neoliberais ficar em casa e ter que se expor à morte pelo trabalho não é nada mais do que produto de uma necessidade própria da forma como a economia de mercado exclui esse mesmo trabalhador dos meios de produção e subsistência. Por parte dos trabalhadores, a reposta seria, de um ponto de vista economicamente lógico, a tomada do controle daquelas empresas que seus donos não conseguirem sustentar durante a longa crise que está por vir. Ora, se a produção é importante, se o trabalho é importante, se o emprego é importante, etc, os negócios fecharão porque os empresários não lucrarão mais e a contento? Exatamente eles, arautos da riqueza nacional, os “produtores”, os responsáveis pela saúde financeira do país, eles que se vangloriam de estar à frente do comando econômico por conta de sua astúcia e inteligência nos negócios, esses mesmos “empreendedores” que nas recessões reverberam para os trabalhadores desempregados que a crise não seria nada mais que “uma abertura de novas oportunidades”, que “a crise está em você”? Obviamente isso não se daria sem uma luta de classes bastante intensa e dentro de um quadro de possibilidades o qual ainda não é possível vislumbrar. Mas o cinismo da burguesia continua sendo, assim como sempre, o último instrumento de disfarce, na patética tentativa de convencimento geral de que os seus interesses privados pelo lucro são uma necessidade social. Eis que isso agora se expõe: a impossibilidade da “mãozinha do mercado” socorrer o próprio mercado.

No entanto, apesar de esdrúxulo, o discurso da morte pela vida econômica expõe uma verdade dramática. Do ponto de vista do capital, as condições atuais da crise econômica estrutural (que se arrasta fenomenicamente desde 2008) não permitem uma paralisação causada por qualquer influxo da produção e do consumo de mercadorias, mesmo que seja em prol da preservação de milhares de vidas. Embora a admissão desse limite do capital, frente às demandas humanas mais básicas pela sobrevivência, tenha vindo de figuras protofascistas, porque elas compõem um projeto de sociedade admitidamente necrófila, descolado de qualquer herança civilizatória do capitalismo moderno, é preciso também reconhecer as contradições do discurso que preza a assimilação entre preservação das vidas pelo isolamento social e, ao mesmo tempo, proteção à economia de mercado. Vinda de vozes aparentemente mais sensatas, da mídia tradicional ou da economia liberal, a cartilha “humanitária” do capital é unívoca: direcionamento de recursos públicos para salvaguardar a vida das pessoas em quarentena pela garantia da capacidade de consumo delas, além do salvamento das empresas privadas ameaçadas de falência. Ou seja, uma solução pouco ousada, pouco criativa, pouco eficaz, que apenas reforça duas certezas: primeiro, a baixa capacidade dos apologetas da economia de mercado entenderem e proporem soluções concretas e reais às crises causadas pelo mesmo sistema que defendem. E segundo: diante do agravamento das condições de trabalho e da vida social geral (quando “tivermos que pagar a conta”, especialmente no Brasil), a necessária construção de alguma alternativa orientada para o controle social da produção, do emprego e do trabalho.

A Natureza Socioeconômica da Pandemia

A Pandemia do COVID-19 se inicia na China, especialmente na cidade de Wuhan, embora seja ainda desconhecida a origem efetiva do novo coronavírus. Ao que tudo indica, tem causas naturais, fruto de seleção natural a partir de interação animal, até o contágio humano; hospedeiro providencial à reprodução do vírus que causa sintomas gripais com agravamento de problemas respiratórios, principalmente em pessoas com baixa imunidade (PERTERSEN; RAMBAUT; LIPKIN, ET. AL, 2020). Portanto, a princípio, trata-se apenas de mais um vírus que, assim como tantos outros, e em outras condições sociais e econômicas, não seria qualquer motivo para alarde sanitário global. Mas sendo Wuhan importante centro comercial (com mais de 11 milhões de habitantes) da segunda maior economia do mundo, propicia um quadro contextual favorável à disseminação viral. Aqui é onde ações humanas, vinculadas à exploração econômica predatória, encontram a potencialidade da natureza liberada, agora de forma destrutiva. Neste contexto, nota-se uma confluência complexa do que significam, mas também exemplificam, essas condições muito específicas e originárias do desenvolvimento desigual do capital. Como observou Alain Baidou, “a China é, assim, um local onde se pode observar a ligação – primeiro por uma razão arcaica, depois moderna – entre uma confluência entre a natureza e a sociedade em mercados malconservados que seguiam costumes mais antigos, por um lado, e uma difusão planetária deste ponto de origem transportado pelo mercado mundial capitalista e a sua dependência de uma mobilidade rápida e incessante, por outro”.

Nessas circunstâncias se encontra, de forma mais desastrosa e contraditória, a relação metabólica primária homem-natureza mediada pela “relação de segunda ordem” do sistema econômico do capital, como escreveria István Meszáros. A lógica é relativamente simples: a natureza não tem uma dinâmica absolutamente própria, ou seja, separada das relações humanas de produção. Relações de produção são, em suma, a forma como os homens se relacionam entre si e com a natureza para garantir sua existência. E isso varia absurdamente ao longo da história: sociedades primitivas, comunais, escravocratas, feudais, modernas e capitalistas, todas elas tem formas específicas de produção (produzir a si mesma, seu mundo e sua natureza). A natureza, além de estar inserida nesse grande complexo da produção social, interage com ela e por ela é produzida, se tornando o que ficou conhecido como “segunda natureza”. Karl Marx já havia dialetizado essa relação: “[O homem] ao atuar, por meio deste movimento [do trabalho], sobre a Natureza externa a ele e ao modificá-la, ele modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza. Ele desenvolve potências nela adormecidas e sujeita o jogo de suas forças ao seu próprio domínio”.

Ocorre que a sujeição das forças da natureza ao domínio humano não é abstrato, genérico… O grande limite do conceito de “meio ambiente” é retirar da natureza o processo histórico humano de produção específico à época em que essa mesma natureza é considerada. Os grandes “desastres naturais”, mesmo que globais, ocorrem apenas porque impactam em condições sociais bem específicas, tanto em relação ao tempo quanto ao espaço. Portanto, não é o “homem” (o ser genérico, comum a qualquer tempo) que provoca problemas ambientais, mas a forma de produção e as condições sociais, materiais e econômicas em que esse homem se encontra diante das suas condições de existência: sua capacidade produtiva de retirar da natureza suas potências e, principalmente, a finalidade do uso dessa capacidade, se para a vida ou para a morte.

Os “desastres naturais”, ou tudo aquilo que se possa culpar a natureza por algo destrutivo ao homem, têm suas origens nas próprias condições humanas. O deslizamento de uma encosta em um bairro periférico de qualquer metrópole diz muito mais sobre a forma economicamente desigual de como a cidade é ocupada do que, propriamente, sobre a chuva torrencial que eventualmente possa cair sobre ela (mesmo que essa chuva tenha origem em algum “desequilíbrio climático”). Como lembra Mike Davis, as doenças endêmicas mais mortais, como a gripe espanhola no início do século do século XX, não seriam tão desastrosas se não encontrassem “um lugar favorável nos acampamentos dos exércitos e nas trincheiras do campo de batalha” da Primeira Guerra Mundial, ou na baixa imunidade dos indianos mais pobres atingidos pela gripe e pela desnutrição: “eles se tornaram vítimas de uma sinistra sinergia entre a desnutrição – que suprimiu sua resposta imunológica à infecção e produziu uma inflamação bacteriana, bem como uma pneumonia viral”. Por isso David Harvey acerta ao afirmar que “deste ponto de vista, não existe um verdadeiro desastre natural. Os vírus mudam o tempo todo. Mas as circunstâncias nas quais uma mutação se torna uma ameaça à vida dependem das ações humanas”.

A intensa expansão do coronavírus pelo mundo, até ser considerado o quadro pandêmico em 11 de março de 2020 (quando já se contabilizava oficialmente 118 mil infectados em 114 países e 4.291 mortes) tem, obviamente, duas razões: (1) a capacidade latente e natural do próprio vírus encontrar em células humanas “afinidade” reprodutiva, (2) mas principalmente as condições com que esses humanos interagem inevitavelmente dentro dos quadros socioeconômicos específicos. O que se sabe, em termos oficiais, é que os espaços mais propícios à expansão da COVID-19 são aqueles que têm forte interação econômica: espaços densamente urbanizados, com grandes mercados de consumo (como em Wuhan) e grande indústria turística, como nas principais cidades europeias, além de Nova York, nos EUA. Por isso mesmo, o COVID-19 é confundido como “doença de rico”, “doença de turista”. Isso nos diz mais sobre os processos de urbanização e adensamento populacional, sobre as condições sociais com que desigualmente as pessoas transitam pelo mundo, sobre a natureza predatória da indústria do turismo global, sobre a própria natureza da “globalização”, do que propriamente sobre um vírus.

Para além do que os dados oficiais mostram, o quadro que se monta é, certamente, muito mais grave. A incapacidade de os sistemas de saúde das economias centrais salvarem vidas, exauridos por 40 anos de irresponsabilidade neoliberal, é apenas uma pequena dimensão da natureza socioeconômica da pandemia. Sobre isso vale ressaltar, como já ocorre nos EUA, a grande capacidade que o novo coronavírus tem em “selecionar” populações negras e pobres que há anos, sem assistência e acesso à saúde, estão morrendo em proporções absurdamente desiguais. Mas a previsível expansão do COVID-19 para os espaços pauperizados pela geopolítica do capital, principalmente nas favelas e demais “depósitos de gente” nos países latino-americanos e africanos, é um desastre anunciado. Nesses países e nos rincões deles, onde sequer os testes serão feitos, porque não os terão, o desastre da pandemia é potencialmente incalculável. Na cidade de Guayaquil, quando os noticiários internacionais mostraram o caos sanitário no Equador no dia 02 de abril, os dados oficiais contaram 78 mortes, enquanto o próprio prefeito da cidade, Andrés Guschmer, revelou que mais de 400 corpos foram retirados das casas, das ruas e das praças, abandonados diante do colapso funerário.

Ainda sobre o Equador, vale lembrar as medidas econômicas forçadas pelo FMI e seguidas pelo governo de Lenin Moreno, que provocaram forte retração nos investimentos sociais em 2020, em detrimento do pagamento da dívida contraída com o Fundo em 2019. Só na saúde, o corte foi de cerca de 36%, de acordo com o economista Jonathan Báez. O agravamento da pandemia, nesses locais com forte vinculação de dependência aos interesses do capital especulativo atrelado ao processo de miserabilidade social, se demostra deveras desastroso. Ainda como observa Mike Davis, o coronavírus já deu provas suficientes de sua alta capacidade destrutiva: “pode tomar um caminho diferente e mais mortal nos bairros de lata, densos e doentes, da África e do Sul da Ásia. Com casos que agora aparecem em Lagos, Kigali, Addis Abeba e Kinshasa, ninguém sabe (e não se saberá por muito tempo devido à ausência de testes) como pode interagir com as condições de saúde e as doenças locais”.

A Natureza da Crise

A perda de controle e a natureza socioeconômica da pandemia foram admitidas pelo próprio diretor-geral da Organização Mundial da Saúde, Tedros Adhanom: “Esse vírus, desconhecido por nós há três meses, expôs as fraquezas e desigualdades em nossos sistemas de saúde”. Mas o colapso sanitário expõe muito mais do que “fraquezas” nos sistemas de saúde. Além do colapso no atendimento de pacientes nos países centrais e o desenvolvimento desigual da pandemia nos países periféricos, a incapacidade operacional do sistema socioeconômico global em evitar milhares, talvez mais de um milhão de mortos, expõe fraturas e defeitos estruturais agora inocultáveis. Nesses momentos em que a humanidade se vê obrigada a pensar em seu destino, avaliando as condições insustentáveis de exploração da natureza e do trabalho, suas relações de produção, a forma como o mundo está desigualmente composto, o questionamento se estende para além da estrita esfera da saúde.

É sintomático que a nova pandemia tenha origem na China, país de onde disseminaria em 2003 outro surto: o SARS-1. Mas o COVID-19 difere deste primeiro exatamente porque as condições socioeconômicas de hoje estão muito mais limitadas do que antes. A mesma China, que ofereceu ao mundo um modelo de desenvolvimento produtivo para salvar o colapso da economia em 2008 (baseada na ultra-exploração do trabalho, gerida pelo Estado), se viu em paralisia pela redução da produção e da circulação das mercadorias. O fluxo do valor e o consequente processo de valorização, senão interrompido, foi diminuído drasticamente. É possível que a composição do quadro pandêmico, em si, não seria significativamente suficiente para a fundamentação de uma “crise global”. Restrita à esfera sanitária, a importância do coronavírus poderia ser facilmente relativizada. Enquanto o surto se expandia para países não tão centrais na economia global, como Coreia do Sul e Irã, havia alguma subestimação das possibilidades da crise. É apenas quando chega à Europa, primeiro na Itália depois na Espanha, que a “crise” realmente se instaura: “O crash da bolsa de valores que começou em meados de fevereiro oscilou um pouco, mas em meados de março levou a uma desvalorização líquida de quase 30% nas bolsas de valores em todo o mundo”, lembra Harvey. Temos então um fato não admitido: a pandemia se torna crise quando se “ocidentaliza”.

No momento em que os mercados, retraídos desde 2008, se veem agora forçados a reduzir a capacidade de valorização do capital, aí sim, temos a explosão de uma crise. As incalculáveis perdas na esfera do capital financeiro, a queda do PIB global, as restrições produtivas e o redirecionamento de recursos para o combate do novo coronavírus apenas expõem os limites bastante sensíveis com que o mercado perigosamente vinha manipulando o presente e futuro da humanidade. Se a natureza da pandemia é também, e sobretudo, socioeconômica (porque suas condições poderiam ser menos sensíveis, caso a saúde fosse um bem público universal, e não econômico), a decretação de “crise” mundial não teria outro fundamento, senão os riscos contra o próprio sistema econômico financeiro global. Portanto, não seria por outro motivo, senão pela paralização do fluxo de capital, a verdadeira gênese da crise do COVID-19.

A Natureza da Economia da Morte

Mas a capacidade com que o sistema econômico dominante produz suas crises pandêmicas, aliada a sua própria incapacidade de resolvê-las, indica muito mais do que “equívocos” na administração global ou governamental dos problemas. As contradições estruturais, os defeitos incorrigíveis e as profundas limitações no funcionamento do sistema do capital, expõe a humanidade (primeiro) ao potencial destrutivo dessas contradições e (segundo) a incapacidade de resolvê-las dentro dos nossos limites previsíveis de ação.

O capital, como observa Mészáros, é um sistema sociometabólico de segunda ordem, orientado pelo processo incontrolável, expansivo e totalizante da autovalorização pela autoacumulação. Isso significa que nenhuma mediação de primeira ordem – aquela fundamental à existência humana, como o direito inalienável à vida, à saúde – pode se desenvolver por fora do desenvolvimento lucrativo dos mercados. Desenvolver a sociedade significa, para o capital, “desenvolver a sociedade a partir do desenvolvimento do mercado”. A economia da morte não é um privilégio triste do nosso tempo, mas ela se expressa com mais evidência nesses momentos críticos.

O exemplo mais absurdo e providencial, para esse contexto de pandemia, é o mercado da saúde. Nas últimas décadas, a abertura desse mercado tem levado a uma completa orientação não prioritária e perigosamente não preventiva do setor. A importância dos planos de saúde no cotidiano das pessoas cresce na mesma proporção em que se observa a falência dos sistemas públicos de saúde. Para novamente exemplificar um país de economia central e fortemente afetado pela pandemia, “funcionários do hospital da França, lutando ao longo do ano passado, têm dito repetidamente: que o hospital público é vítima de políticas de estrangulamento financeiro”. Assim lembra Alain Bihr.

Isso tem se dado, por um lado, em consequência da “medicina liberal”, onde (desde a formação do médico, orientado pelo retorno financeiro) se nota o abandono da política sanitária pública e o fortalecimento das clínicas particulares como fundamento de um projeto econômico. A prioridade não é mais o paciente, mas a clientela. Por outro lado, a desorientação da saúde como um serviço público e universal afeta diretamente o desenvolvimento da capacidade imunológica do conjunto das pessoas, já que as medidas de prevenção são cada vez mais deslocadas da centralidade médica em prol do tratamento dessas mesmas doenças preveníveis. Isso não envolve necessariamente a existência ou não das vacinas, mas a preparação prévia dos sistemas de saúde em absorver os surtos virais, recorrentes ou não. E é exatamente neste momento de explosão pandêmica que nem as clínicas, nem os médicos da “medicina liberal” conseguem conter ou curar o novo coronavírus, porque também não há tratamento disponível. Nos hospitais abarrotados de doentes resta escolher quem morre. E assim, a medicina e o sistema de saúde global se veem rendidos à economia da morte contando agora suas vítimas fatais.

Também com relação à ausência de tratamento farmacológico, não se trata simplesmente de uma limitação da ciência diante da “novidade” COVID-19. Vale salientar, como observa Alain Badiou, que a SARS-2, como ainda é denominado o novo coronavírus, assim é chamada porque se trata de uma variação da SARS-1, também disseminada pelo mundo a partir da China em 2003, como apontado acima. Desta forma, continua Badiou, “a única crítica séria que hoje pode ser dirigida às autoridades em termos de previsão é não terem financiado, depois da SARS-1, a investigação que teria disponibilizado ao mundo da medicina, verdadeiros instrumentos de ação contra a SARS-2”.

É igualmente importe destacar a orientação mercadológica que a indústria farmacêutica tomou, diante da necessidade de manter a competitividade do mercado. Aqui a economia da morte se expressa pelo viés mais lógico da priorização dos lucros em detrimento da prevenção de surtos epidemiológicos, até em relação às doenças tradicionais, principalmente as tropicais, que há anos, dizimam populações pobres inteiras nos países periféricos da América Latinha, África e Sul da Ásia. Como lembra Harvey, “das 18 maiores empresas farmacêuticas, 15 abandonaram totalmente este campo [das vacinas preventivas]. Medicamentos para o coração, tranquilizantes viciantes e tratamentos para a impotência masculina são líderes do lucro, não as defesas contra infecções hospitalares, doenças emergentes e assassinos tropicais tradicionais”.

Obviamente, a economia da morte não surge com essas evidências localizadas neste momento de pandemia, mas sim, estrutura-se historicamente conforme a natureza da economia capitalista. Esta que se vê agora desafiada à sua reprodução, colocando a vida de milhões de trabalhadores em risco. São nesses momentos que a economia real, de mercado capitalista, demonstra seus limites, pois nem sequer civilizatória consegue mais ser, porque agora deve se desvelar efetivamente mortal.

Salvemos a economia, mas qual economia?

Quando no dia 3 de abril, um artigo assinado em conjunto pela diretora do Fundo Monetário Internacional, Kristalina Georgieva, e o diretor Geral da Organização Mundial da Saúde, Tedros Adhanom, destacou ser um “falso dilema” escolher entre economia e vida, é porque o problema já estava posto. O discurso era o de conciliar esforços econômicos com objetividade sanitária de preservação da vida, insinuando algum princípio humanitário na economia da morte. O documento fala de “salvar vidas” e “salvar meios de subsistência”, como se a única forma de produzir meio de subsistência para a sobrevivência das pessoas fosse necessariamente pela via do mercado capitalista (que agora se encontra orientado para a morte). Na China, onde se observa o início do controle do surto viral, a retomada da “normalidade econômica” tem se baseado na exploração do mercado aberto pela própria pandemia. Empresas de insumos médicos e hospitalares promovem verdadeiros leilões atrás de “quem paga mais” por suas mercadorias. A superelevação de preços dos respiradores é clarividente no contexto em que a economia da morte ativa seus horrores mais normatizáveis e irracionalmente justificáveis: “Tem problema de demanda hiperaquecida”, reconheceu o ex-ministro da saúde do Brasil, Henrique Mandetta, sem nenhuma consternação e diante do insucesso na compra dos aparelhos chineses. Este é o mesmo que, aliás, orientou a “racionalidade de investimentos” no já fragilizado Sistema Único de Saúde Nacional no primeiro ano do governo Bolsonaro.

Isso ocorre exatamente no momento em que se observa um tipo de “solidariedade global” diante do desastre mundial causado pela pandemia. Obviamente, os discursos jamais assumirão a grande contradição entre a preservação da vida humana e a manutenção da vida do mercado da morte. Isso expõe as intenções não admitidas entre FMI e a real preocupação com a vida das pessoas. Mas é nesse mesmo contexto que um novo horizonte de possibilidades se abre, e das quais é necessário refletir, ainda que especulativamente.

Do ponto de vista da realidade, ao menos a brasileira, o chamado empresarial à “normalidade da vida econômica” nesses tempos de socialização da morte expõe duas condições. A primeira está no chão dos bairros periféricos e das ruas dos centros das cidades. Esses espaços de moradia e trabalho, para a massa empobrecida da classe trabalhadora, são irrevogáveis. Assalariados temporários ou permanentes, informais, comerciantes pequenos e médios, pedintes ou pequenos vendedores, esses milhões terão sua condição, já precarizada, ainda piorada com a paralização espacial e o consequente influxo de suas rendas. A segunda condição, do ponto de vista da realidade, é a paralisação da atividade econômica dominante: dos grandes investimentos de capital, das indústrias distribuídas em diversos setores, que tem na alta burguesia e na emburrecida e idiotizada classe média, seus apologetas.

Essas duas realidades, a do trabalhador e a do grande capital, embora façam parte do grande complexo econômico que move o país, não podem ser colocadas como iguais, como simplesmente “economia”. Elas não são só diferentes, nem harmonicamente complementárias, mas efetivamente antagônicas, contraditórias, porque assumem objetivos e interesses contrários. A realidade econômica da classe trabalhadora empobrecida objetiva efetivamente a reprodução da vida imediata. Por isso, ela é cercada de mecanismos e estratégias de solidariedade, principalmente na reprodução dos seus espaços de moradia. São instrumentos de preservação da vida em ambiente comunitário há muito tempo desenvolvidos e que se colocam reativamente contra os interesses e o avanço do grande capital. O contrário dessa experiência solidária própria do mundo do trabalho é a realidade econômica do grande capital que se concretiza exatamente nas medidas contra a realidade econômica dos trabalhadores: as reformas ultraliberais e as políticas antissociais.

Por isso é inconcebível que aqueles mesmos sujeitos pró-capital, pertencentes a uma elite necrófila, venham agora dizer que estão preocupados com a vida, o trabalho e o emprego dos trabalhadores, estes mesmos que tiveram seus direitos básicos de emprego, educação e saúde negados historicamente por aqueles. O cinismo do discurso empresarial, como estratégia de assimilação coletiva dos seus interesses privados, orientado para a acumulação de riqueza e renda, não pode mais significar qualquer possibilidade de representar as necessidades vitais e gerais da sociedade. Diante dessas duas realidades econômicas cada vez mais inconciliáveis (uma pela vida, outra pela morte), o momento decisivo é a tomada da objetividade e funcionalidade econômica por aqueles que defendem a preservação da vida, os trabalhadores.

Como Vladimir Safatle coloca, o cínico chamado da burguesia não poderia representar outra coisa senão uma convocação das pessoas a um “Estado suicidário”. Esse chamado vem das mesmas figuras protofascistas (no Brasil, obviamente, representadas pelo Presidente da República) que há anos impõem a realidade do “necroestado”: um tipo de orientação política e admitida institucionalmente a favor da morte, da dizimação de pobres, por aqui assumida pelo jargão “bandido bom é bandido morto!”. Mas o Estado suicidário não é propriamente um estado assassino, mas um Estado que convoca seu próprio povo à autodestruição, à morte, pelo trabalho, pela economia! Ainda segundo Safatle, esse tipo de Estado só existiu anteriormente no contexto da Alemanha nazista onde, diante da derrota eminente, Hitler convoca a população à autodestruição da nação. Para o atual momento, e ainda diante da analogia histórica, vale lembrar do slogan exposto nos campos de concentração, trabalho forçado e morte na mesma Alemanha nazista: “Só o trabalho liberta!”.

Portanto, os agentes políticos e o discurso necrófilo de preservação da economia não poderiam ter outro sentido senão a própria autodestruição. Mas como a sociedade e a economia caminham juntas, mesmo essa autodestruição tem suas diferenças de classes. Foi sintomático observar como que as “carreatas da morte”, convocando os trabalhadores a se exporem ao novo coronavírus, estavam compostas: empresários e empresárias, isolados em seus carros, com suas máscaras de proteção sanitária, disseminando o discurso de morte para as trabalhadoras e os trabalhadores pelas cidades do Brasil. Do lado das trabalhadoras e dos trabalhadores, o cenário de morte que se monta ao chamado econômico empresarial tem provavelmente duas possibilidades: no mundo pandêmico, o risco da morte pela infecção do vírus; no mundo pós-pandêmico, o risco da morte pela miséria social, ou a morte pelo trabalho diante do recrudescimento radical das mesmas políticas econômicas que os colocaram em tal condição. Este último é, aliás, um cenário que já se monta desde já, com a justificativa previamente colocada de “retomada” econômica quando “voltarmos à normalidade”. Assim, a morte justifica a própria morte.

A única alternativa possível é insistir na orientação da solidariedade humana somente produzida a partir da realidade experimentada pelos trabalhadores, mas não por meio de qualquer romantismo que se coloque na perspectiva. Basta advertir que “caridade” preserva a desigualdade. A solidariedade substantiva e materialmente sustentada, originária dos trabalhadores, é a única possível contra a economia da morte, porque é diametralmente oposta a ela: porque é constituída, primeiro, pela e para a sobrevivência, depois pelo desenvolvimento de suas condições e capacidades materiais.

A pandemia expõe defeitos estruturais insuperáveis da forma como nossa economia está dirigida para à morte e à autodestruição. Ela já se mostra evidentemente insustentável. Diante da crise produzida pelo próprio capital e exposta pela pandemia, processos de estatização de empresas, políticas de distribuição de renda, ressurgência do debate sobre taxação de grandes fortunas reaparecem como perspectivas ainda muito tímidas (ou até enganosas) para se pensar em qualquer mudança estrutural. Mas qualquer necessidade de mudança, em algum ponto específico desse corpo econômico em extrema debilitação, abre possibilidades para novas perspectivas de realidade. Por exemplo, como lembra Harvey, se a manutenção das taxas de acumulação do capital depender do aumento do consumismo americano, que já é predatório, “isto exigirá a socialização de toda a economia dos Estados Unidos, por exemplo, sem chamar-lhe de socialismo”.

Pelos limites históricos apontados, pela incapacidade de solução dos problemas por ele mesmo criado, o sistema sociometabólico do capital coloca a humanidade diante daquele momento em que, como exaltaria Marx e Engels, “as pessoas são finalmente forçadas a encarar com serenidade sua posição social e suas relações recíprocas”.

* Militante da Unidade Classista e da célula do PCB de Vitória da Conquista. Professor da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb). Doutor em Geografia pela Universidade de São Paulo. Pesquisador do Grupo de Pesquisa “Estado, Capital, Trabalho e Políticas de Reordenamentos Territoriais”.