Fome e solidariedade classista na pandemia
Por Kathiuça Bertollo
Acerca da questão da fome: onde estávamos nos ‘dias de normalidade’ que ‘não a víamos’? Esta situação sub-humana sempre esteve ao nosso lado, sob nossos olhos. Precisa ser enfrentada com radicalidade, a partir do que a oriunda. Ações pontuais apenas mitigam essa questão histórico-estrutural de nossa existência enquanto classe trabalhadora sob os marcos do capitalismo.
A questão da fome na sociedade moderna é resultado e condição estruturante de um sistema econômico, social e político de produção coletiva dos bens, produtos e riqueza, mas de apropriação privada e que, a partir disso, é organizado em classes sociais antagônicas. De um lado, a classe trabalhadora que produz a riqueza, porém, não se apropria dela; de outro a burguesia, que detém e controla todo o processo produtivo e a riqueza gerada através da exploração da força de trabalho.
Conforme relatório publicado pela Oxfam (2017, p.11), “o 1% mais rico da população mundial possui a mesma riqueza que os outros 99%, e apenas oito bilionários possuem o mesmo que a metade mais pobre da população no planeta. Por outro lado, a pobreza é realidade de mais de 700 milhões de pessoas no mundo”.
Essa é a estrutura basilar do capitalismo, sistema que orienta e aprisiona a existência do gênero humano, que marca e tolhe a vida de milhões de pessoas ao redor do globo, que os reduz à bestialidade, à uma vida sem qualquer possibilidade de plena realização dos sentidos, mesmo os mais elementares. Que impõe o pauperismo, a violência, a negação, a miséria, a fome, a ‘morte em vida’.
Considerando que o Brasil é um dos países com maior concentração de renda e desigualdade do mundo, objetivamos, nas linhas que seguem, apresentar uma reflexão acerca da fome, da fome em tempos de pandemia da COVID-19, das respostas do Estado via políticas sociais e da solidariedade de classe. Para tanto explicitaremos um dia na vida de quem tem fome. Situação muito fortemente retratada por Maria Carolina de Jesus em sua célebre (e também rechaçada) obra ‘Quarto de despejo: Diário de uma favelada’ (1960, p.35- 36- 37), reconhecendo que o que a autora retrata abre a possibilidade de debater a questão racial, de gênero, geracional, habitacional, trabalho e renda, dentre outras, no entanto, por reconhecer a importância e complexidade destas e que podem ser melhor abordadas em outro texto, optaremos pelo recorte de temáticas inicialmente apresentado.
“21 de maio – Passei uma noite horrível. Sonhei que eu residia numa casa residível, tinha banheiro, cozinha, copa e até quarto de criada. Eu ia festejar o aniversário de minha filha Vera Eunice. Eu ia comprar-lhe umas panelinhas que há muito ela vive pedindo. Porque eu estava em condições de comprar. Sentei na mesa para comer. A toalha era alva ao lírio. Eu comia bife, pão com manteiga, batata frita e salada. Quando fui pegar outro bife despertei. Que realidade amarga! Eu não residia na cidade. Estava na favela. Na lama, as margens do Tietê. E com 9 cruzeiros apenas. Não tenho açúcar porque ontem eu saí e os meninos comeram o pouco que eu tinha.
…Quem deve dirigir é quem tem capacidade. Quem tem dó e amisade ao povo. Quem governa o nosso país é quem tem dinheiro, quem não sabe o que é fome, a dor, e a aflição do pobre. Se a maioria revoltar-se, o que pode fazer a minoria? Eu estou ao lado do pobre, que é o braço. Braço desnutrido. Precisamos livrar o paiz dos políticos açambarcadores.
Eu ontem comi aquele macarrão do lixo com receio de morrer, porque em 1953 eu vendia ferro lá no Zinho. Havia um pretinho bonitinho. Ele ia vender ferro lá no Zinho. Ele era jovem e dizia que quem deve catar papel são os velhos. Um dia eu ia vender ferro quando parei na Avenida Bom Jardim. No lixão, como é denominado o local. Os lixeiros haviam jogado carne no lixo. E ele escolhia uns pedaços: Disse-me:
-Leva, Carolina. Dá para comer.
Deu-me uns pedaços. Para não maguá-lo aceitei. Procurei convencê-lo a não comer aquela carne. Para comer os pães duros ruídos pelos ratos. Ele disse-me que não. Que há dois dias não comia. Acendeu o fogo e assou a carne. A fome era tanta que ele não poude deixar assar a carne. Esquentou-a e comeu. Para não presenciar aquele quadro, saí pensando: faz de conta que eu não presenciei esta cena. Isto não pode ser real num paiz tão fértil igual ao meu. Revoltei contra o tal Serviço Social que diz ter sido criado para reajustar os desajustados, mas não toma conhecimento da existência infausta dos marginais. Vendi os ferros no Zinho e voltei para o quintal de São Paulo, a favela.
No outro dia encontraram o pretinho morto. Os dedos do céu pé abriram. O espaço era de vinte centímetros. Ele aumentou-se como se fosse de borracha. Os dedos do pé parecia leque. Não trazia documentos. Foi sepultado como um Zé qualquer. Ninguém procurou saber o seu nome. Marginal não tem nome.
…De quatro em quatro anos muda-se os políticos e não soluciona a fome, que tem a matriz nas favelas e as sucursais nos lares dos operários.
…Quando eu fui buscar agua vi uma infeliz caída perto da torneira porque ontem dormiu sem jantar. É que ela está desnutrida. Os médicos que nós temos na política sabem disso.
… Agora eu vou na casa da Dona Julita trabalhar para ela. Fui catando papel. O senhor Samuel pesou. Recebi 12 cruzeiros. Subi a Avenida Tiradentes catando papel. Cheguei na Rua Frei Antonio Santana de Galvão 17, trabalhar para a Dona Julita. Ela disse-me para eu não iludir com homens que eu posso arranjar outro filho e que os homens não contribui para criar o filho. Sorri e pensei: em relação aos homens, eu tenho experiências amargas. Já estou na maturidade, quadra que o censo já criou raízes.
… Achei um cará no lixo, uma batata doce e uma batata solsa. Cheguei na favela os meus meninos estavam roendo um pedaço de pão duro. Pensei: para comer estes pães era preciso que eles tivessem dentes elétricos.
Não tinha gordura. Puis a carne no fogo com uns tomates que eu catei lá na Fabrica Peixe. Puis o cará e a batata. E agua. Assim que ferveu eu puis o macarrão que os meninos cataram no lixo. Os favelados aos poucos estão convencendo-se que para viver precisam imitar os corvos. Eu não vejo eficiência no Serviço Social em relação ao favelado. Amanhã não vou ter pão. Vou cozinhar a batata doce.”
O brado da autora realizado na década de 1960 e a realidade em 2020 tem muitas similaridades.
Adentramos o ano de 2020 vivenciando uma pandemia, a vida de milhares de pessoas foi suprimida por uma doença ainda sem cura. No dia 07 de maio se contabilizavam mais de 3,7 milhões de pessoas infectadas e 264.000 mortes no mundo. No Brasil, um dos países com mais mortes confirmadas, ao menos 8.536 pessoas morreram até esta data. No dia seguinte (08-05), já se ultrapassava a marca de 10 mil mortos, mais precisamente 10.222, sabendo que este número é infinitamente maior devido a subnotificação e falta de exames.
Importante evidenciar que em função da pandemia o Congresso Nacional, por meio do DECRETO LEGISLATIVO nº 6, de 20 de março de 2020, reconheceu e decretou estado de calamidade pública no país até o final deste ano.
Sem saber até quando este cenário desolador se manterá, o que temos como certo é que o período pós pandemia já se anuncia como um cenário de degradação e destruição societária e humana. Este panorama não é resultado de qualquer pessimismo da razão, é pura e simplesmente consequência de um sistema que controla as esferas da produção e da reprodução social priorizando a economia e o lucro em detrimento da vida. Melhor dizendo, o capitalismo tem as crises como uma condição estruturante de sua perpetuação e para superá-las o capital precisa criar mecanismos para retomar as taxas de lucro, com isso passa a valer a seguinte premissa no contexto da luta de classes (agora agravada e explicitada com a pandemia): Para a burguesia, a vida da classe trabalhadora é uma mercadoria descartável. Para a classe trabalhadora, a vida é o único bem que se possui!
O capitalismo submete cotidianamente a classe trabalhadora à ‘morte em vida’, seja pela negação de saúde, alimentação, habitação, lazer, educação, saneamento básico, etc. situação que se agrava diária e amplamente, que salta à vista e exige respostas.
No Brasil, a construção das respostas às demandas imediatas e urgentes de sobrevivência sempre se deu muito fortemente marcada pelo viés caritativo, paliativo, seletivo, fragmentado, primeiro-damista e conservador. Um exemplo foi o Programa Comunidade Solidária implantado no governo de FHC e coordenado pela então primeira dama do país, Ruth Cardoso. Essa foi a referência que orientou as intervenções estatais no campo social entre os anos de 1995 a 2002.
O atendimento e a garantia de sobrevivência da população através da perspectiva dos direitos e das políticas sociais, legal e normativamente reconhecidas pelo Estado via leis orgânicas, financiamento e sistemas, tais quais o SUS no âmbito da política de saúde e o SUAS no âmbito da assistência social, são resultados de árdua e permanente luta político-classista dos sujeitos sociais e coletivos do país.
No âmbito da assistência social as respostas à questão da fome se dão via programas e projetos sociais e benefícios eventuais. A LOAS (1993) estabelece em seu art.22 que “Entendem-se por benefícios eventuais as provisões suplementares e provisórias que integram organicamente as garantias do Suas e são prestadas aos cidadãos e às famílias em virtude de nascimento, morte, situações de vulnerabilidade temporária e de calamidade pública”. É dentro desta delimitação que auxílios como ‘cestas básicas’ são ofertados. Esta historicamente tem sido a resposta imediata à demanda da fome por parte do Estado brasileiro.
Ressalta-se que a política de assistência social não possui um caráter universal de acesso, é destinada ‘a quem dela necessitar’ e constantemente sofre ofensivas, tentativas de reimplantação da premissa da solidariedade filantrópica em detrimento à perspectiva de direito social e dever do Estado. Exemplos disso: no governo Temer a criação do Programa Criança Feliz, que tinha a então primeira dama Marcela Temer como ‘madrinha’, figura decorativa e que imprimia um caráter personalista à ação; e no governo Bolsonaro, sob o comando de figuras como Damares, Osmar Terra, Onyx Lorenzoni e Michele Bolsonaro, o obscurantismo, o primeiro-damismo, a caridade, a filantropia e a incompetência são novamente emplacados carregando e reproduzindo a marca central desde governo, que demonstra ter em todas as áreas de atuação, não somente na social, um alinhamento aos interesses do Capital e seus expoentes em detrimento do atendimento das demandas da classe trabalhadora, da população pauperizada do país.
Sob estas premissas, a resposta do governo federal à questão da fome, do desemprego e demais incertezas, negações e violências na vida da população brasileira em tempos de pandemia da COVID-19 foi, após pressão do Congresso Nacional, de movimentos sociais, entidades sindicais e da própria população que vivencia os dramas sociais e econômicos de modo mais agravado a cada dia, a liberação de um auxílio emergencial no valor de R$ 600,00 por três meses.
Aponta-se para o caráter extremamente limitado desse auxílio, seja pelo valor que é repassado, seja pelo tempo que será ofertado, seja pelas regras e burocracia para acessá-lo, mas principalmente, por se tratar de ação isolada, desarticulada de qualquer perspectiva de atendimento universal às demandas da população brasileira, dentre estas, a prioritária que é sanar a fome. Ou seja, os mecanismo de impedimento e a demora no acesso a este auxílio emergencial são elementos próprios da política genocida desencadeada pelo governo Bolsonaro sobre a classe trabalhadora brasileira. A política econômica se sobrepõe à política social.
Tais ações explicitam o caráter estrutural e classista do Estado, de opção por um projeto societário que não é o mesmo pautado e defendido pela classe trabalhadora, é o da manutenção e perpetuação da ordem sob a hegemonia e domínio do capital. Caráter este já explicitado em 1848 por Marx e Engels quando afirmam que “O poder do estado moderno não passa de um comitê que administra os negócios comuns da classe burguesa como um todo”.
Tal afirmação deve ser inscrita e compreendida a partir das esferas da produção e da reprodução social e do contexto da luta de classes, caso contrário, ‘mata-se’ a história e a possibilidade de o gênero humano construí-la, modificá-la, permanecendo como verdade a afirmação de que o capitalismo é o patamar máximo de desenvolvimento e civilidade alcançado e possível para a humanidade. Absolutamente não é disso que se trata!
Neste atual contexto de crise do capital, que se agrava pela pandemia da COVID-19, a classe trabalhadora em seu conjunto e por meio de suas esferas organizativas precisa retomar, fortalecer e ampliar a atuação na construção de processos de tomada de consciência de classe, no tensionamento desta ordem societária que não permite sequer a existência biológica a todos os indivíduos que a compõe.
A tarefa imediata e de impulsionamento desse contexto de resistência e luta é garantir a vida! E é preciso explicitar que as raízes dessa condição de ‘morte em vida’ são estruturantes do capitalismo, que neste sistema é somente este o lugar e condição relegados à classe trabalhadora, que é organizado e mantido pelas classes dominantes todo um aparato e conjunto de ações e ideias que se utiliza da religião, da mídia, da família, da moral e dos valores conservadores, etc, que objetiva negar e condicionar a aceitação desse limite que difere e antagoniza as classes sociais que o compõe.
Diante disso, as organizações classistas possuem responsabilidades, e dentre estas, pautar e realizar ‘ações de solidariedade’ no que se refere à garantia da vida, ao enfrentamento da fome, da política de genocídio e do extermínio em massa, questões estas de ocorrência cotidiana pelo capital com respaldo do Estado, e que agora em tempos de pandemia da COVID-19 estão muito fortemente agravadas.
O histórico de lutas, resistência e organização da classe trabalhadora brasileira tem vasto e relevante registro de ações a partir dessa perspectiva. São expressivas desde o período da escravidão, melhor dizendo, ainda no período da escravidão, [uma das páginas mais degradantes, irracionais e anti-humanas da existência do gênero humano e da história do nosso país], ações de solidariedade de classe, a exemplo dos levantes. A perspectiva de solidariedade deve ser inspirada nas formas de ajuda mútua, nas formas de resistência e organização que os quilombos assumiam, na luta pela superação daquele sistema social e econômico produtivo em que a vida humana era posse de outrem.
Devem se inspirar nas associações criadas no seio das categorias profissionais e instituídas desde os primórdios de sua constituição e consolidação enquanto tal, e portanto, sem maior respaldo de legislações e garantias por parte do Estado, tal qual como conhecemos e temos na atualidade, via direitos trabalhistas e previdenciários, via sistema de seguridade social e das políticas sociais, apesar do caráter seletivo e focalizado que portam e as constituem.
Não devem deixar de ser inspiradas também pelas experiências históricas de luta e busca de construção de outra ordem societária, verdadeiramente justa e igualitária, sem dominação e exploração de classe, sem opressões de gênero, de orientação sexual, de raça, sem violências e negações à classe trabalhadora.
Para tanto, e considerando a condição de capitalismo dependente, de superexploração da força de trabalho, o que impõe condições mais agravadas e árduas à sobrevivência da classe trabalhadora brasileira, as ações precisam ser organicamente vinculadas e oriundas da própria classe trabalhadora, do seu reconhecimento enquanto classe, isto é, possuir caráter político como cerne e orientador.
Não podem ser orientadas por viés caritativo, apelativo, assistencialista, emergencial, fragmentado e pontual de atuação em decorrência da gravidade da pandemia da COVID-19 e da amplitude que tem tomado, ou seja, não pode ser descolado de perspectivas mais amplas e tensionadoras dessa ordem econômico-social. Momentos de acirramento da própria existência humana tal qual este que estamos vivenciando pela pandemia, não são pontos fora da curva, são uma constante no capitalismo, e por isso precisam ser entendidos, enfrentados e superados a partir dos seus fundamentos.
A classe trabalhadora porta em suas mãos essa possibilidade histórica. Sem voluntarismos e espontaneísmos, sem ações mecanicistas seja individual ou de organizações classistas, mas também, sem desistência, com disposição e ânimo para a árdua tarefa de constituição e potencialização de ‘força social’ necessária para que seja possível não mais sentirmos e vivenciarmos a questão da fome, do medo, das violências e das negações, e sim vivermos plenamente nossos sentidos em coletividade, igualdade e liberdade.
Kathiuça Bertollo
Docente do Curso de Serviço Social da UFOP
Diretora da ADUFOP
Militante do PCB em Mariana-MG
MG, 09 de maio de 2020.
Referências
BERTOLLO, Kathiuça. A CONTRADITÓRIA RELAÇÃO ENTRE TRABALHO E O DIREITO À ASSISTÊNCIA SOCIAL: Um estudo desde a perspectiva Latino-Americana da Dependência. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Federal de Santa Catarina, 2012.
BRASIL. DECRETO LEGISLATIVO nº 6, de 20 de março de 2020.
JESUS, Maria Carolina de. Quarto de despejo: Diário de uma favelada.1960.
MARINI, Ruy Mauro. Dialética da Dependência. In: TRANSPADINI, Roberta; STEDILE, João Pedro (orgs). 1 ed. São Paulo: Expressão Popular, 2005. (p. 137 a 180)
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/marx/1848/ManifestoDoPartidoComunista/
OXFAM. A distância que nos une: um retrato das desigualdades brasileiras, 2017.
Gravura de Käthe Kollwitz