Mobilidade urbana: uma questão de saúde pública
A VOZ DO POVO – Alagoas
Por Fernando Farias*
Qualquer brasileiro que não tenha nascido em berço de ouro sabe bem: transporte público por aqui faz mal à saúde. Essa é uma daquelas questões que são experiências coletivas e que são tomadas como universais, mas que, na verdade, apesar de coletivas, são apenas uma experiência particular, e não universal. Te adoro, Pasqualini, por ter me ajudado a entender isso. Bora que nesse texto vai dar para entender melhor, pois vou comentar um pouco sobre a dialética, o transporte público e a saúde no Brasil.
Primeiro ponto,
A dialética
Basta ir cedinho para o terminal de ônibus ou para um ponto, do Biu ao Vergel… Que logo encontraremos eles: trabalhadores exaustos antes mesmo de chegar no trabalho, já cientes do tempo que vão passar no ônibus. Muitas vezes, durante todo o trajeto estamos em pé, em posições extremamente desconfortáveis e até arriscadas, sofrendo assédios e outros tipos de violência. E, apesar de pouco explorado, te digo que o tema das conversas que ocorrem ali, entre vários desconhecidos, são o terreno mais rico para qualquer agitador militante. Nessas filas, bem como na dos bancos, das lotéricas etc, facilmente se iniciam assuntos da ordem do dia: o novo aumento preço do transporte, o preço da comida que extrapola o orçamento, a insegurança nas ruas e até em casa, a precariedade da educação, o caos da saúde… E é ali que devemos nos concentrar. É dali que surgem os diálogos e as pontes entre o povo e o Partido, que também deve ser do povo.
O problema é que graças à ideologia dominante, mesmo com faíscas de revolta, o povo comumente termina a reclamação ainda mais exausto e com um clássico: sempre foi assim, entra governo, sai governo e nada muda. E é nessa hora que faz toda diferença saber aproveitar uma oportunidade para trabalho de base. As pessoas notam o absurdo, mas lhe falta o incentivo para perceber mais do que isso: que isto não precisa ser assim.
Graças à ideologia dominante e a facilidade de raciocínio neste caminho, elas tomam esta situação particular como uma universal. Traduzindo, o trabalhador precarizado vivencia individualmente e subjetivamente o transporte público de maneira traumática e adoecedora. Ali, o trabalhador encontra com outras pessoas na mesma situação, que, apesar de vivenciarem esta individualmente e subjetivamente a seu próprio modo, notadamente sofrem de um processo similar. Ou seja, é uma experiência coletiva de trauma e adoecimento, uma experiência particular. No sistema capitalista, essa experiência particular para os trabalhadores precarizados é de fato quase que universal. Dificilmente se vê trabalhadores precarizados que não tenham que se sujeitar ao transporte público e serem afetados por ele. Porém, na experiência humana, isto não é universal, havendo muitas outras possibilidades, mesmo que sejamos ensinados a crer que não há caminhos além de se contentar com o capitalismo e suas mazelas.
Se o sistema de produção e a lógica de organização das cidades fosse outra, poderíamos vivenciar o uso de transporte público de outras maneiras — de preferência menos traumáticas e adoecedoras. E outras formas de organização são possíveis, mesmo que a maioria dos trabalhadores ainda não tenham esse horizonte como possibilidade. Mudar isso é nossa maior tarefa. Mas para isso há muito a ser feito!
Primeiro, vamos conversar um pouco sobre a mobilidade urbana e nossa — falta– de saúde.
A saúde física
Na saúde física, é preciso falar primeiro do óbvio: depender de transporte público, especialmente na periferia brasileira, é ter dores pelo corpo. Nas pernas, nas costas, nos braços, no pescoço. Tudo dói. Isso só para uma viagem. Para quem depende mesmo, para quem pega ônibus desde novo até o fim de sua vida, isso se intensifica, porque esses danos e dores se acumulam. Não há tempo para cuidado. Não há tempo de recuperação. Não há tempo para si.
Bebendo da primeira parte, apesar da dor causada pelo transporte público, até reclamamos mas por haver pouca perspectiva de mudança, as conversas sempre são desabafos soltos. A frustração desse tipo de conversa muitas vezes inibe sua própria existência. Afinal, aos poucos sentimos: pra que reclamar se não vai mudar nada?
Tudo que falei foi sobre pessoas previamente hígidas, pessoas saudáveis. É ainda mais grave para pessoas que estão doentes e se forçam a ir trabalhar ou estudar mesmo assim. Não podemos parar, precisamos aguentar tudo. Para os trabalhadores precarizados e seus filhos, trabalhar doente não é sobre apenas aguentar a rotina de trabalho mesmo lidando com seus sintomas: é sobre desconforto desde bem antes de chegar ao local de trabalho.
Saindo daqueles com doenças agudas, também temos trabalhadores com situações crônicas. Varizes, obesidade, situações da saúde mental-social, problemas da coluna, idosos, pessoas com deficiência… A todos estes, o transporte é mais do que um desconforto. É ele próprio um sofrimento intenso. E o que nos resta é falar sobre uns com os outros até a exaustão nos calar. Pouco tempo depois, a revolta vem novamente e o ciclo sem rumo se repete.
Falar que dói não diminui nossa dor física. Na verdade, seria até melhor que a dor fosse só física. A pior dor falarei com você na próxima parte.
A saúde mental
Aqui é onde dói mais intimamente. Depois de muito dano físico, depois de muitas horas em pé no ônibus, depois de muita dor nas costas e nas pernas, depois de muita frustração, depois de sentir que não adianta nada reclamar, a gente percebe: estamos fadados a sofrer no deslocamento para ter comida na mesa.
Quando nosso corpo dói, tomamos um analgésico, um relaxante muscular ou até uma cervejinha. Mas e a dor mental?
Quando o sofrimento extrapola o plano físico, fica ainda mais difícil de manejar. Especialmente para nós marxistas, pois não podemos cair naquela velha sina mandatória de “faça terapia”; porque primeiro que terapia infelizmente não é algo acessível; segundo que nem mesmo o melhor psicólogo do mundo pode resolver sozinho os impactos estruturais do capitalismo sobre o sujeito. E isso não é um desincentivo à terapia! Se você puder, faça. Nas Faculdades que atendem de graça, nas Unidades SUS ou no plano de saúde se tiver.
Porém, não se iluda: da mesma forma que remédios não resolvem o dano físico constante sofrido no transporte público, terapia e remédios psiquiátricos não resolvem o dano mental constante. Aliviam. Mas não resolvem.
Para quem é de minorias sociais, esse dano mental é ainda mais importante. O transporte público não é um lugar seguro em muitas cidades do Brasil. Viajamos com medo de assalto, de assédio, de racismo, de LGBTfobia, de violências diversas. Conforme essas experiências violentas se repetem, conosco e com nossos pares, só pensar em pegar um ônibus pode ser o suficiente para gerar uma crise de ansiedade, para dizer o mínimo. O dano mental constante se torna um medo constante.
No transporte público, estamos no mesmo lugar de dezenas de pessoas que não conhecemos e que não escolhemos para viajar conosco. Como saber se no meio destas não há um assediador, um racista, um LGBTfóbico, um assaltante… Não há. Nossa saúde mental é constantemente violentada assim, antes mesmo de embarcarmos naquele transporte.
Um outro tópico breve mas importante: a cidade não foi pensada para seus moradores. Para quem mora na periferia, depender de transporte público significa muitas vezes ter que passar horas num caminho que duraria minutos de carro. Temos que sair muito mais cedo, percorrer muito mais quilômetros, atrasar e sermos julgados, ou chegar muito mais cedo que todos e fingir que tudo bem. Aprendemos desde criança a naturalizarmos nosso desconforto em nome do conforto daqueles que não dependem de ônibus.
A revolução e os transportes
Vai parecer aquela velha cartada marxista de que “tudo é culpa do capitalismo”, mas de verdade… É culpa dele sim. Culpa da burguesia que mercantiliza nossa vida, que há séculos constrói nossas cidades a partir das demandas do capital e sem se importar com nosso sofrimento. Que, aliás, vê nosso sofrimento e faz piada, ignora nossa demanda e segue seu rumo em nome do lucro.
Esse é um daqueles temas ótimos de trabalho de base porque é um incômodo latente da classe trabalhadora. E é pouco aproveitado! Os liberais amam a lei da oferta e da demanda (e a descontextualizam para todo tipo de malabarismos), mas cadê que explicam como a maior demanda de melhoria no transporte público (a periferia) recebe o mínimo da oferta de transporte e sem a menor qualidade?
Em várias experiências socialistas, o acesso à cidade e a descentralização da vida social foram prioridade. Comércio, saúde, educação, serviços, lazer, informação… Tudo isso deve ser acessível para todo o povo. Nisso, Cuba, China e URSS são os melhores exemplos que já li, mas não acho proveitoso te prender ainda mais neste texto. Aqui nossa conversa já está bem longa e você, que no começo do texto já caracterizei como alguém naturalmente exausto, deve estar ainda mais cansado e necessitando de um tempo para digerir o que leu.
Na próxima vez que tiver oportunidade de conversar sobre isso com alguém com quem você se sinta confortável em politizar mais a conversa, aproveite. É explícito que não se pode confiar no sistema capitalista para termos acesso à mobilidade urbana de qualidade. Todo trabalhador sabe disso, poucos têm consciência disso. E menos ainda têm conhecimento de que outras formas de organização são possíveis.
A luta pela mobilidade urbana deve caminhar lado a lado com a luta pelo socialismo e pela revolução, porque é a partir da tomada do poder que teremos condições justas para pautar nossa demanda: um modo saudável de acessar a cidade, não só para trabalho, mas também para estudo e para lazer. Até lá, a luta é todo dia, nas ruas, na cidade e no campo, em cada trem, ônibus, barco ou metrô. Pelo poder popular e pelo horizonte em que um dia utilizaremos o transporte público sem que este seja uma das maiores fontes de dor da nossa classe.
*Militante da UJC-AL e criador do canal Saúde Camarada (https://www.youtube.com/@saudecamarada)