Saúde e luta comunitária
Por Rômulo Caires
Militante do PCB da Bahia e da Fração Nacional da Saúde do PCB
Via O MOMENTO
Quando pensamos em saúde geralmente invocamos um objeto que nos é muito caro, muito íntimo, algo que nos move, elixir de nossas vidas. Quem não gostaria de ter boa saúde? Todas as sociedades que existiram sempre elaboraram e organizaram o cuidado em saúde de sua população, mesmo que cada agrupamento tivesse concepções particulares do que seja saúde, muitas vezes confundida com toda sorte de pensamento religioso.
Sendo uma determinação tão arraigada na vida cotidiana, as visões sobre como se pensa e se pratica a saúde são muito influenciadas pela política, pela arte, pela filosofia, enfim pelas várias formas de consciência de uma época. Os antigos pensavam a saúde intimamente ligada com a totalidade da vida, e as doenças eram quebras do equilíbrio do corpo com a natureza. No decorrer das grandes transformações que edificaram o capitalismo ao redor do mundo, se por um lado aumentou as formas de racionalização de proteção da força de trabalho a partir da ciência moderna, por outro houve quebra de equilíbrios anteriores, expropriação de riquezas, crises sanitárias, destruição ambiental.
A medicina chamada de científica tendencialmente atuou pela localização cada vez maior da doença no corpo individual, dando expressão ideal à eventos reais que ocorriam no tecido social. A separação dos trabalhadores dos meios de produção de sua vida material também significou a alienação dos meios de produzir saúde. Se tal evento impulsionou as forças produtivas do trabalho, significou também perda de controle pelos trabalhadores de suas próprias forças vitais. No decorrer do século XX se expandiu ao redor do globo as intervenções biomédicas, a superespecialização das práticas de saúde e o fortalecimento de abordagens desumanizantes.
O avanço da consciência crítica sobre as formas de dominação capitalista, as reações imediatas ao descaso generalizado com a saúde das populações mais pobres, a percepção que a saúde se trata de um complexo de múltiplas determinações, impulsionaram lutas e demandas por reformas da vida social como um todo. A saúde não podia mais ser entendida apenas em seu aspecto individual e biológico, mas passou a envolver diversas camadas da vida cotidiana como moradia, alimentação, educação, acesso ao lazer e a instrumentos culturais, etc.
Em algumas localidades a luta por reformas profundas na vida social desaguou em processos revolucionários, como na Rússia. Em texto anterior abordamos um pouco desta experiência e como ela transformou as concepções e práticas vigentes sobre saúde no século XX. Entretanto, como reação aos avanços do movimento comunista e como uma tentativa de dar respostas aos graves problemas sociais, muitos países capitalistas implementaram modificações nas práticas de cuidado.
Uma nova formulação que surge nos países capitalistas é a de “saúde comunitária”. Com tal visão, a saúde não é mera ausência de doença no corpo, mas o resultado da interação dos seres humanos com o ambiente circundante e o impacto dos sistemas de saúde sobre essas pessoas. O Estado passa a ser mais cobrado pelas melhorias na infraestrutura das cidades, incidindo sobre questões como o saneamento básico e sobre a organização do espaço.
Além disso, a população de determinados territórios passa a ser convocada a maior participação nos destinos do cuidado em saúde. É interessante notar como a expansão da Medicina Comunitária nos EUA acompanha o crescimento das lutas a favor dos direitos civis. Como uma forma de bloquear a revolução social e a transformação radical da sociedade norte-americana, muitas concessões foram feitas aos movimentos revoltosos. Alguns bairros proletários tiveram melhorias, chegaram serviços de saúde e medidas de incremento nos locais de moradia foram realizadas.
No decorrer das décadas seguintes alguns organismos internacionais como o Banco Mundial e o FMI apoiaram o fortalecimento da chamada “participação popular” na organização da saúde e defenderam concepções próprias de “saúde comunitária”. O exemplo norte-americano dos anos anteriores respondia ao desafio de evitar a revolução fazendo pequenas modificações no ordenamento social a partir de políticas focais. A focalização do cuidado em saúde e a abertura de pequenos espaços de participação popular tornou-se uma espécie de política global para os tempos vindouros.
No Brasil, o Movimento Sanitário abraçou a ideia de “participação popular”. Principalmente a partir das propostas de democratização da sociedade brasileira na luta contra a Ditadura, os reformadores da saúde postularam a necessidade de fortalecimento da “sociedade civil” contra o Estado autoritário. Numa espécie de visão neutra da sociedade civil como boa em si mesma, sem conflitos de classe em seu interior, se apoiou a presença do “cidadão” em instrumentos de suposto controle e regulação do Estado. A partir da pressão operada dentro das instituições se objetivou alcançar transformações graduais na situação sanitária brasileira.
Analisando o resultado da implementação da “Medicina Comunitária” nos EUA e os diversos modelos de “saúde comunitária” espalhados pelo globo notamos de forma geral que tais formulações costumam esconder a real natureza da sociedade capitalista e do poder estatal a partir de concepções abstratas de participação popular e da resolução focal de problemas sanitários. Aproveitando da revolta autêntica da população contra a alienação de suas condições de saúde e da desumanização capitalista, aproveitando da aparência de que “participação” significa poder político de fato, as frações burguesas e seus aparelhos de hegemonia cooptaram importantes lutas para que o destino da Revolução Russa não se generalizasse.
A luta comunitária foi nesse sentido compreendida como ocupação gradual dos espaços institucionais como forma de avançar nas reformas em saúde. Postulando uma porosidade infinita do Estado às demandas populares, movimentos de esquerda se desarmaram de suas reivindicações classistas e contestatórias da ordem capitalista. Muitas vezes a participação popular se resumiu a consultorias sem poder real por exemplo sobre orçamentos públicos. A noção abstrata de comunidade muitas vezes dá margem para uma concepção de sociedade “plural”, em que não há conflitos inconciliáveis ou que o Estado pode ser transformado a partir de sua ocupação interna, sem modificação radical de sua natureza.
Com tais proposições não queremos negar a necessidade de questionar os modos de alienação da sociedade capitalista em relação ao cuidado em saúde. Há aspectos verdadeiros por trás das formulações da “saúde comunitária” como a ideia de que a saúde não se resume ao corpo individual, devendo ser transformada também as condições “ambientais”. O problema é que a não nomeação das reais contradições da sociedade capitalista e a não percepção da natureza de classe do Estado, independente de suas condições conjunturais, promove postulações utópicas, quando não mistificadoras.
As lutas comunitárias na saúde não podem assim se conformar como espaços de pressão por “democratização do Estado” ou muito menos de “substituição” do Estado. Se pela primeira via há um gradualismo que impede a percepção da necessidade de ações de força e pela segunda via se oculta possibilidades táticas de utilização da máquina estatal, os comunistas devem defender uma superação dialética dessas posições. A participação em trabalhos ligados ao cuidado “comunitário” e a ocupação de posições institucionais não podem substituir a construção de instrumentos próprios de poder da classe trabalhadora. Não há uma via pacífica e gradual de melhorias sociais sem a confrontação direta da dominação burguesa.
Os trabalhadores da saúde, pela sua posição de agentes do cuidado, os usuários de saúde, pela necessidade imediata de serviços de saúde, podem pensar conjuntamente em medidas para melhorar a situação sanitária de seus territórios. Questionar as formas individualistas das práticas hegemônicas na medicina, reivindicar saberes úteis ao povo mas que foram expropriados, são momentos importantes das lutas comunitárias em saúde. Porém o caminho de superação do reformismo e apassivamento que os modelos hegemônicos de luta comunitária nos delegaram passa por conectar as lutas comunitárias ao mundo do trabalho e a dinâmica da luta de classes.
É preciso entender as determinações sociais do processo saúde-doença e chegar à concepção da necessidade de uma modificação radical da sociedade, de suplantação do capitalismo e construção de um novo modo de sociabilidade. As lutas comunitárias se farão pela unificação em espaços não só consultivos, mas com capacidade de autogestão do cuidado em saúde. Faz-se necessário a construção de Fóruns que abarquem em si organizações classistas que se mobilizam para enfrentar o poder burguês a partir de greves, ações diretas, ocupação de espaços públicos, etc.
Associações de moradores, sindicatos, organismos culturais e partidos políticos se aglutinarão para ações que confrontem diretamente a hegemonia burguesa no sentido de construção da independência da classe trabalhadora. Todavia, não haverá nenhuma expectativa no gradualismo e na ocupação do Estado, mas a leitura das contradições em cada espaço de luta que possibilitarão um avanço da consciência revolucionária. O objetivo não deve ser garantir a “cidadania”, mas a emancipação humana, incluindo a elaboração de um autêntico sistema de saúde a serviço da classe trabalhadora.