Faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço

imagemO jornalismo e os limites da ideologia liberal

Por Antonio Lima Júnior, diretor da Associação Cearense de Imprensa (ACI), militante do PCB e da Unidade Classista

Recentemente, circulou na imprensa o boato acerca da morte de Kim Jong-Un, aquele que costumam chamar de “líder supremo” da Coreia do Norte, ignorando totalmente seu sistema político interno. Confiando em fontes “infalíveis”, os meios de comunicação ocidentais jogaram até a probabilidade de que Kim estivesse morto e o governo norte-coreano tentasse colocar a situação debaixo do tapete. Outros veículos ousaram mais, supondo uma possível sucessão através da irmã de Kim, expondo-a nos piores casos de misoginia que a imprensa ousou criar nos últimos tempos desde o “bela, recatada e do lar“ [1].

Eis que, depois de dias de especulação e tentativas de transformar a política norte-coreana numa versão do Game of Thrones, Kim Jong-Un reaparece, para espanto da imprensa, que anunciou de forma tímida sua aparição, ao contrário do bombardeio de notícias que especularam sua morte. Não é a primeira vez que, a partir de “fontes confiáveis“, a imprensa ocidental comete deslizes com a vida de pessoas da Coreia Popular. Vários são os casos de figuras políticas ou militares que morrem, somem e misteriosamente reaparecem, além dos diversos casos de notícias que buscam criar falsidades sobre o cotidiano da Coreia do Norte, a exemplo das tentativas xenofóbicas nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro em 2016 [2].

A forma como os meios de comunicação se apegam às suas fontes sem a devida checagem nos levam, inicialmente, ao problema da submissão às agencias de noticias, que ocupam boa parte dos noticiários. Essas agências envolvem também o interesse das grandes potências, disseminando informação. Mas esses deslizes não são cometidos somente pelos jornais tradicionais. Até veículos considerados progressistas, como El País, reproduzem esse efeito danoso, a exemplo do caso em que o veículo em questão chegou a questionar a autonomia das universidades venezuelanas quando (pasmem!) a Justiça daquele país resolveu por acatar o voto universal para reitor das universidade, pauta histórica que garante a participação de todo o universo da instituição acadêmica, incluindo os trabalhadores da universidade. Na ânsia de criticar Maduro, o jornal explicou como retrocesso um avanço de invejar muitos países ditos democráticos [3].

Voltando para o caso da Coreia Popular, a atitude da mídia ocidental expõe uma contradição no seu modus operandi: a mesma imprensa que combate a desinformação bolsonarista, através das fake news, reproduz as mentiras quando convém. Utilizam o termo americanizado para confrontar a extrema-direita, mas relativizam suas ações semelhantes, esquecendo que tudo é desinformação e mentira da mesma maneira. O que os jornais buscam nisso é varrer para debaixo do tapete a sua vinculação com a ideologia liberal, ideologia esta que até pouco tempo flertou com o protofascismo bolsonarista, não tremendo a cara ao dizer que era uma escolha “muito difícil“ optar entre a extrema-direita e o reformismo conciliador no segundo turno em 2018 [4].

Para além do caso norte-coreano, o tema das fake news mostra a superficialidade em que o problema é abordado. Nelson Werneck Sodré, ao falar da necessidade de combater uma visão da história como mera sucessão de acontecimentos, exemplifica uma fake news realizada no período entreguerras do século passado, com a carta falsa assinada supostamente por Artur Bernardes para colocá-lo contra os militares durante sua campanha presidencial em 1922. Mas a carta é apenas o estopim de acontecimentos conjunturais, daí o erro de hoje associar a vitória eleitoral de Bolsonaro simplesmente ao mecanismo de disparo de fake news, sem esquecer o processo de fascistização que atravessa o jogo político, lembrando das alianças golpistas que os governos petistas mantiveram (quem não lembra da negociata envolvendo a presidência da comissão de direitos humanos da Câmara em 2013, liderada por Marco Feliciano com aval do PT?) e o desenrolar do contexto geopolítico e das frações burguesas que sustentam a política ultraliberal conservadora.

Em paralelo, governos estaduais tentam suprir o problema das fake news com projetos de leis, verdadeiros fiascos, onde penalizam o compartilhamento de matérias falsas, sem problematizar a produção e a fonte das mentiras, responsabilizando o indivíduo que muitas vezes cai na anedota. Apesar de muitos saudarem a atitude como uma forma de desmascarar o bolsonarismo, esses projetos podem trazer alívio aos veículos que já adotam a mentira como um modus operandi, deixando a batata assada na mão da população desacredita nos meios de comunicação.

Todos esses elementos são insuficientes de serem abordados nos marcos do jornalismo liberal que é exercido hoje. Mais do que nunca é tempo de apontar os limites de uma imprensa que se agarra à crise do impresso com uma simples crise de mudanças tecnológicas e evita, de certa maneira proposital, avançar na raiz do problema. A formação do jornalismo como vemos hoje está intrinsecamente ligada à formação da sociedade burguesa. Entretanto, como aponta a teoria marxista, ou seja, crítica da economia política, é preciso desmantelar essa estrutura liberal da imprensa, não pelo fim do jornalismo, mas para a construção de uma teoria marxista da comunicação, submetida à uma práxis, lembrando as palavras de Adelmo Genro Filho sobre a necessidade de construir “um jornalismo informativo com outro caráter de classe“.

Cabe aos jornalistas, operários da palavra, o papel de assumir uma posição de classe e combater a ideologia dominante nas redações, sem esquecer que essa guerra estará fadada à inconclusão se não estiver ligada ao processo macro de revolução, que aponte para uma sociedade sem patrões gatekeepers, que determinam o valor da notícia. Jornalistas proletários, uni-vos!

[1] https://veja.abril.com.br/blog/mundialista/linda-brava-e-malvada-a-irmazinha-poderosa-de-kim-jong-un/

[2] https://gz.diarioliberdade.org/mundo/item/50533-cinco-mentiras-olimpicas-sobre-a-coreia-do-norte.html

[3] https://brasil.elpais.com/brasil/2019/08/28/internacional/1566946880_854966.html

[4] https://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,uma-escolha-muito-dificil,70002538118

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