Crônica de um genocídio anunciado
PROMETEU CONTINUA ACORRENTADO?
Alex Santos – professor da FACEDI (UECE), militante da Unidade Classista (CE)
Zeus te ocultou a vida no dia em que, com a alma em fúria,
se viu ludibriado por Prometeu de pensamentos velhacos.
Desde então ele preparou para os homens tristes cuidados,
privando-os do fogo [luz que mantém acesa a sabedoria].
(Hesíodo)
O nosso tema exige a princípio dois esclarecimentos conceituais para que posteriormente adentremos nas questões centrais anunciadas pelo título. Primeiro, precisa ser dito quem é Prometeu, a quem se reporta Hesíodo (2012), no enunciado da epígrafe. Esse ser mitológico pertencente à raça dos Titãs, era um benfeitor da humanidade e por duas vezes enganou Zeus (senhor supremo do Olimpo, o deus do raio e do trovão), em benefício de sua espécie preferida, os humanos (BRANDÃO, 2010).
Uma de suas benfeitorias foi ter presenteado homens e mulheres com o fogo, extraído da carruagem de Apolo (deus da ordem, da luz e da música). Segundo a mitologia, a chama prometeica deu aos seres humanos a capacidade de pensar. Ela é a luz do pensamento, da razão.
O segundo aspecto do esclarecimento consiste em especificar o que é genocídio. O termo significa o extermínio, o qual é realizado de forma deliberada e visa grupos específicos, causando um massacre de grandes proporções. A história das lutas de classes tem demonstrado fartamente uma série de ocorrências, convertidas em genocídios que dizimaram civilizações e grupos étnicos inteiros. Destaquemos a colonização da América que fez a limpeza étnica dos povos originários (Maias, Incas, Astecas; Guaranis, Tupinambás, entre muitos outros) e a eugenia nazifascista que massacrou judeus, comunistas, LGBTTQI+, fundada na ideia de purismo racial e moral.
Dito isto, passemos para o tema central, ou seja, a reabertura das atividades econômicas e comportamentais que, na perspectiva ideológica do governo, foi anunciada como “retomada responsável”. O documento amplamente divulgado pela mídia (disponível em <https://www.ceara.gov.br/2020/05/28/confira-o-plano-responsavel-de-abertura-das-atividades-economicas-e-comportamentais/>), que entrou em vigor no primeiro dia de junho de 2020, poderia muito bem receber a nomeação de “Plano Tânatos” – deusa da morte para a mitologia greco-clássica – ao sacramentar uma exposição da classe trabalhadora aos riscos de contaminação pela COVID-19 e sua alta taxa de letalidade.
Vejamos que a opção governamental, ao adotar fatídico plano, foi pela necropolítica (política da morte). Fundada numa escolha racional de quem vai morrer, a qual recai sobre trabalhadoras(es) pauperizadas(os). Estes serão expostos ao risco e enfrentarão a morte cotidianamente. Caso contrário, perderão os empregos e os salários, o que não é vantagem, pois sem trabalho e sem renda estarão sujeitos à fome e serão levados a morrer por inanição. O que os fazem escolher a primeira opção: ir trabalhar, apesar da insalubridade laboral em qualquer atividade em plena curva ascendente da pandemia.
Tal reabertura é precipitada e coloca a classe trabalhadora numa roleta russa, frente a frente com a deusa Tânatos. Jogo extremamente perigoso e uma demonstração de que no Ceará o poder executivo optou pela consigna do capital financeiro e especulativo “os lucros acima da vida” e, não o contrário, “a vida acima dos lucros” – lema defendido pelas organizações classistas que não compactuam com a política de conciliação de classes, tão pouco das estratagemas insanas do capital.
Na luta entre capital (empresários) e trabalho (povo pobre trabalhador), Camilo Santana (PT), fez a opção pelo capital e coloca em operação um plano genocida. No momento em que os números do “extermínio” aumentam, consideravelmente, no Ceará.
O crescimento exponencial da curva de infectados e mortos no Estado, conforme números divulgados pela Secretaria de Saúde, demonstra o tamanho do equívoco do governo em ter afrouxado as regras do distanciamento social, no atual momento. Caso não volte atrás de sua decisão, Camilo Santana (PT) estará sendo conivente e responsável indireto pela mortandade que se ampliará sobre trabalhadoras(es) pobres, pretas(os) e periféricas(os). Frações da classe que serão atingidas em proporções maiores e com efeito devastador. Se não bastasse a superexploração, agora teremos a consumação de um genocídio com o aval do Estado e de sua gestão governamental.
Ao que parece, desta vez o povo pauperizado não terá o auxílio mítico e nenhuma benfeitoria de Prometeu, que como nos informa o mestre da tragédia Ésquilo, o titã se mantém acorrentado nos grilhões construídos por Vulcano ou Hefesto (deus ferreiro e ourives):
Cumpre-te agora, ó Vulcano, pensar nas ordens que recebeste de teu pai, e acorrentar este malfeitor, com indestrutíveis cadeias de aço, a estas rochas escarpadas. Ele roubou o fogo, – teu atributo, precioso fator das criações do gênio, para transmiti-lo aos mortais! Terá, pois, que expiar este crime, perante os deuses para que aprenda a respeitar a potestade de Júpiter [Zeus], e a renunciar seu amor pela humanidade (ÉSQUILO, 2005, p. 5).
O crescimento dos números de casos da COVID-19, bem como o aumento das mortes que tem como causa o coronavírus, no território alencarino, anunciados no dia 02 de junho em matéria d’O Povo (jornal impresso do estado) são estarrecedores e confirmam que Prometeu não tem como interferir pelas(os) que estão condenadas(as) à morte, em função da reabertura das atividades econômicas. O titã continua acorrentado nos montes escarpados nos confins de Gaia (mãe Terra), sendo devorado rotineiramente pela ave sanguinária de bico afiado e impedido de interferir no caso dos humanos.
Feito de material divino e sagrado,
das sementes celestiais ocultas,
Prometeu travou diversas lutas
e a sabedoria deixou como legado.
Ao homem o fogo de presente deu,
salvando de pavorosa escravidão
a vida de quem estava na escuridão,
por isso colossal castigo recebeu…
Esse Titã de sentimento bondoso,
enfrentou a ira do poderoso Zeus,
o famoso líder, o Grande deus
que com ele não foi generoso.
Seu ato heroico deixou Zeus irado,
que a Hefesto, seu filho, logo recorreu
para acorrentar o gigante Prometeu
e o aprisionar em monte escarpado.
Foi preso, assim, o amigo do homem,
cruelmente no isolamento castigado.
Dia a dia o fígado é todo dilacerado
por malvado pássaro que o consome
(SANTOS, 2015, p. 77).
Com Prometeu fora de combate, o título da matéria “Coronavírus: Ceará tem recorde de 316 mortes registradas em um dia” (O POVO, 2020, paginação irregular) reforça o nosso argumento de que estamos diante de um genocídio anunciado. O que fica mais evidente com os índices de contaminação, cura e mortes. Os números são os melhores argumentos que confirmam o estilo fúnebre, sem direito ao dobre de finados, que começou a operar neste início de junho em solo cearense. Mais de 300 mortes em um único dia é o retorno à poética trágica de Boccaccio (s.d) e Camus (s.d), dois clássicos da literatura que narram o drama da humanidade tentando fugir da peste bubônica.
Os dados não deixam dúvida sobre a postura genocida que entrou em curso no Estado, com o propósito dissimulado de exterminar a classe trabalhadora assalariada. O fato não é uma novidade se nos atentarmos à lógica que move os interesses perversos do capital, ou seja, os lucros, por meio da superexploração do trabalho. A postura do Estado, também, só reforça a tese do filósofo húngaro István Mészáros de que este existe para garantir e proteger o direito de propriedade, assumindo a condição de braço direito do capital (MÉSZÁROS, 2002).
O plano anunciado na última semana de maio para a retomada da economia cearense, mesmo no auge do contágio da população por coronavírus, é um exemplo nu e cru da tese de Mészáros. E, por Prometeu manter-se prisioneiro dos grilhões que Hefesto pois em suas mãos e pés, a pedido de Zeus, a classe trabalhadora, depende nesse momento de sua coletiva reorganização em caráter de urgência para se proteger da morte.
O que fazer para não ser exterminada pelo plano macabro de Camilo Santana e a pandemia em curso? Primeiro, tem que se reorganizar como classe e contra-atacar, decidindo coletivamente a permanecer em casa. Segundo, colocar em prática a desobediência civil diante das determinações impostas pelo Estado para atender os interesses do capital. A desobediência civil com a postura de ficar em casa e defender a vida é uma forma de enfrentamento da necropolítica. Terceiro, exigir do Estado a taxação das grandes fortunas e a realização da moratória da dívida pública para que esses recursos sejam canalizados no atendimento das necessidades reais da classe trabalhadora assalariada, a curto e médio prazo, atendimento que deve permanecer durante o período pandêmico e nos três meses subsequentes à pós-pandemia.
A vida acima dos lucros. Todas as vidas importam!
Referências
BOCCACCIO, Giovanni. Decameron. Trad. Ivone C. Benedetti. Porto Alegre: L&PM, eBOOK. Disponível <file:///C:/Users/alexi/Downloads/Decameron_-_Giovanni_Boccaccio.pdf> Acesso 3 jun. 2020.
BRANDÃO, Junito. Dicionário mítico-etimológico. 5. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.
CAMUS, Albert. A peste. Trad. Daniel Defoe. LeLivros.net: eBooks. Disponível em <https://s2.asdfiles.com/26mcb?pt=VFZaVVIwMHdVMFJpVnpocE4wRllZVU5MUmtORmR6MDlPbi9rKzN3eEl6UHV2MU4rcW9ucmltQT0%3D> Acesso 3 jun. 2020.
ÉSQUILO. Prometeu Acorrentado. Trad. J. B de Mello e Souza. eBooksBrasil, 2005. Disponível em <http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/prometeu.pdf> Acesso 3 jun. 2020.
HESÍODO. Os trabalhos e os Dias. Trad. Alessandro Rolim de Moura. 22. ed. Curitiba: Segesta, 2012.
MÉSZÁROS, István. Para além do capital. Trad. Paulo César Castanheira; Sérgio Lessa. 1. ed. São Paulo: 2002.
O POVO. Coronavírus: Ceará tem recorde de 316 mortes registradas em um dia. Notícia. Disponível em <https://www.opovo.com.br/coronavirus/2020/06/02/coronavirus-ceara-mortes-casos-covid-19-hoje-terca-2-junho-02-06.html> Acesso 3 jun. 2020.
SANTOS, José Alex Soares. Encontros poéticos: lamentos d’alma e gritos do povo. Fortaleza: EdUECE, 2015.