Reflexões fanonianas sobre a pandemia

imagemA humanidade partida

Por Jones Manoel

Precisamos interromper o moinho de gastar gente e finalmente começar a pensar numa das principais tarefas da revolução socialista no século XXI: impedir a extinção da espécie humana a partir de um novo humanismo integral surgido das entranhas do poder popular e que conseguirá, finalmente, retirar o gênero humano do abismo da barbárie.

A pandemia é um tempo de descobertas. Vários analistas, jornalistas, economistas e pensadores liberais estão descobrindo a determinação social do processo saúde-doença. Sim, pessoas da classe trabalhadora têm maior potencial de contraírem doenças cardíacas, complicações respiratórias, diabetes, hipertensão e outros problemas. A síntese expressiva dessa realidade é a diferença de expectativa de vida em bairros burgueses e bairros proletários: em São Paulo, moradores de Cidade Tiradentes, no extremo leste do município, podem viver até 23,3 anos menos que os moradores de Moema, bairro “nobre” – isto é, burguês! – da zona centro-sul. A classe não explica tudo, ela estrutura o todo.

A classe, porém, não é uma abstração no espaço e no tempo. Ela tem concretude histórica e determinantes que fazem com que a classe trabalhadora, em países como a França, não seja exatamente a mesma no Brasil. Ambas são exploradas vendendo sua força de trabalho ao capital, porém não são iguais. Foi Marx, no livro III de O capital (editado pelas mãos de Engels), que chamou atenção para o fato de que a mesma base econômica, o capitalismo, manifesta-se em “infinitas variações e matizes”, dadas as “circunstâncias empíricas de diversos tipos” como “condições naturais, raciais, influências históricas externas etc.” (O capital, livro III, Boitempo, 2017, p. 852).

Na particularidade histórica concreta do Brasil, é impossível pensar o processo de acumulação capitalista, as classes e suas lutas, sem os determinantes raciais, de gênero, sócio-geográficos e outros. As desigualdades de classe, historicamente, se concretizam a partir de uma materialidade racial e sexual. Tem razão Fanon ao provocar e dizer:

“Nas colônias, a infraestrutura econômica é também uma superestrutura. A causa é consequência: alguém é rico porque é branco, alguém é branco porque é rico. É por isso que as análises marxistas devem ser sempre ligeiramente distendidas, a cada vez que aborda o problema colonial. Até mesmo o conceito de sociedade pré-capitalista, bem estudado por Marx, deveria ser respondido aqui […]. Nas colônias, o estranho vindo de fora se impôs com ajuda dos seus canhões e das suas máquinas. A despeito da domesticação bem sucedida, apesar da apropriação, o colono continua sempre sendo um estranho. Não são nem as fábricas, nem as propriedades, nem a conta que caracterizam primeiramente a ‘classe dirigente’. A espécie dirigente é primeiro aquela que vem de fora, aquela que não se parece com os autóctones, ‘os outros’.”

Frantz Fanon, Os condenados da terra, 3° reimpressão (Minas Gerais, Editora UFJF, 2015), p. 56-7.

A provocação de Fanon não pode ficar restrita apenas ao mundo colonial. Sim, o colonialismo, uma ocupação militar reproduzida por uma burocracia civil e policial, cria um universo segmentado e segregado no qual, em todas as dimensões, a racialização é colocada de maneira explícita e fundamental. Desde o nível jurídico-político até a organização do espaço urbano, a raça não explica tudo, mas estrutura o todo. Em países de origem colonial e formados a partir de 300 anos ou mais de escravidão, a raça e a classe são unidas, e a classe se expressa a partir de determinantes raciais.

“Legalmente, constitucionalmente [brancos e homens de cor] têm os mesmos direitos e oportunidades. Na prática, o negro, os mulatos encontram no Brasil numerosas limitações. É impossível dizer onde estas são impostas por motivos de ordem racial ou de classe. Porque a quase totalidade da população negra do Brasil pertence às camadas proletárias ou semiproletárias”

Rui Facó, Brasil Século XX (Rio de Janeiro, Editorial Vitória, 1960, p 23-4.

A pandemia também é um momento de descoberta para alguns de que o mito da democracia racial é, veja bem… um mito. Segundo o boletim epidemiológico da prefeitura de São Paulo de 30 de abril, pessoas negras têm 62% a mais de chances de morrer pela covid-19 do que as brancas. A combinação de mulher, negra e trabalhadora – um cruzamento dos principais complexos determinantes da realidade material – revelaria números ainda mais dramáticos.

A denúncia dessa realidade, por mais fundamental que seja, não vai resolver o problema agora. É um problema que só se resolve, ou melhor, só começa a se resolver com uma revolução: a construção do poder popular e algumas guilhotinas para a burguesia – permita-me usar uma metáfora jacobina, já que essa, mesmo para o liberalismo de esquerda reinante, ainda é aceitável.

Esse problema, que em nossa terra tem nome e sobrenome – capitalismo dependente – está escancarado. É como uma ferida que sangra. Fanon afirmou que a desalienação do negro, fruto da práxis revolucionária, precisa de uma súbita tomada de consciência das “realidades econômicas e sociais”. Essa realidade passa por um duplo processo – “inicialmente econômico” – e “em seguida pela interiorização, ou melhor, pela epidermização dessa inferioridade” (Frantz Fanon, Pele negra, máscaras brancas, Bahia, ADUFBA, 2008, p. 28). As formas de ser do capitalismo dependente, assumidas como naturais, invisíveis, biológicas, ficam expostas em momentos como este: a exceção histórica, a pandemia, nos permite ver com mais clareza a regra da exploração e opressão cotidiana.

As estruturas de desigualdade e dominação não se explicitam apenas no nível interno de cada país, também vêm à tona de maneira escancarada em nível global. Os países da periferia do sistema capitalista foram destruídos por décadas de programas de modernização recomendados (um eufemismo para dizer “empurrados goela abaixo”) pelo FMI, o Banco Mundial, os doutores das faculdades de economia e os políticos com “responsabilidade fiscal” que potencializaram a pobreza, desigualdade, miséria, fome e precariedade de serviços públicos de saúde, saneamento, qualidade da moradia, assistência social. Resultado? Uma incapacidade estrutural de responder às demandas de controle do vírus – incapacidade aumentada por uma burguesia inútil e que não serve para nada.

Teremos, ao que parece, muitos cenários como o que temos visto em Guayaquil. A cidade equatoriana é um filme de terror onde, depois de milhares de corpos nas ruas, com o poder público sem conseguir recolher adequadamente todos os mortos, urubus sobrevoam os céus sentindo o cheiro da morte. Os Estados Unidos, porém, não estão satisfeitos com esse céu de urubus. Querem muito mais. No concerto das nações, alguns países são plenamente soberanos e outros são povos racializados, dominados pelo imperialismo, ameaçados, atacados, violados e bloqueados.

No meio da pandemia, o governo estadunidense intensificou o bloqueio econômico contra Síria, Cuba, Venezuela, Irã e Coreia Popular. As autoridades internacionais, como a OMS, recomendam suspender o bloqueio. Seria um ato humanitário, mas quem é ingênuo suficiente para esperar humanidade do imperialismo? O comandante Che Guevara já avisou que não é possível confiar no “imperialismo nem um tantinho”, e nos avisava da “bestialidade do imperialismo”. Mas quem, fora os comunistas acusados de “radicais demais”, poderia esperar ver cenas do Império estadunidense, o grande exemplo de Adolf Hitler, roubando aparelhos respiradores e de UTI e material médico hospitalar do mundo todo?

Só que tudo pode piorar. No meio da maior pandemia das últimas décadas, os Estados Unidos têm envolvimento direto numa tentativa de invasão militar na Venezuela realizada por mercenários gringos e associados – os “Rambos” da vida real. Os mercenários, numa história épica típica do realismo fantástico da vida política da América Latina, são capturados por pescadores locais membros da milícia bolivariana. Os trabalhadores e trabalhadoras, todos negros, pardos, indígenas, dançam e comemoram o feito. Um gosto bom de Vietnã e de Baía dos Porcos vem à memória.

Tudo isso, quando é noticiado, é feito sem condenação moral, pregações sobre democracia e direitos humanos, defesa do humanismo e da solidariedade. No máximo, a culpa é personalizada na figura do presidente Trump. O Império pode tudo, massacrar a todos, atuar como uma SS nazista de alcance planetário e, no final, assim como a destruição da Líbia, tudo vira apenas memória de alguns poucos militantes. Os bárbaros, os violadores dos direitos humanos e da democracia, estão apenas no Sul do mundo.

Por falar em Sul do mundo, muitos ainda não despertaram para o papel do intelectual colonizado – e eu amplio para a periferia do sistema como um todo –, que é “combater as mentiras colonialistas” e “mergulhar nas entranhas do seu povo” (Os condenados da terra, p. 244) e continuam esperando as bênçãos e graças do Ocidente. Buscam ignorar, ou até ocultar, que China, Vietnã, Laos, Coreia Popular, Cuba e Venezuela são exemplos no combate à covid-19. Aliás, a Alemanha, mostrada como exemplo de sucesso, tem 5 mil mortes, e o Vietnã, país que faz fronteira com a China, tem menos de mil contaminados e até agora nenhuma morte.

Essa negação eurocentrada de reconhecer a falência do Ocidente e os méritos dos povos periféricos, em sua maioria governados por Partidos Comunistas, se apressa a partir de uma postura pseudocrítica: não é possível confiar nos dados desses países já que eles são ditaduras, não têm liberdade de expressão, o partido controla tudo, e viva 1984 de George Orwell. A questão básica e ignorada é que os dados de países como China, Vietnã, Cuba e Coreia Popular, por exemplo, são atestados pela OMS e por instituições como a Universidade Johns Hopkins. Se os dados para esses países são falsos, por que os dados para Itália, França e Inglaterra, só para ficar em alguns exemplos, seriam verdadeiros? Não são as mesmas instituições com os mesmos critérios de validação e checagem para todos os países do mundo?

Esse princípio da desconfiança sem fundamento, ou tentar explicar o sucesso de países como China e Vietnã pelo autoritarismo ou uma suposta cultura autoritária de toda Ásia, é o bom e velho racismo colonial. É a incapacidade sistemática de aceitar que os países oriundos da periferia do capitalismo conseguem realizar um feito civilizatório que hoje Europa Ocidental e Estados Unidos são incapazes. É inaceitável, para uma mente filo-ocidentalista, mesmo entre os marxistas, conceber que os herdeiros de Mao Tsé-Tung, Ho Chi Minh e Kim Il-Sung estão melhores que os herdeiros de John Locke, Alexis de Tocqueville e o Barão de Montesquieu. Contudo, a realidade comprova isso a cada dia. Enquanto os Estados Unidos lutam para monopolizar e lucrar com a futura vacina da covid-19, a China já se comprometeu a distribuir de graça e universalmente qualquer vacina que desenvolver.

A partir de tudo isso, a conclusão que se encaminha é inequívoca. A humanidade, enquanto a unidade do gênero humano numa comunidade de interesses histórico-universais, não existe. É uma potencialidade não realizada. A ameaça ao gênero humano como um todo, a exemplo da atual pandemia, não vai produzir um apagamento dessas contradições dilacerantes. Não existe cooperação real entre a maioria dos países para um enfrentamento global e coordenado ao vírus, assim como a classe dominante de cada país, quando não busca matar a força de trabalho sobrante, afirmando não querer “parar a economia e preservar o emprego”, adota medidas tímidas, longe do necessário.

O número de mais de 300 mil mortos pela covid-19, sabidamente subnotificado, vai crescer até a escala dos milhões até o final do ano. O Brasil, por exemplo, é o segundo país com mais infectados no mundo – até o dia 02 de junho, 531 mil casos. Dada a ausência de testes em massa, é possível afirmar que já podemos estar muito próximos do primeiro, superando os Estados Unidos. Considerando os números atuais, é lícito supor que, no final de agosto ou no meio de setembro, podemos ter uma média de 10 mil mortos por dia. Quase todos negros, quase todos favelados, quase todos trabalhadores/as. Enquanto isso, nos bairros “nobres”, dos nobres que escaparam de Robespierre e Toussaint Louverture, seguem-se as comemorações, festas chiques e o trabalho das empregadas domésticas negras.

Tendo isso em mente, não consigo compreender o otimismo de quem imagina um mundo pós-pandemia com a derrota do neoliberalismo ou uma realidade pós-capitalista. Tal otimismo é tão irrefletido quanto o pânico liberal, com charme foucaultiano, de um aumento do biopoder do Estado e redução da liberdade – engraçado como 30 anos de congelamento do salário e destruição de direitos sociais e econômicos, na cabeça de certos “pensadores críticos”, não reduziu a liberdade. O que defendemos? A intransigência crítica de Fanon.

Ao debater com Octave Mannoni, Fanon recusa a atitude do psicanalista francês de buscar exemplos de uma sociedade um pouco menos racista ou dizer que a França, se comparada com os Estados Unidos, tem “menos racismo”. O intelectual da Revolução Argelina diz que “defendemos, de uma vez por todas, o seguinte princípio: uma sociedade é racista ou não o é. Enquanto não compreendermos essa evidência, deixaremos de lado muitos problemas”; e completa dizendo que “é utópico procurar saber em que um comportamento desumano se diferencia de outro comportamento desumano” (Pele negra, máscaras brancas, p. 85).

Não se trata de imaginar um mundo um pouco melhor, uma humanidade um pouco regenerada, um capitalismo um pouco mais igual. Essa postura é mais que inócua, inútil e ingênua: ela é contrarrevolucionária. O risco de guerras nucleares, catástrofes climáticas e doenças globais, como a covid-19 e a fome que atinge quase 1 bilhão de pessoas no mundo, pedem uma negação radical da negação da humanidade. Exigem um enfrentamento sério, global e sistemático ao capitalismo, colonialismo e neocolonialismo.

Ainda na polêmica com Mannoni, Fanon levanta-se contra o argumento do psicanalista que defendia ser a exploração colonial e o racismo colonial diferente de outras formas de racismo e exploração. Ora, são diferentes? Sim, claro. Assim como o plantador de cacau de Costa do Marfim não é explorado do mesmo jeito que o operário italiano da Fiat. Todavia, se a diferença é importante, a unidade é fundamental. E o verdadeiro pensamento crítico, entendendo o particular, busca não perder de vista o universal:

“Todas as formas de exploração se parecem. Todas elas procuram sua necessidade em algum decreto bíblico. Todas as formas de exploração são idênticas pois todas elas são aplicadas a um mesmo “objeto”: o homem. Ao considerar abstratamente a estrutura de uma ou outra exploração, mascara-se o problema capital, fundamental, que é repor o homem no seu lugar.”

Frantz Fanon, Pele negra, máscaras brancas, p. 87.

Temos muitos motivos para defender uma revolução e está cada vez mais claro que o capitalismo está nos levando para um beco sem saída, com consequências irrecuperáveis. Os desafios cada vez mais globais são impossíveis de serem respondidos globalmente dentro das coordenadas atuais. A humanidade está partida, fraturada, patológica. Precisamos, rapidamente, acertar as contas com a nossa classe dominante, responsabilizá-la por cada morte da covid-19, cada morte nas favelas, cada morte no campo, cada morte chamada de “acidente de trabalho”. Precisamos interromper o moinho de gastar gente e finalmente começar a pensar numa das principais tarefas da revolução socialista no século XXI: impedir a extinção da espécie humana a partir de um novo humanismo integral surgido das entranhas do poder popular e que conseguirá, finalmente, retirar o gênero humano do abismo da barbárie.

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Jones Manoel é pernambucano, filho da Dona Elza e comunista de carteirinha. Começou sua militância na favela onde nasceu e cresceu, a comunidade da Borborema, construindo um cursinho popular, o Novo Caminho, junto com seu amigo Julio Santos (ele, Julio e outro amigo, Felipe Bezerra, foram os primeiros jovens da história de Borborema a entrar em uma universidade pública). Depois de dois anos com o cursinho popular, passou a militar no movimento estudantil em paralelo ao seu curso de história na UFPE. Pouco tempo depois, ingressou nas fileiras da UJC (a juventude do PCB). Ativo no movimento estudantil até 2016, hoje atua no movimento sindical e na área da educação popular. Mestre em serviço social, atualmente é professor de história, mantém um canal no YouTube e participa do podcast Revolushow. Segue militante do PCB. Escreve para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.

A humanidade partida: reflexões fanonianas sobre a pandemia

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