Sobre as milícias

imagemThiago Sardinha*

Queria fazer uma reflexão provocativa sobre algo que vem sendo utilizado de forma ampla e generalizada, daí aparecem algumas questões: 1) que bom que certas discussões ganham amplitude; 2) nem sempre essa amplitude é na mesma proporção da sua qualidade, o que causa imprecisão nas suas abordagens. O fato é: existem exageros e também existe a necessidade de ter cuidado. Diante disso, queria falar um pouco sobre o que considero “milícia” e especificamente na cidade do Rio de Janeiro. Pretendo pontuar também rapidamente sobre os limites e exageros das abordagens sobre a milícia no Brasil e no Rio de Janeiro. Destacarei formas de organização, práticas de controle e sua relação com o Estado. Sem fugir do objetivo de discutir os limites e exageros, vou ater-me às absurdas comparações entre milícias do Rio de Janeiro com as “milícias” da Venezuela.

Cada vez mais escândalos envolvendo a família Bolsonaro vêm sendo associados como práticas milicianas. Com muito cuidado e olhando mais de perto, queria dizer que não compactuo com esta sentença. Dizer isso não é o mesmo que defendê-la de suas articulações com milicianos notórios. Meu objetivo é pontuar alguns elementos de forma a contribuir com o debate.

A Zona Oeste do Rio de Janeiro e a Baixada Fluminense possuem (infelizmente) como marca histórica a ação constituída de grupos armados, incluindo a milícia. Milícia que tradicionalmente é também associada a grupos paramilitares e grupos de extermínio, em que estes possuem armamento e reproduzem práticas militares mesmo sendo civis. Na Zona Oeste do Rio de Janeiro, na região cortada pela Avenida Cesário de Melo, estes grupos possuem não apenas acesso ao armamento pesado, mas também domínio territorial, exploração econômica generalizada, além das tradicionais como transporte de Van, venda de gás, serviço de entrega de água e TV por assinatura.

O grupo que ficou mais conhecido desta região foi a chamada Liga da Justiça. Atualmente esta mesma região é controlada pelo Ecko, sujeito que representa algumas mudanças na forma de dominação territorial e perfil integrante. Por exemplo, no período de controle da Liga da Justiça era muito comum e quase exclusivos participação e envolvimento de policiais civis e militares, guardas Municipais e até bombeiros, agentes penitenciários, ex-militares e muito poucos civis. Com o Ecko, temos muito mais civis, menos policiais, muito ex-traficante do varejo e muita gente desempregada que vê na milícia uma oportunidade de “trabalho”. Não podia deixar de comentar o terror implementado pela milícia nos territórios em que exercem seu domínio. Além da exploração econômica que já mencionamos, execução sumária e sumiço de pessoas também são características recorrentes. Tudo isso para alcançar seus objetivos, muitas das vezes sendo eleitoral, porém, não se encerrando neste.

A milícia como grupo armado violento atuante no espaço urbano periférico da cidade do Rio de Janeiro não apenas disputa território com outros grupos, mas assimila suas práticas com as dos grupos de extermínio e das facções do varejo. Sua herança histórica pode ser encontrada nos cavalos corredores e esquadrão da morte, outros grupos armados conhecidos do cotidiano violento da periferia da cidade do Rio de Janeiro.

Um ponto que é interessante e mais complexo é a sua relação com o Estado. Muito se fala que a milícia “é o Estado” apenas por envolver agentes do Estado, principalmente funcionários públicos das forças de segurança. Esta afirmação advém de leituras acerca do Estado em que, partindo do ponto de vista moral, há uma predisposição para exercer este tipo de controle. Estou convencido de que esta parte da discussão é mais complexa do que aparenta. Veja, é notório que milicianos usem o Estado para ampliar suas atividades e para lhes dar proteção quando assim necessitarem, e proteção de quem? Do Estado! Portanto, isto explica a entrada e até acordos com políticos do Legislativo ou mesmo os próprios milicianos almejando carreira política. É neste ponto que muitos irão afirmar que a família Bolsonaro representa, sim, uma milícia. Eu perguntaria: qual? Pois mesmo a proximidade de Flávio Bolsonaro com o miliciano Adriano não o caracteriza como miliciano que realiza execução sumária para controle territorial com exploração econômica. Volto a dizer, é mais complicado do que parece.

Eu diria que ocorre muito mais uma “decomposição do Estado em uma estrutura miliciana” do que a milícia virar um instrumento de ação do Estado, que no caso brasileiro se junta com as características de um Estado de capitalismo dependente e periférico. O que a milícia exerce hoje se parece bastante com as regras de Estado de Exceção, com as quais muitos se espantam por somente agora compreenderem o que a periferia, Zona Oeste do Rio de Janeiro, já experimenta por anos. Seria mais uma expressão da perda de monopólio da violência pelo Estado do que o Estado ampliando sua capacidade de exercer o monopólio da violência.

O que faz muitos afirmarem que a família Bolsonaro é uma milícia decorre da aproximação de facções de dentro das Forças Armadas, Polícias Civis e Militares e até mesmo da Polícia Federal, que, juntos, compõem o Bolsonarismo. Concordo com este raciocínio até certo ponto, pois não considero que a família Bolsonaro possua uma milícia nacional nos moldes que comentei acima, a exemplo da Liga da Justiça ou da quadrilha do Ecko, mas que ocorre um alinhamento ideológico entre esta mesma milícia e o Bolsonarismo. Este não depende da Família Bolsonaro para a sua manutenção e ampliação. Qualquer atividade ilícita de facções policiais não deve ser enquadrada como milícia, seria um apressado engano.

AS MILÍCIAS CARIOCAS E OS COLETIVOS POPULARES BOLIVARIANOS

Apenas para relembrar, a milícia do Rio de Janeiro possui uma formação histórica em outros grupos armados comuns na periferia da cidade, como os grupos de extermínio de execução sumária, facções policiais, como os cavalos corredores e esquadrões da morte, jogo do bicho, além daqueles sujeitos “matadores de bairros”. A milícia também atua com o objetivo de realizar a exploração econômica generalizada através do domínio territorial com práticas militares e conta com a participação (e até liderança) de agentes do Estado, como policiais militares (ativos, aposentados e expulsos), policiais civis, guardas municipal, bombeiros e civis. Nessa teia de ações acrescentam-se as execuções recorrentes, tortura e desaparecimento de moradores dos territórios controlados por estes grupos.

É comum encontrar na imprensa liberal diferentes formas desonestas, caluniosas e até criminosas sobre a Venezuela. Tal atividade recebeu muito eco na extrema direita brasileira, servindo até de programa para campanha eleitoral: “O Brasil não será uma Venezuela”, “Deus me livre o Brasil virar uma Venezuela. ”

Na verdade, esta comparação dos grupos que atuam na Venezuela com as milícias cariocas é grotesca já pela própria classificação. Em alguns países latino-americanos o termo “milícia” teria outra conotação, principalmente, política e revolucionária. Portanto, milícia aqui no Brasil possui significado associado ao crime organizado e, fora do país, possui um significado político. Nesse sentido, as práticas da milícia que atua no Rio seriam classificadas como grupos “paramilitares” por estes países. Isto já é motivo suficiente para causar tanta confusão. A outra forma que ajuda a compreender como é impossível fazer este tipo de comparação é pela sua formação histórica. Vejamos.

As chamadas “milícias” venezuelanas são conhecidas popularmente como Brigadas Bolivarianas. Estas Brigadas são formadas por civis que recebem treinamento militar, pertencentes aos diferentes coletivos de bairros que também se juntam às Brigadas para formarem, juntamente com o exército, marinha, aeronáutica e guarda nacional, a Força Armada Nacional Bolivariana. Além desses, existem outros coletivos que não fazem parte das brigadas, mas que possuem atuação armada em áreas estratégicas do território venezuelano. Estes coletivos são reconhecidos pelo Estado, principalmente por atuarem em momentos de emergência e interesse nacional.

O objetivo do governo de Nicolás Maduro é contar com mais de 1 milhão de integrantes das Brigadas dispostos a defender a soberania nacional diante dos frequentes ataques promovidos pelos EUA em conluio com paramilitares colombianos. Só de coletivos são mais de 80 espalhados pelos bairros populares da Região Metropolitana de Caracas. Os coletivos mais conhecidos são os dos bairros La Piedrita (o mais antigo, com 34 anos), 23 de Enero e Coletivo Catedral Combativa. Estes coletivos estão politicamente comprometidos e ideologicamente afinados com a Revolução Bolivariana, estão sempre nas ruas defendendo os interesses nacionais diante dos grupos armados de direita chamados de guarimbas.

Com a clareza dos seus propósitos, os coletivos usam o lema herdado de Hugo Chávez de que a “Revolução Bolivariana é uma revolução pacífica, mas não desarmada” e assim reafirmam seus compromissos que já vêm de longe. As origens dos coletivos remetem aos grupos de luta armada da década de 1960, é também daí que surge o nome “coletivo”. Diante da violenta repressão que sofriam, havia a necessidade de andarem juntos para se protegerem e garantir a sobrevivência, pois só no bairro 23 Enero foram mais de 130 lideranças políticas assassinadas. A maioria dos fundadores e integrantes dos coletivos têm como origem política organizações como o PCV (Partido Comunista da Venezuela) e o MIR (Movimento Revolucionário de Esquerda), por exemplo, que aderiram à luta armada nos anos 1960 e 1970. Os integrantes vão desde militares até professores, agricultores e outros trabalhadores de diferentes áreas. É importante ressaltar que os coletivos e as brigadas não realizam policiamento e nem fazem controle armado da sociabilidade com as práticas militares que lhe foram repassadas, pelo contrário, vivem normalmente suas vidas nas suas ocupações diárias, pegando em armas apenas em momentos de tensões de interesse nacional. Os coletivos de guerrilhas que atuavam nessa época foram colocados na ilegalidade e foi somente no início do governo de Hugo Chávez que voltaram à legalidade de forma que fossem reconhecidos pelo Estado, juntando-se com as Brigadas Bolivarianas conforme dissemos acima.

Diferentes das milícias cariocas, as Brigadas Bolivarianas são politizadas e com propósitos claros de defesa da soberania nacional. Esta perspectiva passa longe das milícias cariocas, as quais cumprem um papel de manutenção da violência e extermínio contra o povo trabalhador das periferias. Para se ter uma ideia, recentemente a Venezuela sofreu duas tentativas de invasão por paramilitares armados estrangeiros compostos por mercenários norte-americanos com experiência nas invasões do Afeganistão e Iraque e que faziam parte da Guarda Presidencial de Donald Trump, a chamada Operação Gedeón. No entanto, foram presos pelos coletivos populares de bairro, os quais a imprensa brasileira insiste em comparar com as milícias daqui. Esta incursão era mais um plano de Juan Guaidó tentando dar um golpe de Estado. No caso brasileiro, participam de golpes e relações mafiosas com políticos e o Estado.

Diante da exposição feita até aqui, portanto, com toda certeza, é impossível comparar as milícias que atuam como agentes da militarização do espaço urbano no Rio de Janeiro, com os coletivos populares de bairro da Venezuela. Na próxima oportunidade, tentarei falar um pouco sobre os grupos paramilitares colombianos, aliás, estes sim, são muito parecidos com as milícias cariocas.

FONTES:

1- https://www.brasildefato.com.br/2019/04/26/militares-com-vida-civil-conheca-a-rotina-da-brigada-bolivariana-na-venezuela?fbclid=IwAR3w0wJujGgC4MI1pNvPej_HBVXT-DTmsvKsltbUSLIP9zGWAv-cFMneVpA

2- https://www.brasildefato.com.br/2019/07/17/como-atuam-os-chamados-coletivos-entre-as-armas-e-o-servico-social-na-venezuela

3https://www.youtube.com/watch?time_continue=1&v=qsfO3iP6unY&feature=emb_logo

4 – https://www.brasildefato.com.br/2020/05/04/o-que-esta-por-tras-do-grupo-paramilitar-que-tentou-invadir-a-venezuela

* Professor de Geografia, Educador Popular, é doutorando em Ciências Sociais pela UFRRJ e militante do PCB na Zona Oeste do Rio de Janeiro.

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