Quando as ruas mostram o caminho da organização

imagemPor Antonio Lima Júnior*

“A rebelião de velho estilo, a luta de ruas com barricadas, que até 1848 tinha sido decisiva em toda a parte, tornou-se consideravelmente antiquada.”
(Friedrich Engels – Introdução à edição de 1895 de As Lutas de Classes em França de 1848 a 1850)

Quem acompanhou os atos realizados no último domingo (07), marcados em todo o país contra o fascismo e em defesa da democracia, se impressionou com as cenas ocorridas em Fortaleza: um enorme aparato policial, típico de uma guerra, para conter um pequeno número de manifestantes que sequer conseguiu chegar, em sua maioria, ao local marcado, devido ao policiamento ostensivo no entorno, chegando a prender alguns dos que tentavam exercer seu direito de protesto, antes mesmo do ponto de início da manifestação.

Uma das cenas mais chocantes é de um grupo de manifestantes acuados numa rua, com policiais fortemente armados nos dois lados, munidos de seus escudos, praticamente prontos para um extermínio do inimigo. As cenas mostram para que veio a política do governo Camilo Santana (PT) em fortalecer o aparato repressor do Estado, aparato este que está constantemente nas periferias, tanto que, nos últimos meses, o Ceará bateu recordes de mortes por intervenção policial, com 35 mortes registradas em abril, em meio ao período de isolamento.

Esse é o governo do Partido dos Trabalhadores, que entrega um plano de retomada da economia para atender às demandas dos empresários e repele um ato pró-democracia com o maior aparato policial possível, digno dos tempos de ditadura militar. Mas aqui viemos para refletir exatamente sobre as táticas de luta diante de tal aparato, visto que ficou perceptível a fragilidade do movimento, pequeno, de resistir diante da repressão.

Voltemos então ao ano de 1895, quando Friedrich Engels, ao escrever a introdução da nova edição do livro “As lutas de classes na França” de Marx, que analisa o período de movimentação social entre 1848 a 1850, refletiu sobre a fragilidade das lutas de barricadas travadas pelos insurgentes contra o aparato do Estado. Engels já apontava como “o armamento deste número enormemente reforçado de tropas torna-se incomparavelmente mais eficaz” diante das precárias condições de reação por parte dos revolucionários.

Engels mostra como a “burguesia se tinha passado para o lado dos governos” e por isso mesmo armava os soldados contra as insurreições, perdendo qualquer apreço pelas barricadas. Assim, “o soldado já não via atrás dela o povo, mas sim rebeldes, agitadores, saqueadores, partilhadores, escória da sociedade”. Nada diferente do policial de hoje que, acostumado a entrar na favela de caveirão, trata os manifestantes da mesma maneira, mostrando sua posição de serviçal da classe burguesa e do Estado.

Diante da diferença abissal no enfrentamento entre o povo e a guarda, Engels coloca em questão a luta de rua. “Quer isto dizer que no futuro a luta de ruas deixará de ter importância? De modo nenhum. Significa apenas que desde 1848 as condições se tornaram muito mais desfavoráveis para os combatentes civis, muito mais favoráveis para a tropa”. Tal argumentação, completada no resto do texto sobre as formas de luta, foi utilizada pelos reformistas para defender a ineficácia da revolução e a saída estritamente parlamentar. Entretanto, o que Engels aponta é a necessidade de repensar a estratégia da luta de rua de uma outra maneira, para não perdermos mais dos nossos diante da guerra contra o fortemente armado Estado.

O que vemos com o ocorrido em Fortaleza é como um ato pode ser mantido ou superado conforme a força do aparato repressor do Estado. Na capital cearense, os militantes sequer conseguiram chegar no local de encontro, numa megaoperação policial no entorno do local, dificultando o acesso das pessoas. A fragilidade das organizações ao construir o ato e a falta de adesão mostram que o Estado, quando quer, pode impedir uma manifestação sem sequer chegar ao confronto. Num cenário de adesão das massas e de possível enfrentamento, a emenda pode sair pior que o soneto, com uma repressão tamanha. Não podemos esquecer as possibilidades do cenário da conjuntura, onde uma Garantia da Lei e da Ordem pode desmontar um ato antes mesmo de ele acontecer, jogando a conta nos organizadores. A lista apresentada pelo deputado bolsonarista é uma ameaça, com a Polícia Federal a serviço da criminalização das manifestações sociais.

Para Engels, “uma futura luta de ruas só poderá triunfar se esta situação desvantajosa for compensada por outros fatores”. Como um grande estrategista, muitas vezes ignorado e taxado como apêndice de Marx, o que Engels nos mostra são as outras possibilidades de enfrentar o Estado de forma organizada, num movimento único, daí a necessidade da reflexão nos tempos atuais de nos organizarmos melhor enquanto classe, superando certas tendências espontaneístas que fetichizam a derrota e o massacre por parte do inimigo contra nós, como se fosse mais válido um militante mártir do que o militante vivo e que cumpra as tarefas do caminho para a revolução.

Não nos cabe aqui debater sobre a legitimidade dos atos de rua, principalmente em tempos de encruzilhada com a pandemia. É dever dos revolucionários apoiar e se somar com o conjunto da classe, entretanto, sem cair na submissão plena da vanguarda à massa, mas sim apontando os caminhos e formas de superar as adversidades da conjuntura e dar um passo à frente na luta contra o capitalismo.

Um ato de rua, na forma clássica que costumamos fazer, traz problemas que não podem ser resumidos no tratamento maniqueísta do debate sobre ir ou não ir para as manifestações e criar aglomerações. É preciso recordar a proposta da organização por territórios, a exemplo dos territórios sem medo, da Frente Povo Sem Medo, ou até mesmo com um exemplo nada agradável, mas que tem muito a nos ensinar: quem mora em Fortaleza, na periferia, deve ter ouvido muitas queimas de fogos nos últimos dias. O crime organizado usa isso como forma de comunicação e de expor sua organicidade nos bairros, apontando os espaços dominados pelas facções. A lição que podemos ter com isso é que, ao invés de mobilizar atos em um único espaço, prato cheio para a repressão, podemos substituir por pequenos atos localizados nos bairros periféricos em que temos atuação. Não adianta fazer protesto nas praças da elite; eles não nos querem lá e vão fazer de tudo para nos tirar dali. Só com o povo organizado nas periferias podemos ousar não somente derrubar as estátuas dos traficantes de escravos que ainda estão respaldados pela história dos vencedores, mas marchar até os bairros nobres, recuperar e rebatizar as praças e ruas com os nomes dos grandes empresários que exploram historicamente nosso povo por nomes que verdadeiramente representam os nossos. Isso ainda são cenas dos próximos episódios.

Analisando a guerra de guerrilhas em 1906, Lenin é enfático sobre aprender as novas formas de luta com a prática das massas, sem a pretensão de ensinar às massas, mas entendendo a inevitabilidade dessas novas formas “com a modificação da conjuntura social dada”. “É uma tarefa difícil, não há que dizer. Não se pode resolvê-la de repente. Tal como todo o povo se reeduca e aprende na luta no decurso da guerra civil, assim também as nossas organizações têm de ser educadas, têm de ser reconstruídas, na base dos dados da experiência, para cumprir esta tarefa”, conclui o camarada.

Diante desse cenário, cabe aos revolucionários dialogar com a organização dos atos, sejam as torcidas organizadas, as antifas, etc., para pensar as táticas de combate sabendo dos possíveis cenários de repressão, não como uma forma de recuo, mas como uma forma de atingir os objetivos do ato sem grandes avarias. A tática militar não pode ficar apenas no domínio dos inimigos; é nosso dever dominar essa arte. Os marxistas não servem para explicar a realidade de formas fáceis, mas sim para enxergar as complexidades do real como formas de compreender melhor as possibilidades, sem cair em fatalismos. Do lado contrário da luta de classes, eles tratam cada movimento como num jogo de xadrez, onde preferem perder os peões para manter os reis, até que alguém dê o xeque-mate.

As palavras de Engels são esclarecedoras: “Compreende agora o leitor por que é que os poderes dominantes querem pura e simplesmente levar-nos para lá onde a espingarda dispara e o sabre talha? Por que é que hoje nos acusam de covardia por não querermos ir sem mais nem menos para a rua onde sabermos de antemão que a derrota nos espera? Por que é que nos suplicam tão insistentemente que sirvamos de carne para canhão?”.

* Jornalista, diretor da Associação Cearense de Imprensa e militante do PCB e da Unidade Classista

(Crédito da imagem: @movdifavela)

Categoria
Tag