O proletariado diante da hidra de duas cabeças
Por Lucas Andreto
Uma análise feita do ponto de vista da formalidade dos projetos de sociedade enunciados pelos representantes das diferentes forças políticas presentes na vida brasileira nos permite chegar à conclusão de que a burguesia brasileira é dividida por dois projetos político sociais. Chamarei, neste texto, estes projetos de República Autocrática Liberal e Fascismo Subordinado.
A República Autocrática Liberal[1] seria uma espécie de retorno aos regimes sócio-políticos do século XIX: formalmente um Estado democrático de direito, mas na prática uma democracia apenas para os ricos. O proletariado, nesse regime, encontra-se sob intenso regime de exploração, de maneira que a força de trabalho torna-se uma mercadoria de valor baixo e de preferência não regulamentada, configurando um regime de superexploração da força de trabalho[2]. Pode ser que esse regime político permita formalmente o direito de associação dos proletários para defender seus interesses, mas na prática toma todas as medidas para impedir que isso ocorra por meio dos mais variados meios, como o estrangulamento financeiro dos sindicatos, estímulo aos meios de negociações individuais entre trabalhadores e patrões, corte de pontos de trabalhadores grevistas e criminalização de greves etc. Ademais, há nesse regime um forte elemento policialesco que objetiva administrar a crescente violência social decorrente da miséria e reprimir revoltas populares que devem ocorrer periodicamente. Se quisermos resumi-lo, poderíamos dizer que se trata de um Estado oligárquico (dominado pela oligarquia financeira e agrária, ambas associadas ao imperialismo), policial e com economia de livre mercado levada aos limites do impossível.
O Fascismo Subordinado é um termo que uso seguindo a linha de Theotônio dos Santos[3] para salientar que o nosso fascismo, diferente do italiano e alemão, que se apoiavam no expansionismo colonial, tem a característica de subordinar-se a um país imperialista de acordo com a lógica do capitalismo dependente. Mais do que isso, em sua propaganda, o Fascismo Subordinado fantasia o entreguismo de nacionalismo e, assim, faz com que os interesses dos países imperialistas passem como se fossem interesses nacionais[4]. O Fascismo Subordinado é um projeto político-social que se assemelha aos casos europeus no tocante ao caráter antiproletário. Assim como as milícias fascistas surgiram para invadir e destruir fisicamente os sindicatos, sedes do Partido Socialista Italiano, círculos de cultura operária e bibliotecas operárias, também o objetivo do nosso fascismo é desmantelar completamente todas as formas de organização do proletariado para defender seus interesses autênticos. Essa é a razão da forma ideológica que constitui o núcleo do fascismo bolsonarista ser o anticomunismo, isto é, a construção da figura do “comunista” como o “judeu” do nosso fascismo: a fonte de todo mal, a criatura que perdeu status de humanidade, tornou-se uma praga e deve necessariamente ser eliminada. O elemento anticomunista permite mobilizar as massas através do medo e fazê-las marchar contra um inimigo universal, permite incluir como inimigo qualquer pessoa no momento necessário e, portanto, combater qualquer espécie de oponente político transmutando-o em “comunista”. Com essa arma ideológica, os fascistas de hoje buscam construir o terreno e as armas adequadas para desmantelar por completo a organização do proletariado, deixando-o sem a capacidade de reagir.
É necessário salientar o perigo deste último item, pois, se levado às últimas consequências, o anticomunismo é uma política que tem em seu seio a potencialidade do extermínio. Uma vez que se tira a humanidade de determinado grupo de pessoas, tira-se por consequência a empatia das outras pessoas para com elas e, desta forma, é possível destruí-las mesmo fisicamente sem que haja uma oposição relevante. Se esse determinado grupo de pessoas foi não apenas desumanizado, mas transformado em inimigo universal, parte considerável das outras pessoas verão o extermínio desse grupo como um dever sagrado.
A realização do Fascismo Subordinado no Brasil significaria o fim definitivo da democracia burguesa que nasceu em 1988. Haveria o fechamento do STF e do Congresso (ou um aparelhamento que os transformem em órgãos totalmente subordinados ao regime), a troca da Constituição de 88 por uma Carta Magna Fascista, um Estado policial-militar que se estruturaria em torno de um líder político como figura pública. O caráter liberal da economia seria não apenas preservado, mas aprofundado. A oposição política seria formalmente abolida (ou, ao menos, os partidos considerados “perigosos”), policialmente perseguida e possivelmente haveria a iniciativa para sua abolição como pessoas físicas. Nesse sentido, o Fascismo Subordinado internaliza a economia política da República Autocrática Liberal, mas a supera e potencializa em um Estado político abertamente diferente do anterior.
O Fascismo Subordinado parece ser algo distante da realidade, mas ele delineia-se nas palavras e atitudes dos representantes do bolsonarismo. Aliás, é possível encontrar sua gênese e desenvolvimento verbal desde o início da propaganda que levou ao golpe de 2016. Possivelmente, uma contradição aparente da conjuntura política brasileira é que a burguesia partidária da República Autocrática Liberal só conseguiu realizar seu projeto político por meio dos representantes políticos do Fascismo Subordinado. Quer dizer, ela teve de alienar seu projeto político para outro sujeito social que não tem nenhum engajamento com este projeto, mas sim com um projeto político próprio.
A pergunta é: seria tudo uma piada ou o Fascismo Subordinado é um objetivo real? Para além da formalidade dos discursos, o que evidenciam as ações dos personagens de ambos os lados da trama e as consequências objetivas que elas acarretam em consonância com os interesses da classe burguesa, fica claro que nenhuma das cabeças da Hidra é devorada pela outra numa batalha de monstros, mas que continuam convivendo em conflito mais ou menos performático, compartilhando um mesmo corpo e, portanto, formando um monstro único que se alimenta de um regime do caos. Como dito antes, a República Autocrática Liberal se realiza por meio dos fascistas e a aparente contradição evidencia-se como um modus operandi do processo político.
O Fascismo Subordinado cria constantemente um clima de guerra civil para manter seu caráter de “movimento antissistêmico”. Bolsonaro, em vez de governar, mobiliza permanentemente suas bases de milicianos, pequeno-burgueses, elementos desclassificados e lumpenizados, colocando-os contra a democracia burguesa. Os representantes da Autocracia Liberal tipificam esses elementos como terroristas e perigosos para a ordem, acionam a Lei de Segurança Nacional ou uma intervenção de Garantia da Lei e da Ordem e, assim, condenando os fascistas, realizam a dissolução da democracia burguesa. Bolsonaro aparelha a Polícia Federal com pessoas de sua confiança, o STF a coloca para funcionar. Entre um movimento e outro o Estado militariza-se exponencialmente, os militares surgem como agentes políticos que equilibram a balança e solucionam os problemas (a única força “racional” e “organizada da política). Nasce uma dialética entre a palavra do militar e a pena do judiciário que fazem surgir um novo regime não com uma explosão, mas com um suspiro.
Uma força política promove as mudanças na prática, a outra lhe faz uma falsa oposição, desinforma, confunde, amortece os conflitos, anestesia a gravidade da situação. Os papéis são revezados entre as cabeças do monstro. Uma chama atenção, outra ilude e sempre que pode qualquer uma das duas leva a cabo um pequeno ato decisivo. A falsa oposição entre essas duas forças, por meio dos holofotes da mídia (que faz parte do Partido da Autocracia Liberal), cria a ilusão de que não existem alternativas na política para além delas mesmas e, com isso, lhes da hegemonia. Cria-se uma estranha dicotomia no regime político de “direita versus direita” e busca-se, dessa forma, criar uma utopia livre das “esquerdas”. É neste ponto que podemos ver a Hidra como um monstro completo. Nesse contexto, golpe militar ou transição “dentro da lei” tornam-se apenas dois métodos para chegar a um mesmo resultado e qual deles será usado pode depender apenas das necessidades do momento. Antes de militar, jurídico ou parlamentar, nosso golpe de Estado em processo parece ser, assim como a crise estrutural do Capital segundo Meszáros, “rastejante”.
Ao proletariado, contudo, cabe a tarefa hercúlea de decepar as duas cabeças do monstro e cicatrizá-las a fogo, tal como o herói da lenda, para que jamais tenham a oportunidade de crescer de novo. Aqui cabem muito bem as palavras de Lukács, quando diz que a suposta luta burguesa contra Hitler tinha uma finalidade contrarrevolucionária e inclusive de apologia do fascismo, pois “se abandonava Hitler e Rosenberg para salvar ideologicamente a essência, a forma mais reacionária do capitalismo monopolista”, de maneira a poder usá-la no futuro[5]. Nunca derrotaremos verdadeiramente o fascismo brasileiro sem desmantelar sua fonte: a classe dominante que se fundamenta no latifúndio, na economia agroexportadora, na especulação financeira, na superexploração do trabalho, na associação econômica e política com o imperialismo norte-americano.
Aos trabalhadores não interessa uma República oligárquica, um regime abertamente fascista ou um “bolsonarismo sem Bolsonaro”. Para furar o cerco que esses projetos nefastos fazem ao povo brasileiro, é necessário uma organização cada vez mais forte, independente e disciplinada da classe proletária. É necessário lutar em defesa do socialismo como única saída emancipatória possível, construir o poder popular através da organização dos trabalhadores em todas as instâncias possíveis da luta, negar a propaganda reacionária não apenas na sua dicotomia aparente, mas em sua unidade essencial, construir uma organização de revolucionários capazes avançar frente aos problemas do momento. A resposta que Lênin dá à pergunta O que fazer? está, nesse sentido, na ordem do dia.
[1] Sigo aqui o raciocínio de Antônio Carlos Mazzeo, para quem o Estado político brasileiro é essencialmente autocrático e, por toda sua história, oscila entre algum tipo de bonapartismo e uma autocracia institucionalizada. Contudo, ainda que tenha essa ideia em mente, uso a palavra “autocrática” nesse contexto para designar um aprofundamento e intensificação do caráter oligárquico, repressivo e espoliador do Estado brasileiro em relação de seu padrão durante a democracia burguesa da Nova República. Ver MAZZEO, A. C. A Sinfonia Inacabada: política dos comunistas no Brasil. São Paulo: Boitempo, 199.
[2] Aqui, defino o conceito de acordo com Marini, isto é, a superexploração do trabalho seria uma forma estrutural da lógica dos países de capitalismo dependente e caracterizada pela intensificação do trabalhado para retirada de maiores taxas de mais-valia, prolongação da jornada de trabalho e expropriação de parte o trabalho necessário ao trabalhador para repor sua força de trabalho. Ver Dialética da Dependência, disponível em: https://www.marxists.org/portugues/marini/1973/mes/dialetica.htm
[3] Sobre as reflexões de Theotônio dos Santos a respeito do fascismo na América Latina, ver: SANTOS, T. Socialismo ou fascismo: o novo caráter da dependência e o dilema latino-americano. Santa Catarina: Insular, 2020.
[4] Em seu ensaio denominado Mais uma contribuição para o debate sobre fascismo e democracia na América Latina Theotônio dos Santos aponta que uma das dificuldades da expansão do fascismo na América Latina seria a contradição entre o caráter nacionalista de sua propaganda (para atrair as classes médias) e a necessidade aliar-se ao imperialismo, levando a cabo uma política entreguista e subordinada, para chegar e manter-se no poder. O bolsonarismo suprimiu essa contradição propagandeando que o entreguismo e a subordinação ao imperialismo é o segredo da riqueza da nação por meio dos “investimentos estrangeiros”. Ver SANTOS, T. Mais uma contribuição para o debate sobre fascismo e democracia na América Latina, disponível em: https://theotoniodossantos.blogspot.com/2012/05/mais-uma-contribuicao-para-o-debate.html.
[5] LUKÁCS, G. El assalto a la razón: La trayectoria del irracionalismo desde Schelling hasta Hitler. Barcelona: Grijalbo, 1976. P. 7.
Caberia ainda apontar a colocação comum a Florestan Fernandes e Paulo Arantes de que “o fascismo não perdeu, como realidade histórica, nem seu significado político nem sua influência ativa. Tendo-se em vista a evolução das democracias ocidentais, pode-se dizer que Hitler e Mussolini, com seus regimes satélites, foram derrotados no campo de batalha. O fascismo, porém, como ideologia e utopia, persistiu até hoje, tanto de modo difuso, quanto como uma poderosa força política organizada”. FERNANDES, F. Notas sobre o fascismo na América Latina. Ver também a entrevista de Paulo Arantes, A guerra só derrotou o fascismo militarmente. Agora precisamos derrotá-lo ideologicamente, disponível em https://www.youtube.com/watch?v=71Vus18B9MI&t=4899s.
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