Ecos em um poço tapado

imagemEdson Oliveira*

O historiador Eric Hobsbawm, em seu trabalho Ecos da Marselhesa, de 1990, faz um confronto ao revisionismo historiográfico sobre a Revolução Francesa de 1789 e também uma análise sobre a recepção marxista desse evento que mudou as coordenadas da humanidade. O camarada Hobsbawm nos mostra como as tentativas de revoluções subsequentes a 1789 traziam em si os ecos dessa grande vitória da humanidade, sobretudo, nos mostra que a Revolução Russa de 1917 trouxe, em si, a tradição revolucionária proporcionada em 1789. Naquele momento em que uma classe estava sob domínio de um regime absolutista, em 1917, houve uma superação ontológica da proposta revolucionária da Marselhesa.

Na Revolução Francesa a propostas revolucionárias estavam sob os signos da Liberté, Egalité e Fraternité, propostas completamente abstratas. Já na Revolução de 1917 essas propostas ganham a devida materialidade. A revolução proletária traz a proposta de Pão, Paz e Terra e, com essas propostas, que eram emanadas do povo, conseguem a unidade necessária da classe explorada para dar um passo largo em direção à emancipação da humanidade.

A partir do momento da efetivação da Revolução Proletária, houve momentos históricos que vieram com a emergência de abafar os seus ecos: a luta da Rússia já soviética, em três frentes, que obrigou a suspender o processo revolucionário para direcionar as energias em uma guerra civil; o fortalecimento do fascismo na Itália; a década da grande inflação que culminou na quebra da bolsa de valores em 1929 e que permitiu o nascimento do nazifascismo; os nazis com suas propagandas antibolcheviques, disseminadas pelas suas produções “artísticas”, cinema, literatura, música, teatro, pintura etc. A segunda grande guerra, que os nazistas deram início para conquistas de território e para erradicar o “mal do mundo” (leia-se judeus e comunistas sintetizados em uma única caricatura), são eventos que registram a tentativa de abafar os ecos da proposta revolucionária de 1917.

Após a conquista do Reichstag pelos soviéticos e o visível fortalecimento da organização da classe proletária nos países capitalistas, principalmente em sua periferia, procuraram-se novas formas de abafar as propostas revolucionárias para a sociedade, criou-se a proposta do Estado de bem-estar-social para “domar” a classe proletária através de “salários decentes”. Junto do Estado de bem-estar-social veio o “american way of life”. Proposta de uma culturalização imperialista, baseada no acesso a mercadorias e disseminação dos costumes da terra do Tio Sam, que foi propagandeada aos quatro ventos pela intensificação das produções artísticas através da indústria cultural.

Em meio a essa americanização do mundo, surgem novos movimentos revolucionários que dão força para os ecos de 1917: a Revolução Chinesa de 1949; a Revolução Cubana 1959; a luta dos povos africanos apoiados pela URSS para independência; a Revolução Vietnamita com a derrota do Tio Sam pelos Vietcongs em 1975. Entretanto, o imperialismo achou novas formas de abafar novamente esses ecos fortalecidos por esses grandes eventos históricos. Já em 1973, há o golpe militar no Chile, que estava sob a vigia de infiltrados no governo de Salvador Allende, alinhados pela aliança político-militar que culminou na Operação Condor, que era um órgão de comunicação na América Latina entre os países sob regime militar – Brasil, Argentina, Bolívia, Paraguai e Uruguai, tutelados pela CIA dos Estados Unidos – para impedir qualquer tentativa revolucionária no “quintal” do Tio Sam e fazendo a América Latina de laboratório para implantar as suas novas propostas político-econômicas: o neoliberalismo.

O neoliberalismo, implantado na América Latina sob as forças imperialistas, trouxe as propostas de flexibilização do trabalho, flexibilização das leis trabalhistas, horizontalização da produtividade, terceirização dos setores primários das empresas, privatizações dos setores públicos de produção e de assistência à classe proletária, setores de serviços informalizados etc. Com tudo isso trouxe, junto de si, o desmonte das instituições de organização da classe trabalhadora historicamente conquistadas, o que determinou a fragmentação da classe revolucionária para o aumento da extração de “mais-valor” da força de trabalho. Esse foi o mesmo neoliberalism que corroborou para a queda do muro de Berlim, e também para a queda da URSS, apagando a materialidade de um mundo além deste aqui. Todas essas propostas foram legitimadas por produções artísticas selecionadas e massificadas que contribuíram para alimentar a indústria cultural, que era fortalecida como uma máquina de propaganda de guerra. Essas propagandas abriram as portas para o século XXI e jogaram os ecos de 1917 em um poço profundo e o tamparam com sete selos para abafá-los e propagarem as propostas mais nefastas.

A ideologia multiculturalista e pós-moderna conseguiu, além de se infiltrar nas fileiras da esquerda, dar suporte para o fortalecimento da culturalização neonazifascista, por via da negação de uma classe proletária, negação da contradição capital-trabalho, estetização da política e negação anárquica das organizações centralizadas da classe trabalhadora. O neoliberalismo conseguiu sistematizar, com a globalização do capitalismo, a quase anulação da tradição revolucionária da classe proletária. Utilizou as ideologias multiculturalista e pós-moderna para se fortalecer ideologicamente por meio propagandístico, a indústria cultural. Tornou possível “cientificamente” a negação da classe proletária e ao mesmo tempo negou a cientificidade como análise necessária para a compreensão da realidade em sua complexidade. Através desses meios ideológicos, evocaram-se os gritos nefastos do nazifascismo, legitimando-os, para efetivarem as suas propostas anticivilizacionais, antiproletárias e antiemancipadoras.

Hoje, mais do que nunca, estamos vivendo um momento em que os ecos de 1917 estão abafados pelas propostas anticivilizacionais e irracionalistas do neoliberalismo e pelos gritos nefastos propagados pela reatualização do nazifascismo. Estamos em tempos interessantes e temos a sorte e o azar de vivermos nesse momento. A sorte é que conseguimos compreender profundamente o processo de desenvolvimento do sistema capitalista mais profundamente para afirmarmos a sua insustentabilidade para proporcionar uma vida digna aos seres humanos. O nosso azar é que o inimigo conseguiu fragmentar a classe revolucionária, o proletariado, e fazer com que ela perdesse a sua unidade, que é uma tradição histórica do movimento proletário que temos de reconquistar. A emergência para nós hoje é reabilitar a unidade do proletariado. Para isso, temos que rememorar os ecos de 1917 e as experiências históricas produzidas pela revolução de outubro. Temos que destampar o poço e, para parafrasear o camarada Marx, em o 18 Brumário, “não para fazer os seus [ecos] rondar outra vez” e apenas “comprimir a cabeça dos vivos”, mas, sim, fazer com que as propostas impulsionadas por esses ecos se efetivem na realidade.

* Militante do PCB da cidade de Assis-SP