Anhangabaú: o Centro do Velho Normal

imagemReprodução / Vídeo Prefeitura de São Paulo

Bruno Santana

A Reforma do Vale do Anhangabaú, desenhada pelo governo Fernando Haddad, do Partido dos Trabalhadores, costurada por João Dória (PSDB) e Bruno Covas (PSDB), expressa um velho receituário elaborado por organismos financeiros internacionais e digerido pelo capitalismo paulista.

Este escrito tem como propósito avaliar o projeto para além das figurações estetizantes ou sensos comuns já ultrapassados das “novas táticas de gestão e produção das cidades”. Pretendemos aqui fornecer um panorama mais amplo do que esta obra representa para a produção de empreendimentos por parte da indústria da construção civil e os monopólios privados, entendendo que esta reforma é mais um episódio do consenso produzido para a gestão das cidades elaborado nos marcos da Nova República.

Para a cidade de São Paulo, com o atual cenário de crise econômica e sanitária, seguido da destruição do Estado Brasileiro, aliado à violência institucional contra a população negra e sem-teto, compete analisar como as definições de prioridade na produção da infraestrutura urbana está como sempre esteve, intimamente atrelada aos interesses das classes dominantes.
A realização do projeto foi articulada em um modelo de concessão à iniciativa privada que, ao contrário do concurso do qual o Vale do Anhangabaú foi objeto em 1981, desta vez, foi feita em um modelo viciado de consulta pública pouco divulgado, onde sequer a população local organizada deliberou sobre a matéria. Num processo que é a regra das consultas públicas: um jogo de cartas marcadas entre os investidores e a gestão municipal.

O projeto mobilizou 80 milhões do Fundo de Desenvolvimento Urbano, o FUNDURB, fundo público municipal que é composto pela arrecadação do excedente criado por projetos e empreendimentos que extrapolam parâmetros legais, de forma que o adicional adquirido pelas empresas seja destinado a um ‘caixa’ que tem como função básica viabilizar projetos para regiões do município.

As operações do Fundo preveem a oferta de Habitação Social por meio do Plano Municipal de Habitação, equipamentos de infraestrutura e saneamento básico, além de infraestrutura de mobilidade e cultura. A cidade de São Paulo, palco da reforma do Anhangabaú, conta ainda com apenas 55% de seu esgoto devidamente tratado. A capacidade ociosa dos imóveis chega à cifra de 100 mil unidades vazias somente na região central.

Conforme mencionado pelo próprio Aloysio Nunes (PSDB) em uma das audiências públicas gravadas para a reforma do Anhangabaú, o Viaduto do Chá e o Vale foram já no início do século passado, o primeiro exercício de concessão de terras públicas demarcadas para receber intervenções do capital imobiliário. No contexto de grande mobilização do movimento operário da época, que se organizaria também contra as remoções violentas na região, o Vale do Anhangabaú passa a representar geograficamente a fronteira demarcada entre os espaços que teriam ou não a infraestrutura necessária e apropriada para a vida urbana. Os teóricos brasileiros demarcam este período como o de formação sólida do circuito imobiliário paulista.

A particularidade, é que como convencionado pela literatura urbana latinoamericana, a especificidade das cidades subdesenvolvidas, é que as estruturas dos centros de produção de empreendimentos vultuosos em capital, lucrativos para as classes dominantes, estão constantemente em movimento. Numa conformação geograficamente expressa do conflito entre capital e trabalho, fica evidente onde estão os circuitos de valorização, produção e acesso a comodidades de todo o tipo, e quais outros são territórios destinados fora deste escopo à população trabalhadora. De forma a sempre esgotar ao limite o uso e o potencial das cidades, e se movendo a partir de modificações nas estruturas produtivas, o capitalismo dependente é o padrão gerador de um modelo de cidade sempre em expansão. Regra que não vale somente para as periferias em constante avanço, mas que determina diretamente, quais vão ser os novos empreendimentos e as velhas novidades a serem implementadas nos escritórios da burguesia.

Em termos objetivos, combinado a sucessivas reestruturações produtivas, as estruturas de valorização da terra urbana em São Paulo estiveram em movimento atrelado ao mercado imobiliário de média e alta renda, onde se formaram bairros que abrigavam os gerentes dos setores comerciais ou de serviços, ou dos grandes setores industriais que estavam nas franjas dos bairros da cidade. A título de exemplo, o apogeu do chamado Centro Novo coincidiu como a promoção de bairros e empreendimentos próximos às vilas operárias conectadas ou não com as áreas centrais. Ao esgotar este modelo, num período que coincide com o aumento exponencial da população urbana, a estratégia muda, e uma vez estando os empreendimentos consolidados no Centro Novo já esgotados, a burguesia paulista avança para a região dos Jardins onde cria novas bases de uma estrutura urbanística para emplacar empreendimentos lucrativos para investidores internacionais e para a indústria da construção civil nacional.

Autores da teoria urbana definem o final da década de 1980 e os anos 1990 como as duas décadas de formulação e primeiras aplicações do modelo vigente de produção das cidades no Brasil. Este modelo, tutelado por organismos internacionais como o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e o Banco Mundial e sua agenda para as cidades, encontra consonância com as contrarreformas neoliberais implementadas no alvorecer da Nova República.

A descentralização da política urbana da esfera Federal de Planejamento, atirou as cidades brasileiras à responsabilidade das gestões municipais e dos consórcios regionais do capital imobiliário. Não seria diferente em São Paulo, onde a base deste modelo impulsionou um novo movimento dos círculos de valorização imobiliária. Desta vez, as antigas instalações industriais e logísticas deram lugar às Operações Urbanas Consorciadas, um arrojado modelo de produção e gestão do espaço urbano guiado pela iniciativa privada, e financiado pelo Estado.

A justificativa requentada e usada, tanto na reforma do Anhangabaú quanto em inúmeros outros projetos urbanos dentro destas mesmas regiões no circuito do capital urbano, parte das suposições dogmáticas do neoliberalismo de que o “Estado não tem capacidade de sustentar ou produzir obras de grande porte”, ou que é incapaz de gerir as formas tão arrojadas e inovadoras e propriedade e gestão dos espaços produzidos. É possível afirmar que a maturação deste modelo a partir do século XXI, influenciou diretamente na acomodação geográfica e social da luta de classes em São Paulo.

O limite da implementação indiscriminada destas estratégias esbarra não só no esgotamento institucional e econômico, mas também com um impedimento geográfico, e, portanto, espacial. Houve durante a última década um amplo esforço de desmoralização do chamado ‘centro velho’, com toda propaganda midiática para retratá-lo como um lugar de perigo, decadência e criminalidade (mascarando por outro lado a perversidade da violência contra a população de rua e em situação de vulnerabilidade, como é comum no bairro da Luz, referida ‘cracolândia’). Em contraste, as regiões que recebiam novas obras, como Faria Lima, Berrini e demais bairros nobres da zona sudoeste eram retratados como símbolos do progresso provinciano paulista.

Porém, há atualmente um consenso de que estas regiões se encontram geograficamente esgotadas, de tal maneira que empreendimentos ou outros grandes projetos que acompanhem o avanço desta estrutura, são inviáveis do ponto de vista espacial, pois avançariam os limites do próprio município. Por vezes tiveram tentativas de elaborar Operações Urbanas Consorciadas ou Projetos de Intervenção Urbana mais ao sul, o que estava nos planos quando era intenção do governo João Dória privatizar o Autódromo de São Paulo. Outras beiraram ao absurdo, como o de cogitar construir um aeroporto em Parelheiros.

A solução prática e mais viável, inclusive para o próprio capital imobiliário metropolitano, no entanto, foi buscar atuar nas estruturas já consolidadas. O chamado ‘centro velho’ nunca esteve vazio, e não era diferente na década recente. A diáspora dos empreendimentos da burguesia urbana na região central, entra em conflito por exemplo, com as necessidades da população trabalhadora organizada nos movimentos de moradia, que hoje ocupam imóveis abandonados pelos antigos proprietários, como único recurso para ter algum teto.

A política de austeridade fiscal permanente, que arremata o espírito republicano paulista, inviabiliza quaisquer projetos que tenham como objetivo intervir nos problemas cotidianos dos trabalhadores. O hiato nos grandes projetos, não significa que a burguesia urbana tenha interrompido seus rendimentos, ou mesmo desistido de seus interesses. O que está em curso é uma reconfiguração em suas táticas e definição de novos horizontes de investimentos.

Como a política de austeridade permanente não se aplica aos aparatos de violência fundamentais do Estado Brasileiro, podemos falar de uma política urbana de morte empreendida por João Dória e as forças policiais do Estado de São Paulo.
Um verdadeiro show de horrores tomou conta da política urbana, com um aumento exponencial no número de remoções e reintegrações, chegando à cifra de 19.000 num curto período de 2 anos nas regiões periféricas. A tentativa de restituir o projeto do Nova Luz, tinha como pressuposto, demolir os cortiços do bairro, e encarcerar a população vulnerável da região, sem absolutamente nenhuma contrapartida.

Este hiato representou tanto sistemáticas agressões contra estes setores brutalmente precarizados da classe trabalhadora, como também a perseguição e criminalização dos Movimentos de Moradia da região central. Podemos ler a prisão de lideranças como Preta Ferreira, como uma escalada de violência contra as ocupações da região central, buscando legitimar e viabilizar, a expulsão da população trabalhadora dos bairros do centro tendo em vista os novos empreendimentos do capital na região.

A flexibilização do zoneamento municipal, a extensão de anistia fundiária à proprietários de imóveis de médio e grande porte, bem como para proprietários de megatemplos religiosos; a tentativa atravessada pelo Governo Federal de leiloar prédios da união a baixos custos, são algumas das tentativas por parte dos gestores e credores do mercado financeiro, de viabilizar em regiões centrais como São Paulo, uma série de mecanismos para que possam centrar suas atividades nos bairros já consolidados. Os empreendimentos seriam além de condomínios de médio e alto padrão, novas lajes comerciais, também equipamentos de esporte, cultura e lazer.

Nos anos recentes, vimos vir à tona projetos como o Parque Augusta, o Parque Minhocão e a tentativa de reestruturar a Operação Urbana Consorciada do Anhangabaú como uma tentativa de fazer destes equipamentos e projetos, atrativos para a atuação do mercado imobiliário no entorno destas obras. Para além do aspecto formal, a viabilidade da Reforma do Vale do Anhangabaú visa redefinir os campos de atuação do mercado imobiliário metropolitano das regiões centrais, articulado com os processos de remoção sistemática dos trabalhadores ocupando as regiões centrais.

O projeto expressa, ainda, a subserviência da atual agenda urbana aos interesses privados dos setores monopolistas da construção civil, ignorando completamente as atuais condições de vida dos trabalhadores de São Paulo. Está colocada para a população uma solução ultrapassada e um modelo de produção do espaço completamente alheio aos reais interesses da classe trabalhadora. Com o cenário devastador em que vivemos, qualquer debate formal sobre a importância desta reforma se torna absolutamente irrelevante.

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