O capital, o governo e a morte
Por Afonso Costa e Paulo Schueler
Monitor Mercantil
O Brasil tem cerca de 2,8% da população mundial, mas registra aproximadamente 15,6% do total de contaminados pela Covid-19 e 14,5% dos óbitos. Essa desproporção de sofrimento e mortes é a marca registrada do atual governo, junção do capital com parte significativa dos militares, encabeçado pelo capitão reformado.
O presidente da República e seu governo são os principais instrumentos do genocídio que vem causando milhões de contaminados e milhares de mortes no Brasil, mas não são os maiores responsáveis. O capital e a elite que o detém estão por trás desses trágicos números. Pesquisa da Oxfam Brasil é elucidativa ao apontar que 42 bilionários aumentaram suas fortunas em US$ 34 bilhões, cerca de R$ 177 bilhões, apenas no período da pandemia.
Muitos governadores, prefeitos, parlamentares, parte do Judiciário, a mídia empresarial e setores conservadores da sociedade são corresponsáveis por tamanha tragédia; alguns por ignorância, outros por falta de escrúpulos, muitos pelos dois motivos. “Com o Supremo e com tudo”, como antes disse o ex-senador Romero Jucá (MDB), acusado de corrupção e lavagem de dinheiro.
O atual governo tem muito em comum com a ditadura oriunda do golpe de 1964, realizada com tanques e baionetas, utilizando “Deus, a família e a propriedade” como slogan, e o temor da “ameaça do comunismo”, tendo por trás as malas de dólares do capital. Desta feita, o golpe começa com a operação Lava Jato, o impeachment da presidente Dilma, a prisão do Lula, as notícias falsas, a fuga dos debates, uma “facada” pra lá de suspeita.
O resultado é o descaso para com a saúde e a vida dos brasileiros, o brutal favorecimento ao grande capital em detrimento do país e do seu povo.
No primeiro ano deste governo, a prioridade foi a reforma da Previdência, retirando direitos dos trabalhadores, aposentados e pensionistas, comprometendo o futuro da juventude. O beneficiário é o mesmo de sempre, o capital, que aumenta sua mais-valia, garante mais recursos públicos para lucrar via dívida pública, abre mercado para os fundos privados de aposentadoria e por aí vai.
De lá pra cá os ataques se sucederam, falta espaço para listar todos, abordemos apenas alguns deste ano:
O ministro Paulo Guedes é um banqueiro, não um homem público. Sua atuação não privilegia o bem do país e do seu povo, mas sim o lucro do grande capital.
Em março, no começo da pandemia, o governo assegurou R$ 1,2 trilhão como garantia de liquidez para o sistema financeiro. Além disso, reduziu de 20% para 15% a alíquota de Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) cobrada dos bancos, referente aos resultados de 2019. A informação é do jornalista Breno Costa, no Brasil Real Oficial.
Segundo a reportagem, “os bancos pagarão uma taxa menor sobre seus lucros registrados no ano passado. Apenas os quatro maiores bancos do país (Itaú Unibanco, Bradesco, Banco do Brasil e Santander) tiveram lucro de R$ 81,5 bilhões em 2019 – um recorde nominal, com crescimento de 18% na comparação com o registrado em 2018”. Cabe destacar que os recursos da CSLL são destinados à Seguridade Social, onde está alocada a Previdência Social.
Mais um capítulo com a ida do ex-secretário Mansueto Almeida para o BTG Pactual, após o banco comprar uma carteira do Banco do Brasil que vale cerca de R$ 3 bilhões por pouco mais de 10% de seu valor – R$ 371 milhões.
Nos últimos dias, o Banco Central autorizou transferir para o Tesouro R$ 325 bilhões para ajudar no serviço da dívida pública, ou seja, ceder à pressão do sistema financeiro privado, que exige condições ainda mais lucrativas.
Na Saúde, a estratégia do capitão reformado, desde o início, foi tomar todas as medidas – e omissões – possíveis para que o vírus circulasse entre a população, na expectativa por uma “imunidade de rebanho” ao custo de milhares ou milhões de vidas, quantas sejam necessárias.
O presidente retardou como pôde o repasse financeiro aos estados e municípios, e, sob o general Pazuello (seu terceiro ministro da Saúde desde o início da pandemia, por aceitar o receituário de medicação sem comprovação científica e se calar sobre a necessidade de isolamento social), a fonte secou ainda mais, misturada à corrupção de alguns governadores e secretários de Saúde estaduais, os mesmos que ajudaram a eleger o capitão e caíram em desgraça por almejarem a cadeira presidencial.
As privatizações em ritmo acelerado demonstram a sanha do ministro da Economia para beneficiar o capital. Uma prova clara disso: o lucro total das principais empresas estatais em 2019 foi de cerca de R$ 90 bilhões (Banco do Brasil R$ 18,16 bilhões, Caixa R$ 21,1 bilhões, Petrobras R$ 40,1 bilhões e Eletrobras R$ 10,7 bilhões). Ainda assim, todas estão na mira do banqueiro. Lembra a chamada Privataria Tucana, ocorrida durante o período FHC, denunciada pelo jornalista Amaury Ribeiro Júnior, que resultou em prejuízo de R$ 2,4 bilhões para o povo brasileiro, segundo reportagem da Carta Maior. Esse valor corrigido chega a números estratosféricos.
A Eletrobras lucrou R$ 24 bilhões nos últimos dois anos, tem R$ 44,5 bilhões a receber até 2028 e R$ 15 bilhões em caixa, mas o governo quer vendê-la por R$ 12,5 bilhões, denuncia o deputado Glauber Braga (PSOL-RJ).
O golpe de 2016, em medida considerável, foi feito para quebrar as pernas da Petrobras e sua crescente influência no mercado internacional de petróleo. Desde as revelações de Eduard Snowden e o até hoje muito mal explicado roubo de laptop da ANP que detinha informações estratégicas, sabe-se do interesse vital dos EUA de submeter a empresa e as reservas brasileiras aos ditames diretos do Salão Oval da Casa Branca.
Não à toa, concluído o impeachment de Dilma, a primeira coisa que José Serra fez foi correr para os corredores da Shell.
A Petrobras vem sendo desmontada quando consideramos a cadeia do petróleo em sua totalidade – da produção, passando pelo refino, até a distribuição. Além de “destruir” a empresa, resta aos consumidores finais dos derivados do petróleo – e não apenas a gasolina no posto – à submissão aos preços internacionais a um câmbio no qual o real está completamente desvalorizado.
Nos últimos dias o Conselho de Administração da Petrobras aprovou a venda do que restava ao país da BR Distribuidora, 37,5% do capital. No ano passado, 30% das ações que eram da Petrobras foram vendidas. Detalhe: em 2018 o lucro da BR Distribuidora foi de R$ 3,2 bilhões.
No início de agosto o governo editou a Medida Provisória 995, em regime de urgência, que permite o desmembramento e venda das áreas estratégicas da Caixa. É a mesma política adotada na Petrobras: fatiar, vender as áreas mais lucrativas e depois privatizar o que restar.
Não apenas as privatizações a preço de banana marcam o atual governo. A liberação das queimadas e garimpos ilegais, o entrave ao trabalho dos fiscais do Ibama, fazem parte de uma iniciativa que só pode ser chamada como “Projeto de Desertificação” do Brasil – e não apenas na Amazônia. O Cerrado, berço das principais bacias hidrográficas do país, já está a perigo há muito, e a recente queima do Pantanal demonstram que o agro não é pop.
A alta no desmatamento alcançou 101% entre a posse do atual governo e este ano, com 9.205 quilômetros quadrados somente em 2020, com elevação de 34% sobre o ano passado. O destaque é que o Brasil fracassou no cumprimento da lei do clima, cuja meta para este ano era de no máximo 3.925 quilômetros quadrados de desmatamento.
A privatização da vida passa pelo novo marco legal sobre água e saneamento, traz problemas não apenas atuais, mas de longo prazo. O acesso à água potável já é, em relatórios do Pentágono farta e desavergonhadamente divulgados, um dos grandes fatores de conflito eminente entre os povos e nações, em futuro não muito distante.
A concessão da água a empresas como a Coca-Cola em um país com os dois maiores aquíferos do planeta, nestas condições amplamente conhecidas, é crime de lesa-pátria, que pode levar o seu próprio povo à morte por privá-lo deste item essencial à vida.
Não bastasse esta questão maior, no curto prazo o que virá será a entrega a preço de banana para a iniciativa privada ter acesso aos principais ativos, e o saneamento das populações mais vulneráveis ficar à mercê de um estado que não pretende tirá-las das condições de vida da Idade Média.
Sobre os trabalhadores, a proposta de uma carteira verde-amarela e a retirada de direitos (FGTS, Previdência, férias, 13º) com a instauração da modalidade de pagamento por horas trabalhadas visa consolidar a terra arrasada e a “uberização” não apenas para as novas vagas – seus filhos, seus netos – mas também para os empregos atuais – quem garante que o empresariado não fará recontratações, como as modalidades de prestador de serviço, de “PJ” e MEI (microempreendedor individual) já deram provas mais que abundantes?
A População Economicamente Ativa (PEA) do Brasil é de cerca de 83 milhões de pessoas, 40% do total da população. Com o desemprego em 13,3%, correspondente a cerca de 13 milhões de pessoas (segundo trimestre deste ano), o menor número de trabalhadores com carteira assinada de toda a série histórica, somados a 30 milhões de subutilizados (horrível definição) alcançamos o total de 43 milhões de pessoas em situação degradante.
Junte-se ao quadro o cenário de um movimento sindical em grande parte decadente e depauperado, sem recursos para promover mobilizações devido ao fim do imposto sindical e ao peleguismo reinante desde a década de 1990, e o que se tem é um achatamento colossal da renda do trabalho, a mesma que já é e tende a ser ainda mais sobretaxada com a reforma tributária apresentada nos últimos dias.
Um dos últimos ataques foi aos servidores públicos em nível federal, estadual e municipal, com o congelamento dos seus salários até 2021. Segundo o Dieese, “dados reais e acessíveis ao público comprovam que não há servidores demais no Brasil e que a folha salarial deles não representa risco de colapso das contas públicas da União”.
Para Max Leno de Almeida, supervisor técnico do Dieese no Distrito Federal, o “levantamento da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) mostra o Brasil entre aqueles que têm menos servidores públicos em relação ao total de pessoas empregadas e em relação à População Economicamente Ativa (PEA)”. “A máquina pública não é inchada”, afirma o economista.
Um país não são apenas linhas traçadas em um mapa, mas sim o seu povo, sua terra, suas riquezas, sua produção, sua cultura, um amplo universo que não pode ser restrito e vilipendiado por governos de plantão. Collor, FHC e agora o atual presidente, entre outros, na verdade não representam as aspirações do nosso país, mas sim os interesses de uma elite dominante, calcada em um sistema putrefato que beneficia apenas o capital.
Se um Estado não serve ao povo, esse Estado não serve para o povo. É tempo de dar um basta!
Afonso Costa e Paulo Schueler
Jornalistas
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