A lição do Haiti

As notícias continuaram ininterruptas durante horas. Não haviam imagens, mas afirmava que muitos edifícios públicos, hospitais, escolas e até construções mais sólidas encontravam-se debilitadas. Li que um terremoto da magnitude de 7,3 graus é equivalente à energia liberada por uma explosão igual a 400 mil toneladas de dinamite.

Descrições trágicas eram transmitidas. Os feridos nas ruas reclamavam aos gritos por auxílios médicos, rodeados de ruínas com famílias sepultadas. Ninguém, no entanto, pôde transmitir as imagens durante muitas horas.

A notícia surpreendeu a todos. Muitos escutavam com certa freqüência informações sobre furacões e grandes inundações no Haiti, porém ignorávamos que o país vizinho corria risco de um grande terremoto. Assim, veio à tona que, há 200 anos, um grande sismo abalou esta cidade, quando, certamente, possuía alguns milhares de habitantes.

À meia-noite não se mencionava uma cifra aproximada do número de vítimas. Altos chefes das Nações Unidas e vários Chefes de Governo falavam dos comoventes acontecimentos e anunciavam o envio de brigadas de socorro. Como existem inúmeras tropas da MINUSTAH lá, forças das Nações Unidas de diversos países, alguns ministros de defesa falaram das possíveis baixas de seu pessoal.

Foi justamente na manhã de ontem, quarta-feira, que começaram a chegar as tristes noticias sobre as imensas perdas humanas na população e, inclusive, instituições como as Nações Unidas mencionaram que algumas de suas edificações nesse país estavam colapsadas, uma palavra que não diz nada por si, mas pode significar muito.

Durante horas ininterruptas continuaram chegando notícias cada vez mais traumáticas da situação desse país irmão. As cifras mortais oscilam, segundo versões, entre 30 mil e 100 mil. As imagens são desoladoras. É evidente que o desastroso acontecimento vem recebendo ampla divulgação mundial e muitos governos, sinceramente comovidos, realizam esforços para cooperar dentro de suas possibilidades.

A tragédia comove um grande número de pessoas de boa fé, em especial as de caráter natural. Porém, talvez muitas poucas pessoas reflitam o porquê do Haiti ser um país tão pobre. Por que sua população depende quase em 50% das remessas familiares que recebem do exterior? Por que não analisar também as realidades que conduzem a situação atual do Haiti e seus enormes sofrimentos?

O mais curioso desta história é que ninguém pronuncia uma palavra que recorde o fato do Haiti ter sido o primeiro país em que 400 mil africanos escravizados e traficados pelos europeus se sublevaram contra 30 mil brancos, donos de plantações de cana de açúcar e café, levando a cabo a primeira grande revolução social em nosso hemisfério. Páginas de insuperável glória se escreveram ali. O mais eminente general de Napoleão foi lá derrotado. O Haiti é um produto nato do colonialismo e imperialismo, de mais de um século de emprego de seus recursos humanos nos trabalhos mais duros, das intervenções militares e da extração de suas riquezas.

Este esquecimento histórico não seria tão grave como o fato real de que o Haiti constitui uma vergonha de nossa época, em um mundo onde prevalecem a exploração e o saqueio da imensa maioria dos habitantes do planeta.

Milhares de milhões de pessoas na América Latina, África e Ásia sofrem de carências similares, ainda que talvez não todas numa proporção tão alta como o Haiti.

Situações como a desse país não deviam existir em nenhum lugar na Terra, onde abundam dezenas de milhares de cidades e povoados em condições similares e, às vezes, piores, em virtude de uma ordem econômica e política internacional injusta, imposta ao mundo. A população não está ameaçada unicamente por catástrofes naturais como a do Haiti. Essa é somente uma pálida sombra do que pode ocorrer no planeta com as mudanças climáticas, que foram objeto de burla, escárnio e engano em Copenhague.

É justo expressar a todos os países e instituições que perderam alguns cidadãos ou membros por conta da catástrofe natural do Haiti: não duvidamos de que, neste instante, seja realizado o maior esforço para salvar vidas humanas e aliviar a dor desse sofrido povo. Não podemos culpá-los do fenômeno natural que ocorreu no local, ainda que estejamos em desacordo com a política seguida pelo Haiti.

Não posso deixar de expressar a opinião de que é a hora de buscar soluções reais e verdadeiras para esse povo irmão.

No campo da saúde e outras áreas, Cuba, apesar de ser um país pobre e bloqueado, vem, há 20 anos, cooperando com o povo haitiano. Algo em torno de 400 médicos e especialistas da saúde cooperam gratuitamente com o povo haitiano. Em 227 das 337 comunas do país trabalham, todos os dias, nossos médicos. Por outro lado, não menos de 400 jovens haitianos se formaram médicos em nossa Pátria. Trabalharão agora com o reforço que viajou ontem para salvar vidas nesse momento crítico. Pode-se mobilizar, portanto, sem especial esforço, até mil médicos e especialistas da saúde, pois os mesmos já estão quase todos ali e dispostos a cooperar com qualquer outro Estado que deseje salvar vidas haitianas e reabilitar feridos.

Outro elevado número de jovens haitianos cursam medicina em Cuba.

Também cooperamos com o povo haitiano em outras esferas que estão ao nosso alcance. Não haverá, no entanto, nenhuma outra forma de cooperação digna de qualificar-se assim, que a de lutar no campo das idéias e da ação política para pôr fim à tragédia sem limite pela qual sofre um grande número de nações como o Haiti.

A chefa de nossa brigada médica informou: “a situação é difícil, porém começamos a salvar vidas”. Essa breve mensagem foi enviada ontem, horas depois de sua chegada a Porto príncipe com reforços médicos adicionais.

Tarde da noite comunicou que os médicos cubanos e os haitianos graduados pela ELAM estavam se dividindo por todo o país. Já haviam atendido em Porto Príncipe mais de mil pacientes, pondo para funcionar com urgência um hospital que não havia sido afetado e utilizando tendas de campanha onde era necessário. Preparavam-se para instalar rapidamente outros centros de emergência.

Sentimos um imenso orgulho pela cooperação que, nesses momentos trágicos, os médicos cubanos e os jovens médicos haitianos formados em Cuba estão prestando aos seus irmãos do Haiti!

Fidel Castro Ruz

14 de Janeiro de 2010 – 20:25h

Tradução: Maria Fernanda Magalhães Scelza

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