O desmonte da indústria farmacêutica brasileira

imagemPaulo Henrique A. Rodrigues*

Para o Jornal O Poder Popular

A evolução da pandemia de Coronavírus, além de vir impondo centenas de milhares de mortes — a maior parte delas evitáveis —, adoecimento para os brasileiros e sobrecarga de trabalho e sofrimento para os trabalhadores da saúde, vem revelando a imensa dependência do país à importação de medicamentos, vacinas e insumos farmacêuticos ativos. Um país que figura entre os seis maiores consumidores de medicamentos para uso humano e constitui o segundo maior mercado de medicamentos para uso animal, não desenvolveu capacidade de produzir os remédios e vacinas que necessita.

A vacinação contra a Covid-19 vem revelando o enorme descaso com a vida humana, incompetência e improvisação por parte do governo federal que tem a obrigação de coordenar a aquisição, distribuição e informação para a população. Milhares de novas mortes evitáveis seguem ocorrendo por conta dessa incompetência governamental e da ausência de políticas industriais farmacêuticas adequadas nas últimas décadas.

O Brasil reduziu de 55% para 5% a capacidade de produção de insumos farmacêuticos, situação decorrente da abertura comercial promovida nos governos Collor de Mello e Fernando Henrique Cardoso nos anos 1990 e da falta de políticas industriais que promovessem a capacitação tecnológica para a produção interna de medicamentos e insumos farmacêuticos ativos. Há capacidade tecnológica na indústria brasileira, mas faltam políticas governamentais de fomento industrial, capacitação de profissionais e de verticalização da cadeia produtiva para que possa haver a integração da indústria de insumos farmacêuticos com os produtores de medicamentos.

O Brasil vive atualmente uma situação de grave vulnerabilidade sanitária, decorrente da dependência tecnológica no setor farmacêutico e da dependência da importação tanto de insumos farmacêuticos ativos (IFAs), principalmente da China e da Índia, quanto de medicamentos acabados prontos dos grandes laboratórios estadunidenses e europeus. Como foi possível que o abastecimento de medicamentos no país tenha chegado a esta situação?

Como o Brasil se tornou vulnerável do ponto de vista sanitário?

A resposta a esta pergunta obriga a conhecermos de forma rápida as políticas industriais farmacêuticas desenvolvidas desde que as políticas econômicas neoliberais foram impostas ao Brasil nos anos 1990, no auge da chamada crise da dívida externa. É importante saber, em primeiro lugar, que entre 1930 e 1990, o Brasil teve uma política econômica protecionista em relação ao desenvolvimento industrial, que promoveu a substituição de importações de produtos industriais que passaram a ser feitos no país, além de ter capacitado tecnologicamente o parque fabril brasileiro, inclusive a indústria farmacêutica brasileira.

Um marco importante dessa política foi a criação da Companhia Nacional de Álcalis (CNA), em 1944, no atual município de Arraial do Cabo (RJ), durante o governo Getúlio Vargas. A CNA foi planejada para produzir matérias-primas básicas — carbonato de sódio, barrilha e hidróxido de sódio, soda cáustica conhecidos como álcalis sódicos -, itens essenciais para impulsionar a indústria de transformação. Tais matérias-primas são fundamentais para a indústria química como um todo e particularmente a produção de medicamentos. Em 1952, foi criada a Carteira de Comércio Exterior do Banco do Brasil (CACEX), instrumento de proteção tarifária para a indústria brasileira, que tornou difícil a importação de insumos farmacêuticos ativos (IFAs) para a produção de medicamentos. Isso forçou a produção no Brasil desses insumos, reduzindo a dependência do país à importação desses produtos, uma vez que a produção nacional abastecia a maior parte das necessidades da indústria.

As medidas que protegiam a produção interna de medicamentos e a manipulação dos preços pelos laboratórios nacionais e estrangeiros, foi desmontada pela política neoliberal. Em 1990, Collor de Mello extinguiu a CACEX e com ela a proteção à produção interna dos insumos farmacêuticos ativos. Desde então, o déficit com a importação desses produtos não parou de aumentar. Entre 1995 e 2014, o déficit aumentou 488,3%, chegando a US$ 2,58 bilhões de dólares em 2014.

Uma política de subserviência ao imperialismo

Uma das medidas mais criminosas dos governos neoliberais foi o reconhecimento de forma radical e precoce do acordo internacional de patentes, TRIPS (Trade Related Aspects of Intellectual Rights), aprovado em 1995. O projeto foi aprovado durante o governo FHC, e o Brasil passou a ter uma das piores e mais servis legislações de patentes do mundo, a Lei nº. 9.279/1996. Esta Lei abriu mão, por exemplo, do prazo que o acordo TRIPS permitia que os países continuassem sem reconhecer patentes até o final de 2005. Enquanto o Brasil adotou com nove anos de antecedência o reconhecimento de patentes, a China e a Índia, cujas políticas industriais eram semelhantes à brasileira até então, aproveitaram o prazo até o último dia, desenvolvendo o que hoje são as maiores indústrias químicas e farmacêuticas do mundo. Enquanto isso, a indústria farmacêutica brasileira deixou praticamente de produzir insumos farmacêuticos ativos — hoje menos de 5% das necessidades são atendidos pela produção interna — e só produz medicamentos de baixo conteúdo tecnológico e baixo valor agregado.

Houve, entretanto, importante e vitoriosa queda de braço com os laboratórios multinacionais em relação aos antirretrovirais (medicamentos para AIDS), garantida pela capacitação do laboratório público de Farmanguinhos, para fazer engenharia reversa, depois de muita pressão dos movimentos sociais brasileiros.

A produção interna de genéricos cresceu muito desde os anos 1990, beneficiando principalmente a burguesia interna do setor farmacêutico e menos a população. Já a política das PDPs dos governos petistas permitiu a absorção da capacidade tecnológica para a produção de alguns medicamentos cujas patentes de propriedade de laboratórios multinacionais já estavam para cair, enquanto asseguravam o acesso monopolístico dos mesmos ao mercado brasileiro durante o processo de transferência de tecnologia. Nenhuma dessas duas políticas gerou capacitação tecnológica importante, nem redução significativa da dependência de importações.

O resultado desses quase trinta anos de neoliberalismo em relação aos medicamentos é uma crescente dependência brasileira frente às importações e à tecnologia estrangeira, além de enorme vulnerabilidade sanitária, que vem prejudicando a população e o setor público, que tem de comprar medicamentos para os usuários do SUS, além do risco de o país se ver praticamente sem medicamentos e vacinas, caso haja um agravamento da crise econômica e política internacional. A população já está pagando um preço alto demais com a crescente dificuldade em ter acesso a medicamentos e agora à vacina contra a Covid-19, em função da criminosa política de subordinação econômica ao imperialismo.

* Cientista social e professor do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). É militante do PCB de Petrópolis – RJ.

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