Sofrimento psíquico e sociedade capitalista
Por Rômulo Caires
Jornal O MOMENTO – PCB da Bahia
Em 2011, Marcia Angell, uma das editoras do New England Journal of Medicine, publicou um artigo sobre a chamada epidemia de doença mental, fato rotineiramente anunciado na mídia dos EUA. Ela questionava o aumento indiscriminado de diagnósticos nas sucessivas versões do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (da sigla em inglês DSM) e relacionava esse aumento com a pouca transparência científica das entidades que regulam a venda de medicações, os interesses internos da psiquiatria e da indústria farmacêutica.
Encontrando determinações que sinalizavam para o aumento das malhas do poder psiquiátrico em sua associação com a venda indiscriminada de medicações, Angell por outro lado deixou de demarcar o fato notório: apesar dos usos e abusos da “razão diagnóstica”, há de fato um aumento do sofrimento psíquico na sociedade contemporânea. Não só a psiquiatria, como diversas vertentes da psicologia produzem mecanismos ideológicos que tendem a individualizar e naturalizar o sofrimento psíquico, muitas vezes não correlacionando o aumento, por exemplo, do suicídio, com o desenvolvimento das múltiplas contradições do capitalismo, que vai potencializando sua capacidade destrutiva. Enfrentar o adoecimento psíquico contemporâneo passa não só por construir instrumentos de escuta e trabalho da subjetividade, como também encontrar saídas coletivas para tais questões.
O grande desenvolvimento tecnológico e científico das últimas décadas ressoou, em muitos, a expectativa de um domínio cada vez maior da natureza e o desvelamento das motivações envolvidas na subjetividade. A partir de Francis Crick, um dos célebres descobridores da estrutura molecular do DNA, chegou-se a afirmar que o mapeamento genômico entregaria as chaves para entender todas as ações humanas. É do biólogo molecular britânico a expressão “você não é nada mais do que um pacote de neurônios”. Os anos de 1990, a chamada década do cérebro, trouxeram doses ainda maiores desse reducionismo naturalista. Os neurocientistas prometeram explicar tudo a partir de canais celulares e estudos de neuroimagem. Sonharam com um mundo de pessoas mecânicas e pré-fabricadas, que viveriam perseguindo maneiras de incrementar ainda mais o desempenho e se adequar aos parâmetros impostos.
Diante do desafio de universalizar as características tão singulares dos seres humanos, a psiquiatria ganhou enorme fôlego com a descoberta do primeiro psicofármaco. O Prozac® surgiu e logo se transformou na panaceia dos psiquiatras: qualquer sofrimento poderia, agora, ser dirimido com a ação de tal pílula mágica. Márcia Angell denuncia que a partir daí se firmou, entre a psiquiatria e as indústrias farmacêuticas, uma relação estreita onde o diagnóstico de um logo se direcionava para o uso de um medicamento vendido pela outra. Num típico caso de inversão ideológica, os efeitos de um psicofármaco qualquer eram elevados a mecanismos causais do transtorno mental. Assim, a teoria do transtorno mental enquanto uma desregulação dos circuitos de neurotransmissores permitiu à psiquiatria estender-se para territórios ainda não alcançados pelo seu campo de ação.
Com a ajuda do DSM, houve uma verdadeira explosão de diagnósticos, chamada por muitos de “epidemia de transtornos mentais”. Não é à toa que, precisamente em nossa época, vemos as cifras relacionadas à venda de drogas como Ritalina® e Rivotril® baterem recordes, implicando diretamente a racionalidade diagnóstica psiquiátrica com o processo desenfreado de produção de lucros das grandes indústrias farmacêuticas. Se a necessidade de se adequar à doxa médica sempre fez a psiquiatria flertar com o naturalismo, as ciências psicológicas também não se viram longe de tal flerte e de suas consequências. A partir da hegemonia das formulações positivistas no modo de produzir conhecimento, a psicologia se amparava no seu dito estatuto científico e neutro para promover a reificação dos seres humanos, sua coisificação enquanto identificados como objeto das Ciências Naturais. Assim, a psicologia assumiu, muitas vezes, o objetivo de estudar as diferenças – não para solucionar os problemas elencados na vida societária, mas para justificar as desigualdades, traduzindo-as como inaptidão e incapacidade.
Apesar de a psiquiatria e a psicologia terem papel tão preponderante na produção ideológica do “doente mental”, não há como ignorar que há um grão de verdade no aumento da demanda pelo trabalho de tais profissionais. A OMS estima, por exemplo, a existência de mais de 350 milhões de pessoas com depressão pelo mundo, sendo a principal causa de incapacitação dos indivíduos para o trabalho, como também há crescimento de 40% nas taxas de suicídio pelo mundo, sendo o Brasil o país com o maior número de suicídios anuais da América Latina. A “amplificação” da razão diagnóstica pode explicar parte dos dados, mas não explica totalmente a prevalência e incremento do número de pessoas em sofrimento psíquico e o aumento dos suicídios. Devemos então procurar as causas reais nas próprias relações sociais que constituem a realidade contemporânea, e como tais realidades interagem com as diversas subjetividades.
É comum, por exemplo, que pessoas com depressão sofram com uma “voz interna” que denunciaria sentimentos de inferioridade, como também perda de sentido diante da vida. Muito mais do que procurar desregulações nos neurotransmissores ou investigar as “causas profundas”, caberia analisar os processos sociais que constituem estes mecanismos de inferiorização. O principal deles diz respeito ao poder social ou, no caso, à ausência dele. Pessoas advindas da classe trabalhadora, especialmente seus setores mais oprimidos, são muitas vezes ensinadas a se pensarem enquanto inferiores, e mesmo a aquisição de qualificações ou riquezas podem não ser capazes de apagar tais traços.
As classes dominantes potencializam esse processo ao enunciar o mito da responsabilização individual: cada trabalhador é estimulado a sentir que a sua pobreza, desemprego e miséria social são frutos apenas de suas ações, da cor de sua pele, do seu gênero, e não resultado de escolhas políticas e da estrutura organizativa da sociedade. Quando doentes, muitas vezes não possuem acesso a serviços de saúde que promovam o cuidado adequado, não possuem direitos trabalhistas que os protejam da sede de lucro dos capitalistas, não possuem moradia adequada para o seu descanso. Mesmo os remédios e a psicoterapia não serão capazes de sanar o desemprego e a fome.
Nesse sentido, não cabe a nós trabalhadores resumir nossas demandas por cuidado em saúde mental apenas a mais remédios e tratamentos psicológicos. Mesmo que fossem universalizadas, tais propostas não dariam conta de resolver a grave situação de crise humanitária que vivenciamos no capitalismo, a superexploração do trabalho nas periferias, o racismo que desencadeia o genocídio do povo preto, a violência doméstica e o desemprego estrutural. A oferta de uma escuta qualificada, que singularize o sofrimento psíquico de alguém, pode ser peça fundamental desse cuidado, mas é insuficiente enquanto proposta global.
Cabe ao povo trabalhador construir instrumentos coletivos que auxiliem na recomposição de sentidos humanos, que possam tanto enriquecer suas vidas como também insistir na necessidade imperiosa da auto-organização política e constituição de um contra-poder que faça frente ao capitalismo em crise. O poder da classe trabalhadora pode desencadear a reorganização social em direção à melhoria geral da saúde da classe trabalhadora, além do corte radical com modelo societal que, ao benefício de poucos, destrói a vida e os sonhos da grande maioria.