Nazista, pero no mucho: os limites do discurso ideológico

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Por Leonardo Silva Andrada

Os eventos recentes trouxeram à baila, uma vez mais, a forma como se portam os ideólogos do neofascismo brasileiro e seus divulgadores. Inicialmente entusiasmados com a própria popularidade, iludidos com a suposta ausência de restrições e compondo suas referências a partir das distorções e absurdos fáceis do ambiente online, esbravejam barbaridades de cunho racista, misógino e homofóbico, como se estivessem escolhendo um sorvete.

Quando pressionados pela opinião pública e admoestados por seus patrocinadores que ameaçam sua remuneração, declamam um script tediosamente repetitivo. Pedem desculpas, dizem que não são assim, que sua fala foi tirada de contexto, e os seus conhecidos podem atestar que não são o que suas posições denunciam. Toda a valentia do combatente resoluto contra o sistema, o politicamente correto, ou a esquerda – e que espantalhos mais conseguir criar – se esvai em tom meloso, resignado, mendicante de compreensão e perdão.

A firmeza ideológica do sectário da extrema direita dá lugar ao recuo tático. A rigidez do incorruptível baluarte dos valores da civilização cristã cede lugar à tentativa picaresca de se retratar, típica de quem avalia a conjuntura para tomada de decisão estratégica, evitando atritos que sinalizam prejuízos. Esse gesto denuncia o lastro real que o discurso ideológico recobre com camadas mais elaboradas em alguns casos, inconsistente e rala em outros, delirante quase sempre.

A vida em sociedade não é como um videogame, que permite a definição dos parâmetros e a determinação dos comportamentos de todos os personagens. Viver em coletividade impõe limites, fricções e o respeito a regras, do contrário viveríamos em um inferno permanente e imprevisível. A confortável redoma com ar-condicionado, de onde esses audazes de playground transmitem seus vídeos e digitam suas postagens, é isenta das contradições e imposições que a civilidade impõe. Postos diante da necessidade de lidar com as limitações e cobranças do mundo real, sua parca construção ideológica se desfaz, expondo a nudez de seu interesse.

O propósito desses tigres de papel não é defender a família, a religião ou o ocidente. Não são guerreiros virtuosos combatendo a ameaça comunista, nome fantasia para qualquer inimigo de ocasião, que sirva como mote. Seu verdadeiro impulso para a ação é o dinheiro. Quando um locutor do podcast mais popular do país, um comentarista da mídia de maior audiencia, ex-participantes do reality show mais popular, um deputado com votação robusta no Rio de Janeiro ou o apresentador de um programa policial sensacionalista se afobam lamuriosos pedindo desculpas, o que fazem é demonstrar que suas súplicas são tão falsas como eram as bravatas. O que pretendem com isso é manter a base de sua remuneração; não se arrependem do conteúdo do que disseram, mas de terem dito algo que teve impacto negativo. É muito provável que não acreditem nas desculpas, como também não aderiram, de fato, ao que proclamaram antes; operam segundo a lógica do engajamento, que define os parâmetros da remuneração do conteúdo que produzem.

O sistema de algoritmo das plataformas não distingue ataque de apoio, crítica de elogio. Apenas contabiliza acessos, visualizações, comentários. Os “comunicadores”, por sua vez, entendem – ainda que por mimese – que os resultados são conseguidos através de polêmicas, comportamento conhecido por todo jornalista esportivo. Sendo todos dependentes da “opinião pública”, medida pela contagem de visualizações e “likes”, que por sua vez são o fator multiplicador de seus proventos, é fundamental que mantenham a audiência cativa, para que o conteúdo seja remunerado e mantenha patrocínios.

Nem mesmo nessa operação farsesca são criativos ou originais. As variantes clássicas de fascismo, com toda sua ira anticapitalista de classe média nos discursos para forjar um movimento de massas, foram os grandes protetores e propulsores do capitalismo nacional na Itália, na Alemanha, na Espanha e onde mais tenham chegado ao governo, se depurando dos quadros e discursos comprometedores no caminho.

O anticapitalismo de fachada não obstrui o caminho dos regimes fascistas para se tornar o maior impulso da modernização conservadora em cada um desses casos. Cresceram e arrebanharam a classe média e parte das massas camponesas e operárias, com ataques a granel às “finanças”, “ao capitalismo” e outras entidades abstratas que mobilizavam o ressentimento de povos que sofriam a recessão do entre-guerras. Instaurado seu governo, contaram com a participação decisiva dos representantes do grande capital monopolista e financeiro, realizando governos em seu favor.

Os discursos de Mussolini, Hitler ou Franco, também eles, não foram os criadores dessa operação. A trajetória do liberalismo, como ideologia da propriedade burguesa, estabeleceu essa rota desde seu surgimento, em fins do século XVII. O grande esforço teórico de Locke, o pai filosófico dessa corrente, foi ajustar em um discurso coerente a sujeição de todos a uma autoridade comum, baseada na ideia de direitos naturais partilhados por todos, com a restrição à participação política apenas aos proprietários. Os dirigentes franceses tiveram tarefa similar, para preservar a propriedade burguesa contra os “excessos populares”, experimentados no período jacobino. Joseph Seyes e Benjamin Constant precisaram elaborar de forma criativa uma filosofia que se declarava tributária da “liberdade, igualdade, fraternidade” a todos, ao mesmo tempo em que erigiam uma ordem institucionalmente restritiva e excludente dos interesses populares. Essa é a tarefa que cumpre a ideologia, na estabilização de um regime político (e uma sociedade) assentados na divisão de classes e no domínio de um classe sobre as demais. Sejam ingleses ou franceses, italianos ou brasileiros, nas distintas épocas, o discurso ideológico cumpriu o papel fundamental de desviar a atenção, de forma que a verdadeira motivação política – de garantia da propriedade e do lucro – não ficasse exposta.

O que se disse no começo sobre os arrependidos, com seu choro circense, se aplica da mesma forma a boa parte do bloco no poder atual. Só não tiveram, ainda, a ocasião em que precisassem operar a hipocrisia e o cinismo, decantados em discurso coeso. A seu modo, o que o presidente e sua família vêm fazendo, desde o 7 de setembro, somado à capitulação definitiva ante os camelôs legislativos que declaravam repudiar, é a versão possível desse mesmo gesto. O que toca a um sujeito intelectualmente muito limitado, bronco, de comportamento incivil, é se sujeitar às imposições, enquanto distrai suas hordas neofascistas com o grotesco e o caricato, como piadas preconceituosas, pinturas kitsch e bravataria. Não se imagina essa figura repugnante pedindo desculpas publicamente, ou deliberadamente assumindo um recuo; o que lhe resta é agir de forma fugidia, com meias palavras, ainda que em seu discurso declare preservar o que, na prática, está abandonando.

O bolsonarismo não está derrotado, nem desaparecerá da vida cotidiana após as eleições, mesmo que se confirme que o presidente não será reeleito. O neofascismo que nos fustiga é a apresentação contemporânea de uma corrente de opinião presente no Brasil desde sua fase de formação, e ainda não é o momento histórico em que poderemos comemorar sua completa superação. Seja como for, basta atentar para as reações na fila do mercado, no ponto de ônibus, na “política pedestre”, enfim, para perceber que o clima atual é o oposto de 2018.

Naquele momento o antipetismo cevado pela mídia se voltava de forma virulenta contra qualquer elemento identificado com a civilização e impulsionava uma fase ascendente da fascistização da sociedade. Qualquer declaração contrária ao estreito receituário neofascista era alvo de reação histriônica, não subscrever os absurdos bolsonaristas era equiparado a defender a corrupção, o crime e a destruição do país. Após três anos de governo neofascista, sua hipocrisia descoberta no caso das conexões políticas, o desprezo pela vida na pandemia e nas tragédias de deslizamentos e desabamentos e, principalmente, o desastre econômico da inflação, desemprego e piora na vida da classe trabalhadora levam à reação popular de descrença. A desilusão que fora mobilizada para a eleição desse entulho reacionário agora o abarca. A dureza da vida cotidiana se sobrepõe ao discurso fácil e despolitizante, e o combate abstrato à corrupção não encanta.

Completamente incapaz de qualquer análise de conjuntura e cercado por auxiliares não muito mais sofisticados intelectualmente, Bolsonaro não tem como perceber que a fórmula que o elegeu há quatro anos tem menos eficácia em 2022 que o seu kit covid. A crise atual é mais grave e não pode mais ser contabilizada nos pecados do PT; a Operação Lava Jato foi devidamente desacreditada, seus heróis desqualificados, o que enfraqueceu o impulso a um “antissistema” que a implosão do sistema político propiciou; por fim, sua própria inépcia o desqualificou como eventual Luis Bonaparte para as frações hegemônicas do capital.

Não se espera com isso, por ora, um intenso clamor popular por mudanças estruturais e a superação do capitalismo; o que é uma lástima, pois motivos concretos não nos faltam. Para uma mudança de comportamento nesse sentido será preciso um trabalho político intenso, apresentando de forma clara e direta o quanto as dificuldades, agruras e tragédias da vida da classe trabalhadora derivam de um sistema assentado na exploração. Um esforço coletivo para que fique evidente o quanto é inócuo alternar gerentes do capitalismo decadente, para vencer essa etapa histórica. De qualquer forma, essa mudança na correlação de forças aponta que nossa atuação decidida, nesses últimos anos, está conseguindo, pelo menos, empurrar o neofascismo de volta para o submundo, restringindo sua penetração popular e seu poder. E isso já é um tremendo avanço.

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