Torquemadas do pensamento

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José Goulão, via ABRIL ABRIL

A confraria transeuropeia de polícias de opinião deu finalmente corpo à assustadora profecia de George Orwell e criou o Ministério da Verdade.

Passam por estes dias 19 anos sobre a segunda invasão do Iraque pelos Estados Unidos e outras potências da OTAN, mantendo-se ainda a ocupação militar estrangeira do país. Uma guerra limpa, admirável sobretudo quando é apreciada de uma varanda de hotel de Bagdá, lançada por gente com plena sanidade mental, sustentada por razões de uma verdade inquestionável, sem crianças mortas, sem civis bombardeados, sem destruição da maior parte das infraestruturas do país, sem tortura nem chacinas, sem roubos de recursos naturais, sem jornalistas bombardeados de helicópteros como se fossem alvos de um jogo de computador, com espetaculares, cirúrgicos e inofensivos fogos-de-artifício lançados por máquinas de autêntica ficção científica. Um deleite para orgulhosos chefes políticos, inebriados jornalistas esgotando os arsenais de adjetivos e embasbacados telespectadores agarrados às telas de vídeo, sorvendo a mais recente superprodução de Hollywood. Solidários com as vítimas? Uns esparsos milhares.

Que diferença dos tempos de hoje!

Testemunhamos na Ucrânia a antítese desse episódio do início do século. Uma guerra à moda antiga, cruel como eram os conflitos armados nesses tempos, com destruição e vítimas mortais, desencadeada por um louco, travada na Europa e não em qualquer país do Terceiro Mundo, provocando refugiados com um visual civilizado e não esses maltrapilhos com pele escura vindos sabe-se lá de onde para perturbar a vida das sociedades civilizadas. Além disso, horrorizando os telespectadores não só com as imagens, mas também com as palavras que as acompanham, brutais, acusadoras, aterrorizadoras e assentes em certezas que ninguém poderá pôr em causa.

Assim sendo, acha o leitor que a guerra tem a ver com o cerco da Rússia pela OTAN, o mais poderoso exército do mundo e que vê em Moscou o seu principal inimigo? Ou com o fato de a entrada da Ucrânia na OTAN apertar esse cerco, encurralando ainda mais o território russo? Ou com a ameaça do presidente ucraniano de que poderá voltar a dotar o país com armas nucleares? Ou com o massacre das populações russas do Leste pelas forças militares ucranianas e que já dura há oito anos? Ou com o fato, amplamente comprovado, de que o Estado ucraniano e as suas forças militares assentam em organizações nazistas apoiadas pela OTAN e que têm como objetivo «acabar com a russificação» da população do país, pobre eufemismo para limpeza étnica? Ou com a rejeição prática de acordos de paz (Acordos de Minsk) pelas autoridades de Kiev com a cumplicidade da Alemanha e da França? Ou ainda com a lei sobre «os povos autóctones» promulgada pelo presidente Zelensky há menos de um ano, instituindo um sistema de apartheid de direitos, liberdades e garantias entre as populações ucranianas de origem escandinava e as comunidades eslavas, consideradas em linguagem comum como «os pretos da neve»?

Pois o leitor está proibido de achar qualquer coisa deste gênero; nem dizê-lo; e o mais seguro é mesmo não pensar porque incorre no crime de violação da opinião única estabelecida pelos dirigentes dos Estados Unidos e dos seus satélites da União Europeia, fiscalizada através de uma comunicação social sem dúvidas e que nunca se engana. Como nos idos tempos de Salazar, que julgávamos ultrapassados de vez, quem não está conosco está contra nós, neste caso a favor do déspota Putin. E se está de acordo com as asserções atrás expostas em forma interrogatória, mesmo que seja apenas de uma, saiba que poderia ser um habitante da «bolha» de Putin, como define o presidente ucraniano Zelensky. Bem pode o estimado leitor defender a negociação da paz como única saída possível e humana da situação que isso de nada lhe vale: é um agente russo, um troll do Kremlin, um desprezível eco de Moscovo.

Mesmo que, como cantava o poeta, seja verdade que «não há machado que corte a raiz ao pensamento», o mais seguro, nestes tempos, parece ser não pensar e não contrariar o que lhe ordenam porque pode haver tentações «desviantes», como alguém já escreveu, e então lá estarão, para o enxovalhar e o que mais adiante se verá, a senhora Von der Leyen com a autoridade que lhe dá a ascendência nazista de pai, mãe e sobretudo do avô – que, como oficial das hordas de Hitler mandou fuzilar dezenas de resistentes polacos, judeus e soviéticos, por sinal na Ucrânia; ou os senhores Borrell e tantos dos seus colegas, entre eles um dos mais zelosos, o senhor Santos Silva, para quem a democracia é uma propriedade privada para pôr e dispor. E que não está preocupado com as repercussões na Europa das sanções impostas à Rússia: pois não, quem as vai sofrer são os povos, em primeiro lugar os mais desfavorecidos, não ele.

O Ministério da Verdade

Esta confraria transeuropeia de polícias de opinião deu finalmente corpo à assustadora profecia de George Orwell e criou o Ministério da Verdade. Nele se concentram torquemadas do espírito, mentirosos de profissão, esbirros das ideias, macartistas dos comportamentos e toda uma poderosa corte de analistas, especialistas, comentadores, pivôs e entrevistadores que gostam de se ouvir a si mesmos dizendo exatamente as mesmas coisas e empunhando, justiceiros, o «martelo dos hereges», como no século XV chamaram ao inquisidor-mor, o frade Tomás de Torquemada.

Sabendo nós que a imposição do neoliberalismo como sistema econômico-político de abrangência global é acompanhada pela formatação da uma opinião única sobre o funcionamento da sociedade, não deveríamos surpreender-nos com uma situação deste tipo.

Porém, o poder avassalador com que caiu sobre nós o surto de propaganda de guerra representa um salto qualitativo no processo de controle do pensamento dos cidadãos, como que remetendo os «dissidentes», aqueles que habitualmente usam a capacidade de crítica perante os conceitos dominantes, para a categoria dos potenciais autores de delitos de opinião, criminosos passíveis de ser encarados como seres desprezíveis, traidores, até mesmo alvos de perseguições. Uma abordagem tão intensa como esta vem reforçar de maneira trituradora os ensaios autoritários e de extermínio dos mecanismos democráticos realizados durante as fases mais agudas da pandemia de Covid-19.

A propósito da crise da Ucrânia, observem como os corajosos comentadores portugueses, sobretudo militares, que colocaram as suas competências, conhecimentos e experiências ao dispor de espaços de televisão dedicados ao assunto, e que expuseram ideias dissonantes da versão oficial e obrigatória, estão desaparecendo gradualmente de cena e se tornaram alvos dos aparelhos censórios a serviço do Ministério da Verdade. A honestidade intelectual está, deste modo, sob vigilância rigorosa.

O semanário de Bilderberg, órgão oficial deste ministério orwelliano reforçado com uma atualização do totalitarismo macartista, dedicou nutrida prosa contra os majores-generais Carlos Branco, Raul Cunha, Agostinho Costa e o coronel Carlos Matos Gomes por terem saído do modelo em que devemos todos estar alinhados no que diz respeito à invasão russa da Ucrânia. Eles explicaram objetivamente e com a qualidade de conteúdo própria de quem dedicou uma longa vida profissional às ciências e atividades militares, com muitos anos de presença em terrenos críticos, por exemplo na ex-Iugoslávia, circunstâncias que escapam à maioria dos leigos como nós. Não foram comentários, mas sim verdadeiras lições que nos permitem usar a cabeça para refletir e formar opiniões sobre uma guerra sem dúvida evitável. Ora esse é o problema: pensar – meio caminho andado para não engolir a verdade única.

Afirmando, sem pudor, que as opiniões daqueles militares coincidem com as «posições de Putin», o jornal cita fontes castrenses, algumas de cariz insultuoso, que não têm coragem de dar o nome e a cara, o que diz tudo sobre o seu caráter e o de quem lhes deu voz.

A censura, a manada e os jornalistas

Em terras portuguesas, garantidamente na Beira Baixa, costuma dizer-se que «quem quer conhecer o vilão basta pôr-lhe o porrete na mão».

Foi exatamente o porrete de um autoritarismo censório, ao mesmo tempo de uma mesquinhez ridícula, que levou os ministros dos Negócios Estrangeiros da União Europeia a proibir o acesso no espaço comunitário a publicações e emissões russas, entre elas o Russia Today e o Sputnik. Aliás, a decisão antes de ser tomada já o era: o agora autêntico primeiro-ministro em exercício Santos Silva aconselhara de véspera os cidadãos portugueses a não frequentarem esses órgãos de comunicação do inimigo, o que demonstra algum déficit de confiança em relação à solidez da opinião única, mas, por outro lado, parece ser aquela última oportunidade paternalista que qualquer agente da repressão concede com benevolência cínica antes de baixar o porrete na vítima.

Ora os senhores ministros sujaram-se por muito pouco.

Provavelmente confundiram o jornalismo com a atividade praticada por aquela manada de seres sem ética nem respeito pela profissão que os poderes têm à sua disposição para fazerem chegar a verdade indiscutível e as ordens à generalidade dos cidadãos, cada vez mais indefesos.

Acharam os senhores ministros que os jornalistas são uma espécie extinta de vez? Pensaram que os jornalistas que trabalham com opiniões, consciência e fatos ficariam órfãos devido à censura de meios de comunicação russos? Ou que os jornalistas a sério são capazes de produzir informação com base apenas na versão de uma das partes em conflito, seja ela qual for? Sabemos que, como ministros, vivem numa realidade paralela, que perderam o contato com a vida em sociedade tal como existe e chegam até a acreditar na comunicação social montada para os servir. Problema deles – mas também nosso, enquanto deixarmos.

Os censores falharam e ficaram a descoberto nas suas manobras repressivas. É óbvio que existem centenas de fontes credíveis sobre o conflito, significativamente muitas delas norte-americanas, da pátria adotiva do senhor Santos Silva, que repelem a opinião única. Há também o contacto direto, o skype, o zoom. E saibam os agentes macartistas que circulam pela net dezenas de links de acesso aos meios russos proibidos por Bruxelas. Como veem, recursos não faltam e diversidade de fontes também não.

É certo que poderiam trancar a internet, por exemplo, o que certamente os tornaria ainda mais populares. Continuaria, porém, a haver telefone e até contatos pessoais diretos, jornalistas competentes no terreno e dos dois lados da barricada, enfim uma panóplia de meios que alimentam uma informação independente – situada, segundo os torquemadas do pensamento, obviamente ao lado de Putin.

A mensagem é primária, mas se beneficiando de colossais meios de expansão torna-se asfixiante, uma verdadeira censura institucionalizada apesar do fracasso patético dos censores a varejo. Goebbels dará certamente cambalhotas de inveja no meio das chamas infernais.

Pandemia de racismo e nazismo

Em 8 de março, conforme testemunha a agência Getty Images, a OTAN celebrou o Dia Internacional da Mulher fazendo circular, evocando todas as mulheres do mundo, a imagem de uma terrorista do batalhão nazista ucraniano Azov exibindo na farda o símbolo do grupo, um sol negro, oriundo do ocultismo nazista alemão e que resulta da sobreposição de três cruzes suásticas.

Para a Aliança Atlântica a mulher nazista representa uma «combatente da liberdade», tal como os ucranianos do Leste, resistentes à limpeza étnica, são «terroristas». No mesmo nível, por certo, dos «terroristas» palestinos que resistem à matança, ao apartheid e ao confisco das suas terras.

Poderia ser um caso isolado, mas não é. O nazismo revanchista inspirado no colaboracionismo com Hitler nos anos quarenta do século passado e o racismo que lhe está associado são instrumentos que os Estados Unidos e a União Europeia têm manipulado, acarinhado e apoiado desde o golpe pela «democracia» cometido em Kiev no ano de 2014.

Os governantes europeus – os norte-americanos nem se dão a esse trabalho – e a comunicação social amestrada pretendem minimizar essas práticas fazendo crer que a presença nazista é insignificante no poder ucraniano.

Isso é totalmente falso e pretende esconder um colaboracionismo europeu e norte-americano com o nazismo para transformarem a Ucrânia numa ponta de lança contra a Rússia, enfraquecendo economicamente este país, isolando-o e tentando impedir que seja um empecilho à estratégia globalista conduzida no quadro do unilateralismo como ordem mundial inquestionável.

O fato de o presidente norte-americano Joseph Biden ter ameaçado a China de que irá «tomar medidas» no caso de Pequim não cumprir as sanções contra Moscou revela, desde já, o que virá a seguir ao hipotético enfraquecimento da Rússia.

O nazismo ucraniano não é um instrumento recente dos Estados Unidos e seus satélites. Desde 1949 que a CIA (e a sua antecessora OSS) usa os grupos nazistas ucranianos primeiro contra o poder soviético e, já depois da independência, sempre que o governo de Kiev não represente plenamente os interesses de Washington e Bruxelas. Assim aconteceu com a «revolução colorida» laranja de 2004 e com a mais eficaz e bem-sucedida conspiração terrorista de Maidan.

O primeiro governo saído do golpe de 2014 e as estruturas adjacentes integravam 10 representantes de grupos nazistas, entre eles o primeiro-ministro adjunto, o ministro da Defesa, o ministro da Educação e Ciência, o ministro da Ecologia e Recursos Naturais, o ministro da Agricultura e Alimentação, o ministro da Juventude e Desportos e dois secretários do Conselho de Segurança e de Defesa.

Este foi o governo criado sob orientação direta do falecido senador fascista norte-americano John McCain, da secretária de Estado Adjunta Victoria Nuland, por sinal uma norte-americana de ascendência ucraniana e judaica, e do então vice-presidente de Obama, Joseph Biden.

Atualmente o presidente do Parlamento de Kiev é o nazista Andrei Paruby, fundador do Partido Nacional-Socialista da Ucrânia e que, embora esteja sob a capa de outro partido, faz questão de dizer que não alterou as suas posições.

E o principal conselheiro do comandante em chefe das Forças Armadas ucranianas, general Valeri Zoluzhni, é Dmitro Yarosh, que antes disso dirigia o Batalhão Azov, um regimento nazista das tropas de Kiev que se tem destacado na limpeza étnica no Leste e, presentemente, na perseguição e fuzilamento de civis que tentam sair das cidades através de corredores humanitários. Além de instalarem armamento pesado em zonas residenciais, usando os civis como escudos humanos.

As simpatias nazistas não são muito relevantes como expressão da sociedade ucraniana, mesmo na maior parte das regiões ocidentais, mas estão firmemente incrustadas desde 2014, no nível de poder político e militar, nas estruturas do Estado ucraniano.

O presidente Zelensky gosta de repetir que não é simpatizante nazista porque é judeu.

Essa circunstância não o impediu, porém, de agraciar recentemente com o título de «herói da pátria», em pleno Parlamento, o atual comandante do Sector de Direita e, por inerência, do Batalhão Azov, Dmytro Kotsubaylo. Este nazista fez questão de receber a homenagem em farda operacional.

O nazismo como pilar das estruturas político-militares do Estado ucraniano reflete tendências racistas enraizadas no país e que divide totalmente a região Ocidental da região Oriental.

No dia 21 de julho de 2021, portanto há menos de um ano, o presidente Zelensky promulgou a chamada lei dos «povos autóctones», que só reconhece direitos plenos aos ucranianos de origem escandinava, segregando, com espírito de apartheid, os de origem eslava, em grande parte russófonos, os «pretos da neve». Recorda-se que uma das consignas dos grupos nazistas ao assumirem o poder em Kiev depois do golpe de Maidan era «barrar a russificação» do país, o que depois passaram à prática com a guerra e a limpeza étnica imposta no Leste, onde as populações, como forma de autodefesa, criaram as Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk.

De acordo com a lei dos «povos autóctones», a língua russa é suprimida dos serviços públicos e estatais, não pode ser ensinada, aprendida e falada.

O exaltado reconhecimento desta singular forma de «democracia», no entender da OTAN e da União Europeia, expandiu-se como uma pandemia pela Europa e os Estados Unidos através da histérica reação à agressão russa, como se as ações criminosas de índole militar fossem uma novidade nos pouco mais de vinte anos deste século.

Por exemplo, clubes de futebol que em tempos exibiram bandeiras da Palestina e foram multados por isso agora são exuberantemente felicitados quando enfeitam os equipamentos com símbolos ucranianos; aquele que é considerado o maior maestro vivo do mundo, Valery Georgiev, foi demitido das orquestras que dirigia por ter ficado em silêncio perante os acontecimentos na Ucrânia, e a célebre cantora lírica russa Anna Netrebko teve o mesmo destino; o jogador de futebol mais internacional de sempre da Ucrânia foi apagado dos anais desportivos do país por não se ter pronunciado sobre o conflito; e se por acaso o leitor tiver a ousadia de hospedar um gato russo como companhia saiba que não pode registar a respectiva raça na Federação Internacional Felina, ficando o pobre bichano sem pedigree.

São aspectos ainda assim menores, quase caricaturais, que traduzem uma gigantesca vaga de racismo, xenofobia, segregação e perseguição – atingindo até crianças russas vítimas de bullying nas escolas – que se expande na Europa como uma peste, atingindo os níveis da irracionalidade e da crueldade pura, na esteira daquilo que agora Biden finalmente confessou ser o objetivo de toda a campanha: «a guerra econômica contra a Rússia».

Onde se recorda Pulitzer

Provavelmente o cidadão comum não se apercebe do significado profundo destes comportamentos porque consome, na maioria dos casos sem defesas, as mensagens inquinadas ou simplesmente mentirosas dos dirigentes políticos e da comunicação social dominante. São eles que disseminam o racismo e a xenofobia aproveitando-se da situação ucraniana.

Na verdade, a solidariedade manifestada através da onda de acontecimentos e comportamentos em massa, regra geral plenos de boa vontade, é parcelada por circunstâncias perversas e destina-se apenas a parte dos cidadãos ucranianos, os de «primeira», de origem escandinava, segregando os restantes ucranianos, os que afinal têm sido vítimas da guerra conduzida há oito anos em boa parte por grupos nazistas treinados e financiados pela OTAN.

O cenário assim montado é de uma coerência comovente. A Polônia, que ainda há semanas punha para correr os refugiados que pretendiam entrar no país – vítimas das muitas guerras provocadas pelos Estados Unidos, a OTAN e a União Europeia – recebe agora de braços abertos os fugitivos ucranianos, obviamente ocidentais e de «primeira», como definiria Zelensky.

A União Europeia, que para não receber refugiados financia campos de concentração na Líbia onde, depois de desapossadas dos seus bens, pessoas que fogem das guerras e do colonialismo são torturadas e mesmo assassinadas; que persegue seres humanos à deriva no Mediterrâneo, deixando que milhares deles se afoguem, pois agora essa União Europeia está pronta a receber os refugiados ucranianos, sejam eles quantos forem.

É sempre mais reconfortante, pelos vistos, acolher gente com boa aparência, de preferência seres louros e de olhos azuis, do que maltrapilhos de pele escura, esfomeados que pretendem viver às custas dos serviços sociais dos países civilizados. Trata-se de injeções de «sangue puro», como dizia o inquisidor Torquemada, seguido depois por Hitler e agora, na Ucrânia, pelo «fuhrer branco», Andriy Biletsky, fundador das milícias Corpo Nacional e depois do Batalhão Azov, cuja obra inspira os acampamentos de crianças que recebem formação nazista e treino militar, e que tem como objetivo «conduzir as raças brancas na cruzada final». Biletsky, também ele inspirado pelo agora herói nacional da região ocidental da Ucrânia, Stepan Bandera, que inspirou o assassinato em massa dos seus compatriotas, judeus ou não, a soldo de Hitler. Biletsky, enfim, ponta de lança da grande fraternidade ocidental.

Até as autoridades portuguesas, tão parcas em receber refugiados das guerras e das catástrofes naturais na África e no Oriente Médio, apesar de Portugal ser dos países da União com as portas mais entreabertas mas onde um imigrante ucraniano foi assassinado por agentes policiais no aeroporto de Lisboa, está agora pronto para receber os refugiados da Ucrânia ocidental «que for preciso». O governo português é, portanto, parte da grande vaga xenófoba.

A comunicação social desempenha papel essencial nesta cavalgada. Uns de maneira encapotada, sabendo o que estão a fazer mas não dando o flanco para não perderem eficácia nos objetivos; outros, delirantes, com o coração ao pé da boca desvendam o que lhes vai na alma. De certa maneira, a situação atual é um campo inexplorado: pela primeira vez neste século os meios corporativos estão do lado das vítimas da guerra (mas só de algumas) e não do lado dos agressores.

Diz Charlie D’Agata, correspondente em Kiev da CBS News norte-americana: «Este não é um lugar, com todo o respeito, como o Iraque ou o Afeganistão, onde há décadas os conflitos se arrastam. Esta é uma cidade relativamente civilizada, relativamente europeia, onde isto não é de esperar».

Xenofobia, mas «com todo o respeito»

A palavra agora para Peter Dobbie, do canal inglês da Al-Jazeera, sobre os refugiados: «O que é convincente é que só de olhar para eles, da maneira como estão vestidos, são pessoas prósperas, de classe média, não são obviamente refugiados tentando fugir de áreas do Oriente Médio que ainda estão em grande estado de guerra; não são pessoas tentando fugir de áreas do Norte da África: parecem-se com qualquer família europeia que seja nossa vizinha».

Note-se que, apesar de tudo, os refugiados do Oriente Médio e do Norte de África ainda são considerados «pessoas».

A BBC deu voz a um ex-procurador adjunto da Ucrânia, David Sakarelidze, para afirmar «que é muito emocionante para mim porque vejo europeus com olhos azuis e cabelos louros que estão sendo mortos». E Lucy Watson, da ITV News britânica, admira-se porque «o impensável aconteceu: esta não é uma nação em desenvolvimento do Terceiro Mundo, isto é a Europa».

A emoção é compartilhada por Daniel Hannan, ex-deputado europeu, em declarações ao Daily Telegraph: «Eles parecem-se tanto conosco, é isso que torna isto tão chocante. A guerra deixou de ser uma coisa que atinge populações empobrecidas e remotas, pode acontecer a qualquer um».

Também Michel Knowles, identificado como jornalista do Daily Wire, foi abalado pelo choque. «Acabou agora de me ocorrer», surpreendeu-se, «que esta é a primeira grande guerra entre nações civilizadas na minha vida».

Guerra é coisa de pobres, de gente a quem a violência militar é levada pelos ricos para que fiquem finalmente civilizados e democratizados. Desde 24 de fevereiro, início da invasão da Ucrânia pela Rússia, houve mais bombardeamentos aéreos da Arábia Saudita contra o Iêmen, com apoio norte-americano, do que de russos sobre o território ucraniano.

Entretanto, Jeremy Bowen, jornalista do modelo de independência e circunspecção que é a BBC, divulgou instruções sobre «onde e como» lançar cocktails Molotov, «um guia para os voluntários ucranianos».

Joseph Pulitzer, grande jornalista norte-americano falecido em 1911, escreveu um dia que «com o tempo, uma imprensa cínica, mercenária, demagógica, corrupta formará um público tão vil como ela».

Pulitzer era realmente um visionário, alguém que percebeu há mais de um século o potencial de manipulação e degradação social que havia num instrumento tão indispensável como a comunicação social.

O cenário montado a propósito da Ucrânia é exemplar. E ainda há quem se surpreenda com a veloz reativação de correntes neofascistas e neonazistas através da Europa. Pois se os próprios dirigentes da OTAN e da União Europeia, proclamados defensores da democracia, lhes dão a mão para defenderem os seus interesses – que não os dos povos dos seus países – fica tudo explicado. Daí que nada haja de escandaloso em vermos em Portugal bandeiras da Juventude Socialista juntas com as do Chega e do Setor de Direita ucraniano em manifestações sobre a Ucrânia. Tal como Borrell e Santos Silva tomam atitudes censórias enquanto sustentam objetivamente o terrorismo do «führer branco» que se prolonga há oito anos.

Nada disto tem a ver com a paz ou a defesa da paz, única maneira de interromper a nova fase do conflito ucraniano aberta com a também criminosa agressão russa. Nesta guerra não há inocentes, a não ser as vítimas civis a Ocidente e Oriente do país, tal como poderá não haver vencedores.

Mas até a defesa da diplomacia urgente, do respeito por acordos assinados e assumidos pela ONU, da procura de soluções pacíficas como única saída desta tragédia significa um apoio a Putin para aqueles que incitam Zelensky a não se envolver seriamente no processo negocial, de modo a que a guerra se prolongue.

As castas dirigentes e os seus megafones estão atuando cada vez mais irresponsavelmente em nível internacional.

José Goulão, Exclusivo AbrilAbril

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