“Não adianta negociar: é preciso ir para a ofensiva.”

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Entrevista de Sofia Manzano para a Revista O Sabiá, por Sofia Schurig, fundadora e editora-chefe. Comunicação na UFBA. É da redação digital da Jacobin Brasil e estagiária no Núcleo Jornalismo.

Economista, professora e ex-candidata à presidência, Sofia Manzano tem sacadas geniais aos jovens que estão tristes e desmotivados com a política nacional.

Para falar sobre o futuro da política brasileira, entrevistamos Sofia Manzano, ex-candidata à presidência pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB) e doutora em história econômica pela Universidade de São Paulo (USP). Desde 2013, ela mora na Bahia, e dá aulas de economia na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). Durante a campanha presidencial, entrevistamos Manzano como candidata.

O bolsonarismo não sumirá com Jair Bolsonaro deixando a presidência da República. Lula, se eleito, enfrentará múltiplas dificuldades econômicas, disputas no novo Congresso, além de uma resistência popular por aqueles que continuam presos no que Manzano chama de “pulsão de morte” do bolsonarismo. Esta entrevista não é direcionada aos vira-voto, mas aos jovens que não possuem dúvidas acerca de quem votar pela democracia, apenas estão deprimidos, desmotivados e confusos com o cenário político louco em que vivemos no Brasil.

Uma candidata que teve boa parte de sua votação concentrada na juventude, Manzano é a melhor pessoa para conversar sobre isso. Através de uma entrevista descontraída, onde a questionamos mais sobre comunicação do que economia, podemos ver algumas sacadas importantes da professora sobre o cenário brasileiro. A economista também faz pontos importantes sobre o por quê continuar lutando por um mundo melhor, ainda que isso seja chato e cansativo.

Com a nova eleição para o parlamento, vimos que a extrema-direita ganhou muito mais espaço, enquanto a direita tradicional e a centro-direita perderam espaço. Ao mesmo tempo, a esquerda, a legislativa, vai indo cada vez mais à direita, se adequando cada vez mais. Assim, algumas pautas vão perdendo força, como, por exemplo, a pauta do aborto ou de uma renda universal mínima. Alguns partidos da esquerda radical e outros pequenos setores da centro-esquerda tentam resistir e isso parece dar certo, mas parece se criar um panorama que a esquerda está se tornando mais de direita. Queria saber se você concorda com esse cenário, e te ouvir sobre quais são as suas opiniões sobre essa nova bancada.

Ainda é bastante cedo para analisarmos completamente a composição do Congresso, porque fazer parte de uma legenda, de um partido, é muito fluído no Brasil. De fato, o PL (Partido Liberal) elegeu muitos deputados, diversas outras legendas da direita que apoiam Bolsonaro também elegeram e algumas das figuras importantes do bolsonarismo mais reacionário foram eleitas. Entretanto, devemos entender que tudo depende do segundo turno, porque o Congresso Nacional, mesmo após a Assembleia Nacional Constituinte, flutua conforme os objetivos do capital, evidentemente, mas também das possibilidades de ação que o Executivo propicia para ele.

Então, ao mesmo tempo que se tem uma bancada de direita, tem um conjunto de lideranças e outros deputados eleitos que ampliaram, digamos, uma pauta de esquerda importante. Como você mesmo disse: alguns deputados do PSOL ou mesmo de outras legendas, que representam, por exemplo, os povos indígenas – poderão ter uma força no Congresso a depender de muitos outros elementos, não apenas a composição do parlamento.

Não podemos saber exatamente o que vai ser desse Congresso, porque esses deputados do PL, por exemplo, que hoje se elegeram na rasteira do Bolsonaro, mudarão para outras legendas e outras posições numa rapidez expressiva, caso Bolsonaro perca no segundo turno. Inicialmente, é difícil já sairmos derrotados desse processo apenas por conta de quem foi eleito para o legislativo.

É óbvio que tem uma importância, mas podemos perceber, por exemplo, que um Congresso Nacional que seria, teoricamente, menos de direita do que esse, foi o que promoveu o impeachment, o golpe, contra a Dilma. Tudo depende da movimentação das forças políticas, bem para além do Congresso Nacional.

Em sua opinião, quais são as principais dificuldades de Lula neste segundo turno? Bolsonaro está tirando dinheiro de vários órgãos e projetos públicos para o orçamento secreto, ou Bolsolão, além das milícias digitais. Existem muitas frentes de ataque à candidatura. Quais serão as principais dificuldades de Lula nesse turno, e como a esquerda, tanto a centro-esquerda quanto a radical, podem se unir para superar essas dificuldades?

Há vários níveis de dificuldade, mas Lula tem algumas vantagens para vencer a eleição. Ele já saiu com, se não me engano, seis milhões de votos na frente — isso é uma vantagem expressiva e unificou um campo muito grande que percebe a necessidade imediata de derrotar Bolsonaro.

Acredito que as principais dificuldades estão nas fake news, em combater as fake news e ser mais incisivo. Quer dizer, ele também tem outro inimigo interno, digamos assim, no campo da política, a direita liberal no campo da economia, que fica puxando o tempo todo para pautas que prejudicam Lula. Por exemplo, recentemente, o Henrique Meirelles fez um tweet com um fio grande, dizendo da necessidade absoluta de fazer a reforma administrativa para equilibrar as contas públicas. Enfim, toda aquela “conversaria” que sabemos que não tem nenhum fundamento de cientificidade, mas que a direita quer por que quer a reforma administrativa. Então, a campanha do Lula está a todo momento sendo colocada em xeque, dando vazão pro bolsonarismo expandir ainda mais a sua área de influência.

Agora, o que mais preocupa hoje são as fake news, é o discurso irracional que acaba tocando as pessoas de uma forma que é própria do fascismo. Por exemplo, os discursos que a Damares faz, a provocação que Bolsonaro fez na Basílica de Nossa Senhora Aparecida, tudo isso não é sem querer. Isso é organizado para criar a todo momento uma comoção entre o bem e o mal na população mais fragilizada — sendo que eles se colocam, mesmo fazendo o mal o tempo todo, como os salvadores. Essa é uma dificuldade, mas acredito que o Lula apresenta uma reação importante nisso, que é não menosprezar esse elemento subjetivo e irracional usado nessa campanha. O fascismo bolsonarista está acionando instintos animais e irracionais na população para vencer a eleição. O Lula consegue tentar frear, de certa forma, esses instintos irracionais e não utilizar da mesma estratégia.

Acredito ser bem possível ganhar eleição. Você também perguntou: o que temos que fazer para ajudar nesse sentido? É não usar das mesmas estratégias irracionais de combate a esse irracionalismo. Quando se coloca toda uma rede de fake news, um conjunto de elementos de ataques brutais contra a religiosidade — uma ou outra, agora foi o catolicismo — não podemos nos colocar no mesmo patamar de atacá-los da mesma forma. Devemos resgatar na população aquilo que ela tem de racional e humano, isso também envolve um resgate do subjetivo humano que não é irracional, não é essa pulsão de morte que o Bolsonaro resgata na população.

Então, qual é esse elemento no meu entender? É a perspectiva que podemos, como humanidade, construir um futuro generoso. Uma humanidade que já produziu, por exemplo, a quantidade de músicas espetaculares que temos, manifestações culturais tão diversas, bonitas, alegres. Resgatando esses elementos, podemos trazer de volta um conjunto da população que está imerso nessa subjetividade mórbida que o bolsonarismo — uma expressão do fascismo no Brasil. Hoje, estava ouvindo algumas músicas, pensando: “Gente, quem já produziu isso, não pode caminhar para o fim da existência humana”. Já produzimos tantas coisas maravilhosas, e precisamos resgatar esse sentimento lindo e maravilhoso para trazer de volta o aspecto humano da sensibilidade, porque o bolsonarismo está ativando o aspecto desumano da sensibilidade.

Com uma vitória do Lula, e presumindo que ela será aceita por Bolsonaro sem tumultos ou golpes, algo que me preocupa é que o bolsonarismo não acabará. A direita brasileira se tornou o bolsonarismo, da mesma maneira que o republicanismo nos EUA se tornou o trumpismo. Como você acredita que, com uma possível vitória de Lula e supondo que Bolsonaro aceite a derrota, poderemos voltar a viver normalmente?

Independentemente de o Bolsonaro tentar dar golpe ou não, isso não vem ao caso. Nós, como atores políticos, pessoas políticas e militantes, precisamos entender que o que permite o bolsonarismo se crie e perpetue no Brasil é a falta de expectativa no futuro. Os brasileiros, sejam eles os mais jovens ou mais velhos, não veem perspectiva de futuro. Esse fim do horizonte faz que se crie esse ressentimento e a violência — quer dizer, se não tem futuro, então posso matar o vizinho do lado. A reivindicação que o bolsonarismo faz de uma liberdade irrestrita não é uma liberdade de viver em sociedade, mas uma liberdade de fazer o que quiser e não ser punido por nada, porque eu quero assim — isso vemos desde uma discussão de condomínio até falas do próprio Bolsonaro.

Então, como enfrentar isso? Há várias maneiras. Primeiro, apresentando uma perspectiva de futuro, um projeto ou programa que comece a empolgar os brasileiros, sobretudo a juventude, para ajudar nessa construção de perspectiva de futuro. Eu, como comunista, volto sempre a dizer que o comunismo é a proposta mais generosa que a humanidade produziu. É uma necessidade ir em busca do comunismo, mas, para isso, temos que nos organizar. Para isso, precisamos estar atuando na sociedade, no cotidiano de nossas vidas. Essa é uma questão.

A outra questão diz respeito às lutas pontuais e o movimento que um futuro governo Lula pode gerar na sociedade, que é um programa para a melhora efetiva nas condições de vida objetivas. A vida precisa melhorar para que as pessoas possam ter condições de se organizar, se mobilizar, mas nunca podemos parar de pensar em nossa organização política. É apenas nos organizando e atuando na sociedade que teremos condições de acionar esse futuro. Simplesmente condenar o bolsonarismo, achar ruim, ir votar e acabou, não resolve. O bolsonarismo, independente do Bolsonaro, tem outros fascistas que podem ser acionados para fazer brotar toda essa situação sombria que representa o movimento — essa pulsão de morte decorrente da falta de perspectiva de futuro, de falta de horizonte. Teremos que continuar na luta.

Não podemos entregar os pontos e achar que a simples resolução de problemas pontuais enfrentará o fascismo. O fascismo deve ser enfrentado nos dois pontos. Do lado objetivo, das condições materiais, através de condições materiais para que a população viva, mas também dando um sonho, um horizonte, uma utopia. Essa utopia não pode ser o reino após a morte. Ela deve ser construída aqui, e para construí-la, temos que nos organizar, lutar e se desenvolver pessoalmente, criar.

Existe muita cobrança, de algumas classes, para que o Lula prometa fazer políticas ultraliberais na economia. Se ele fizer isso, não conseguirá dar a condição de vida material que os brasileiros precisam nesse momento, como você citou. Não tem como, por exemplo, fazer qualquer projeto de auxílio social com o teto de gastos, sem partir para algo como o orçamento secreto. A campanha, de fato, promete aos eleitores que tudo será como 2003, e naquele ano, o Lula realmente elaborou um projeto econômico incrível. Ele conseguiu criar aquele cenário não apenas com a ajuda de vários economistas, mas também se aproveitando do momento de crescimento em que o mundo passava. Agora, vinte anos depois, ele muito provavelmente não conseguirá fazer o mesmo. Em sua visão de professora e economista, o que o Lula poderá concretizar no cenário econômico, se eleito?

Acredito que Lula não terá muitas condições, caso não enfrente de forma contundente as limitações dadas na conjuntura brasileira. Entre elas, o teto de gastos, a reforma trabalhista, a reforma do ensino médio, além das pressões da grande mídia para que as contrarreformas se aprofundem, como a privatização da Petrobras e um conjunto de estruturas do Estado — como a reforma administrativa e a cobrança de mensalidades nas universidades públicas.

Todas essas são pautas burguesas, independentemente de estarem na extrema-direita, ou compondo a chapa do Lula — porque elas também a compõem. Não é à toa que os economistas liberais e ultraliberais todos estão apoiando o Lula. Ele terá muitas dificuldades em enfrentar essa pauta econômica ultraliberal, e nós vamos ter que ver se esse movimento de ascensão do lulismo enquanto movimento de massas, que tem se demonstrado nos últimos dias em gigantescas manifestações, vai se perpetuar na defesa dos projetos de Lula para o futuro. Nós, do PCB, rompemos com o governo Lula em 2005 — antes do mensalão, inclusive — porque ele estava abrindo mão de acionar seu potencial político de massas pelos conchavos com a direita. Não só no parlamento, mas com as forças da burguesia no cenário interno.

Então, nós teremos que ver o seguinte: Lula irá continuar com a mesma estratégia de conchavos? Assim como você falou, a conjuntura econômica era diferente naquele período. De fato, era. Por isso, ele tinha ainda mais condições de fazer e resolveu fazer menos do que poderia. Além da conjuntura econômica ter sido muito mais favorável, ele tinha um apoio de massas muito grande por vencer a eleição, um partido organizado e com militância. Se o Lula não acionar esse potencial político de massas, que não é só o número de votos que você teve, o número de votos vira no dia seguinte. Você tem que continuar acionando o seu potencial de massas para pressionar os diversos setores internos da burguesia e das forças das facções políticas para encaminhar medidas necessárias.

Lula vai ter um problema muito sério de governabilidade em um curtíssimo espaço de tempo, mas isso não é um problema para a burguesia interna e para o capital. Desde que começaram as conversas para que Geraldo Alckmin se tornasse vice no passado, cheguei a dizer que essa era a maneira mais fácil de o PSDB chegar à presidência da República sem precisar enfrentar o Lula — sendo o próprio vice. Se ele não se aproveitar de todo esse conjunto da população brasileira que está depositando essa esperança e confiança para mobilizar essas forças e implementar um programa econômico que não aprofunde ainda mais o projeto ultraneoliberal, ele perderá completamente o apoio que eventualmente consiga ter no Congresso Nacional, e nós teremos um Alckmin como presidente.

Me lembro, Sofia, de ter lido o seu plano de governo, além de outros candidatos. Algo que chamou a atenção no seu plano, não só a minha, mas de muitos, foi a redução da jornada de trabalho para 30 horas semanais. Isso não é algo radical, mas básico até mesmo em países neoliberais e de direita no norte do mundo, mas no Brasil, direitos básicos sempre são inacessíveis, impossíveis e radicais. Assim como você disse anteriormente, é muito cedo para vermos algo no Congresso, mas você acredita que, caso o Lula seja eleito, há um cenário onde podemos lutar e efetivar esses direitos básicos?

Acredito que se amplia uma possibilidade de luta, não se abre, porque as possibilidades de luta sempre existem. Elas ampliam justamente porque conseguimos eleger um conjunto de deputados de diversos espectros progressistas da sociedade brasileira e estão mobilizados. Não apenas mobilizados no sentido de ficar na defensiva no Congresso, mas ir para a ofensiva. Acredito que o mais importante na minha campanha presidencial foi mostrar para um conjunto — ainda muito pequeno da juventude trabalhadora brasileira — que precisamos sair da defensiva e ir para a ofensiva.

É preciso ir para a ofensiva da forma que nós mobilizamos a juventude e a classe trabalhadora para ir até ao Congresso Nacional e exigir que pautas importantes sejam atendidas. Não adianta ter a estratégia da negociação. Existem algumas experiências que demonstram como isso é possível de ser feito, e como isso é bem efetivo. A primeira experiência foi a própria Constituição de 1988. A Assembleia Nacional Constituinte fez com que a própria Constituição — que é considerada uma boa Constituição, pena que já desmontaram tanto ela que já não sobra nada do que ela era antigamente —, garantisse um conjunto de direitos importantíssimos. Os congressistas que compunham a assembleia eram na sua ampla maioria de extrema-direita, direita ou do centrão. Só para se ter uma ideia, o PT tinha 6 deputados, o PCB tinha 3, e alguns setores mais progressistas do trabalhismo tinham mais uns 10 ou 12. O resto era o centrão e a direita. Como é que foi possível aquela Constituição? Ora, só foi possível porque a sociedade estava tão mobilizada para que aquilo fosse feito.

Então, é muito importante hoje, por exemplo, trazermos para fora do Congresso as pautas que são debatidas. Não apenas na noite em que a votação começa e na madrugada em que ela termina, para depois fazermos manifestações que não à isso, não àquilo. Temos que trazer essas pautas antes que elas se definam no Congresso, e fazer com que a população participe desse debate.

Durante a campanha, fui muito questionada porque a minha campanha foi uma das únicas que falou com bastante ênfase sobre a legalização da maconha. Fomos questionados por diversos meios “mas a população brasileira é contra a legalização da maconha, você não acha que você estreita o seu discurso se você defende a legalização?”. Respondo da seguinte forma: a legalização da maconha vai acontecer, porque já está sendo debatido. Agora, temos que trazer esse debate para a sociedade. A legalização da maconha está sendo preparada de forma que só os grandes monopólios do agronegócio e das indústrias farmacêutica e tabagista possam plantar, se beneficiar e distribuir os derivados da maconha, mesmo para o uso recreativo. Então, é como se teremos a legalização da maconha, mas você não pode plantar o seu pé de maconha em casa, porque aí é ilegal. A legalização vai ocorrer, nós como sociedade apenas não estamos participando desse debate.

Temos que fazer com que a sociedade participe de diversas outras pautas importantes e progressistas, para que se encaminhe essas pautas para um sentido progressista. Terá que haver alguma regulação do trabalho, principalmente para a juventude, porque da forma que o trabalho foi absolutamente desregulado pela reforma trabalhista, isso inviabiliza o próprio desenvolvimento dessa juventude e o desenvolvimento da acumulação de capital no Brasil. Agora, essa regulação ficará no congresso e se tornar um novo pacote goela abaixo para nós, ou iremos nos apropriar disso e falar que queremos uma jornada de trabalho de trinta horas semanais, que a mão de obra de todos os trabalhadores de aplicativo sejam intermediados por uma empresa pública? Outra questão, a pauta LGBTQIA+ irá avançar. Queremos que ela avance apenas para existir um grau de igualdade formal, ou que exista, por exemplo, uma política de cotas, a efetividade da garantia do direito do nome social, um programa de saúde específico para a população LGBT, principalmente para as mulheres trans?

Existem um conjunto de elementos que precisam ser debatidos pela sociedade. Precisamos trazer de volta a população brasileira para acionar essas pautas no debate diário e ir para a ofensiva. Vejo com bastante otimismo a atuação da esquerda e da esquerda socialista no congresso.

Acredito que para essa dianteira, falta o papel dos meios de comunicação. Uma das funções sociais do jornalismo é inteirar a sociedade não só no que ela quer, mas no que ela precisa saber. A sabiá, por exemplo, foi criada com o lema “Democratizar o acesso à informação” — porque sabemos ela não é distribuída de maneira igual na sociedade. A comunicação no Brasil, em especial o jornalismo, parece estar afastada das necessidades reais do povo. Como alguém que estuda e trabalha no meio, vejo que uma das alternativas para solucionar isso é o investimento em mídias estatais públicas que sejam independentes da alternância de poder. No Brasil, elas nunca tiveram essa atuação forte, ao contrário de países na Europa, como na Inglaterra (BBC) e Alemanha (DW). Como você acha que um novo governo de esquerda pode solucionar esse abismo na representação dos interesses e necessidades da população nos meios de comunicação, sem cairmos em discursos ou propostas extremas?

A questão dos meios de comunicação não é nem só de agora. Eles sempre foram um braço muito poderoso dos grupos dominantes no Brasil. Você deve saber que o Estadão e a Folha de São Paulo defenderam a ditadura, que a Globo demorou cinquenta anos para reconhecer seu erro na defesa da ditadura. Além disso, eles são, como meios de jornalismo, um jornalismo que só tem uma visão.

Esse um problema que deve ser enfrentado de duas formas. A primeira delas é construindo meios de comunicação, como você mesma falou da revista o sabiá, e buscar inserção, conseguir estar junto à população. Usar plataformas como o YouTube e o Instagram para produzir conteúdos e disseminá-los com qualidade e seriedade, para diferenciar do que a direita faz e até mesmo uma parcela da esquerda faz, num achismo de opinião. Agora, isso também passa por uma regulamentação. Na Europa e até mesmo nos EUA, não há o que se tem aqui, porque o que há no Brasil não é uma liberdade de imprensa. O que se tem no Brasil é um único grupo, uma única classe social que detém todos os meios de comunicação que são públicos. Não estou falando da Folha ou do Estadão, porque esses são jornais impressos. Agora, televisão e rádio são concessões públicas e é uma classe social que detém todos esses meios de comunicação. Tem que ter algum mecanismo de regulação.

Além disso, tem de se incentivar redes locais e de produção de conteúdo que representem outros interesses, assim como blogs e redes de rádios comunitárias, rádios das diversas formas e ter um maior controle sobre a utilização do espaço público pela mídia.

Agora, Sofia, quero que entremos em um assunto importante: o futuro da juventude. O nosso jornalismo aqui é voltado para a juventude, e sempre tivemos canais muito abertos para contato com os leitores. Uma coisa que percebo, tanto em nossa própria redação quanto nos leitores que mantemos contato, até mesmo na faculdade, é que todos nós estamos desmotivados. Como podemos continuar indo para as aulas, trabalhando e vivendo, enquanto o mundo está acabando? Como você acredita ser possível incentivar a juventude não apenas a se organizar politicamente, mas também uma motivação para que os jovens participem no processo de repensar um futuro melhor?

Em primeiro lugar, tenho que dizer o seguinte: se você desistir, eles vencem. Portanto, nós não temos alternativa. Todos nós, jovens ou não, não temos alternativa. A nossa única alternativa é lutar. Bom, como fazer isso? De diversas maneiras. Primeiro, precisamos lutar internamente. Tenho essa preocupação com o adoecimento mental da juventude, justamente por conta dessa falta de perspectiva. É preciso olhar para o passado e observar que nos piores momentos da humanidade, pessoas acionaram para superar aqueles momentos e sempre foram os revolucionários que acionaram esses gatilhos que superassem os piores momentos.

A primeira questão é sair da defensiva e ir à ofensiva, em todos os aspectos. Se chegamos no ambiente da universidade e nos deparamos com uma situação em que ela está precária pela falta de professores, sem disciplinas, não podemos nos acomodar. A todo momento vemos essa acomodação nos ambientes universitários, que vêm sofrendo cortes de verba brutais. Ficamos tentando nos adequar a essa restrição orçamentária e chegou a hora de não nos adequarmos mais, de simplesmente pararmos. Nós, alunos, professores, trabalhadores da universidade, pararemos no dia 18 de outubro pela educação. Devemos parar e mobilizar todas as forças possíveis, ir para a ofensiva, ao invés de nos adequar ao orçamento.

A segunda questão é também mobilizar em nós as subjetividades boas que nos impulsionem para a luta e a organização. É observar tudo o que a humanidade já fez de tão bom e belo, porque temos ressaltado muito o que temos de ruim. No capitalismo, temos um bilhão de pessoas passando fome. A degradação ambiental é terrível. Ficamos o tempo inteiro avaliando a tragédia em que nos encontramos e é muito importante saber dessa tragédia. Nós não podemos tapar o sol com a peneira, mas precisamos relembrar que a humanidade já produziu muitas coisas boas.

Durante a campanha eleitoral, recebi muitos xingamentos de pessoas de extrema-direita afirmando que eu era burra, ignorante, não teria sequer um telefone celular se não fosse o empresariado. Então, respondi que nunca ouvi falar de nenhum CNPJ que tenha feito um desenvolvimento tecnológico, quem desenvolve as tecnologias são os seres humanos. Precisamos sair da armadilha de pensar que este é o único mundo possível e ver que tudo até hoje, de bom e de ruim, foi produzido pelos seres humanos.

A questão central do que foi produzido de ruim no atual momento em que vivemos é a relação social de produção capitalista, por isso, ser anticapitalista não é retroceder a um mundo imaginário em que nós não tenhamos os avanços que temos até aqui, mas é superar a relação social de exploração. É possível viver tranquilamente neste mundo com a tecnologia que temos e com mais outras que produziremos sem haver degradação ambiental, degradação humana, degradação da saúde populacional. Por que sei que é possível? Porque superamos coisas muito mais difíceis de se superar, basta ver as coisas que aconteceram ao longo da existência da humanidade.

Agora, qual é o entrave para produzir esse mundo generoso? O capitalismo. Dessa forma, podemos levar à juventude a perspectiva de que existe um horizonte de futuro que não é distópico, para não simplesmente se acomodar e dizer “esse país não tem mais jeito” ou “vou sair desse país”, porque os outros países também estão assim. Precisamos, coletivamente, pensar em estratégias de superação do capitalismo. Não apenas enfrentar as coisas ruins do capitalismo, mas enfrentar e superar.

Essa é uma pergunta que, na verdade, minha mãe elaborou. Além da leitura do cenário geral, que já é desmotivador por si só para qualquer um, a senhora certamente deve receber muitos ataques e coisas odiosas. Então, como você lida com tudo isso?

Bom, não são só os ataques. Os ataques às vezes são o mais tranquilo, porque vem de um grau de ignorância, de brutalidade. Quer dizer, a pessoa se dá ao trabalho de entrar na minha rede social para escrever “sua burra, vai estudar”. Não me importo com isso, não é nem a questão que me abala. Evidentemente, também sou muito abalada por toda essa situação muito dramática pela qual estamos passando. No entanto, aciono os gatilhos importantes para mim e que me fortaleçam nessa perspectiva de luta.

Gosto muito e sou apaixonada por música. Ver, por exemplo, desde uma peça de Bach, Beethoven, um samba brasileiro, um blues norte-americano, até agora, estava escutando Orishas — rap cubano. Você pensa o que os seres humanos já fizeram. Olha o grau de complexidade que eles já alcançaram. Será que vamos jogar tudo no lixo por conta de um super lucro especulativo que não pode ser apropriado, nem materialmente? Esse é um dos meus gatilhos positivos — hoje se usa muito esse termo “gatilho” para o elemento negativo, então vamos falar de gatilhos positivos, os da força. Vejo muito do que acho importante para a humanidade na arte. Para mim, a arte é a expressão mais sublime da humanidade. Agora, estamos sendo bombardeados por um lixo na música, na escultura, no cinema, que faz com que pensemos que e a humanidade não produz mais nada de bom. Mas, ela produz, ou pelo menos já produziu em algum momento. Temos que resgatar isso como um elemento bom.

Outra questão que funciona muito bem para mim é o fato de poder conversar com muito mais gente. Eu não leio as coisas e estudo só para me informar, eu leio e estudo para entender porque as coisas estão dessa forma, como é que elas chegaram aqui. Claro que você precisa ter informação, mas você tem que fazer as conexões entre essas informações. Não adianta você fazer isso só para si, você tem que compartilhar isso.

Então, para mim um dos elementos que me dá muita força e energia é a possibilidade de passar para mais gente estas conexões que eu vou aprendendo ao longo do tempo, e posso trazer para um conjunto maior de pessoas. Pelo menos essas análises da realidade e passar isso pra frente. Isso me motiva, me dá ânimo, me dá energia. Fora o fato de estar organizada, ter que preparar questões que são importantes para a própria organização. Assim, temos que enfrentar e enfrentamos. Tudo o que nós não podemos fazer é desistir, porque se desistirmos eles ganham, ganham mesmo.

Pode parecer bobagem o que falo, mas isso é efetivo. Por exemplo, pensei durante a campanha, e se nós pudermos construir um festival? Ano que vem, precisamos construir um festival de hip hop e rap, não com os grandes nomes, mas com essa juventude gigantesca que conheci durante a campanha e está produzindo rap de altíssima qualidade. Como podemos acionar isso? Conversando com uma prefeitura, um espaço, uma rave, um patrocinador — não trabalho na produção cultural, então não sei como produzir, mas podemos preparar e mobilizar isso, fazer um Woodstock do rap. Tudo isso dá muito ânimo e muita força. Existem várias formas acionarmos nossos gatilhos do bem, o que a gente tem que enfrentar são os gatilhos do mal os gatilhos da depressão do desânimo e pensar coletivamente como vamos construir isso.

Precisamos repensar o futuro para a juventude

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