Contribuição a uma introdução leninista ao marxismo

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Por Gabriel Landi Fazzio

“Marx e Engels disseram que seus ensinamentos ‘não são um dogma, mas um guia para a ação’. Essas palavras suas foram continuamente repetidas por Lênin”. (Como Lênin estudava Marx, por Nadejda Krúpskaia)

“Será nomeadamente o dever dos dirigentes esclarecer-se cada vez mais sobre todas as questões teóricas, libertar-se cada vez mais da influência das frases tradicionais, pertencentes à velha visão de mundo, e ter sempre em mente que o socialismo, desde que se tornou uma ciência, também requer seu exercício como ciência, isto é, sendo estudado.” (Prefácio a As guerras camponesas na Alemanha, por Friedrich Engels)

Um século promissor para a difusão do marxismo no Brasil

Três décadas após a dissolução da União Soviética e a mal-sucedida proclamação do “fim da História” pelos ideólogos da burguesia, o estudo do marxismo vive uma década de rejuvenescimento e difusão. Muitos fatores fazem crescer o interesse por esse estudo entre as massas da classe trabalhadora e do povo pobre: a intensificação das lutas entre a burguesia e o proletariado, na ressaca da crise mundial de 2008; os reveses experimentados pela tática reformista e pela política democrático-burguesa; a incapacidade dos ideólogos da burguesia em oferecer às massas uma perspectiva de futuro que não seja a distopia e o desespero etc. Se é verdade que, nos anos 90, o movimento revolucionário do proletariado sofreu o maior refluxo de toda sua história (mais profundo que o refluxo de 1871, após o massacre da Comuna de Paris); é verdade também que o interesse crescente pelo marxismo é a tendência do futuro, que será tão mais revigorada quanto mais intensa se torne a luta de classes em cada país e os choques entres as potências imperialistas ao redor do mundo. A cada dia, cresce em meio à classe trabalhadora o número de pessoas dispostas a dedicar o melhor de sua existência à causa da revolução socialista.

Mas, além dessa sólida base material histórica – que, como a pradaria seca, permite que a centelha da curiosidade proletária se dissemine num incêndio de propaganda[1] e instrução revolucionária -, devemos levar em conta um outro fator: a própria facilidade sem precedente no acesso à teoria revolucionária. Nunca antes a classe trabalhadora brasileira teve à sua disposição para o estudo minucioso uma quantidade tão vasta de escritos de Marx, Engels e Lênin, esses faróis da teoria revolucionária. Não apenas porque muitos textos originais desses autores (rascunhos, esboços, materiais inconclusos etc.) tenham demorado décadas para vir à público, mas também porque, no nosso país, muitos desses materiais, mesmo disponíveis há décadas no estrangeiro, simplesmente jamais haviam sido publicados!

Contudo, vivemos nesses tempos nos quais “cada progresso é, simultaneamente, um retrocesso relativo”[2]. Vejamos a profundidade das transformações ocorridas na propaganda da teoria revolucionária e suas implicações.

Quando o Partido Comunista Brasileiro foi fundado, em 1922, nenhuma obra de Karl Marx e Friedrich Engels, muito menos de Lênin, havia sido traduzida e publicada em território nacional[3]. Apenas uma pequena parcela de socialistas, aqueles que dispunham de recursos para importar livros do estrangeiro (traduções portuguesas de algumas poucas obras, ou edições em outras línguas), tinha acesso direto às bases teóricas do socialismo científico. Os demais haviam encontrado seu caminho para o marxismo indiretamente, através da agitação e da propaganda promovida por esses camaradas poliglotas (que, eles próprios, não dispunham de um tão vasto contato com os textos teóricos), sob inspiração das notícias advindas da revolução proletária russa e, no geral, oriundos de uma formação teórica com traços de republicanismo revolucionário francês, positivismo e anarquismo. Seria tarefa da própria militância comunista reverter tal situação, mas ainda levaria décadas para que ao menos as principais obras teóricas de Marx e Engels estivessem disponíveis no país. O caso de O capital é emblemático. Publicado pela Editora Unitas em 1932, tendo por base uma versão resumida de Carlo Cafiero, o livro demoraria ainda mais três décadas para, em 1968, obter sua publicação integral pela Editora Civilização Brasileira, com tradução de Reginaldo Sant’Anna. Evidentemente, a dura perseguição ao movimento comunista ao longo dessas décadas explica não só o atraso no trabalho de tradução como também a dificuldade no acesso à literatura já traduzida.

Essa situação começou a mudar significativamente a partir dos anos 80, por uma série de motivos:

1) Com a conquista pela massa proletária, na luta, da liberdade de organização e de expressão (uma conquista depois consagrada constitucionalmente, lançando as bases formais da nossa III República burguesa, atualmente em crise terminal), afloraram também dezenas de iniciativas editoriais “de esquerda”. Essas iniciativas, mesmo atravessando as turbulências do mercado editorial ao longo das décadas seguintes, acabaram por produzir todo o atual quadro de editoras que publicam material marxista no Brasil – entre as quais a Boitempo é, sem dúvida, a mais proeminente e que mais contribuiu, recentemente, para a publicação da obras marxistas há muito inéditas no país.

2) Também em função da redemocratização burguesa, parte da intelligentsia radical oriunda das classes médias passou a encontrar cada vez mais espaço para sua existência profissional nas universidades e, com menor “liberdade de propaganda”, nas escolas em geral. Mas essa possibilidade aberta à intelectualidade pequeno-burguesa pela redemocratização dos anos 80 tornou-se, nos anos 90, sob a pressão da contrarrevolução na URSS, uma preferência. Como a contrarrevolução ideológica dessa época operasse uma profunda ruptura orgânica entre o movimento proletário e a intelectualidade radical, esta (desacreditada perante as massas pelos mais diversos erros de seu próprio movimento revolucionário) refugiou-se em carreiras docentes e encastelou-se em “linhas de pesquisa” cada vez menos ligadas às problemáticas prático-teóricas do movimento socialista e da luta pela hegemonia do proletariado revolucionário em meio ao movimento social em geral. Resguardada nesse “estuário” intelectual, era incapaz de conectar-se diretamente à luta proletária; era incapaz de produzir uma literatura partidária revolucionária e, sobre ela, uma organização da atividade revolucionária e quadros revolucionários. Mas logrou, contudo, ao menos fazer proliferar a literatura acadêmica radical, bem como quadros acadêmicos radicais.

3) Sozinhos, contudo, esses primeiros fenômenos operavam em âmbitos muito restritos: o âmbito da intelectualidade universitária, ou o âmbito não tão mais amplo do público comprador de livros teóricos. Mas, em meio a todas essas transformações para a propaganda teórica, adveio a revolução na tecnologia da comunicação, permitindo uma ampliação expressiva do âmbito desta atividade. Não, evidentemente, sem alguma relutância por parte das editoras e dos intelectuais profissionais, cujos direitos autorais foram repetidamente atropelados pela ampla difusão gratuita possibilitada na internet… Mas, seja como for, o trabalho voluntário de milhares de pessoas em todo o mundo vem transformando, há décadas, a rede mundial de computadores em um repositório imediatamente acessível de volumes e mais volumes de literatura marxista, em inúmeras línguas. Neste caso, não poderia passar desapercebido o trabalho de camaradas como Fernando Araújo, gestor do acervo do Arquivo Marxista na Internet em português[4].

Temos, portanto, esse quadro contraditório: antes dos anos 80, havia um acesso restrito à literatura teórica revolucionária, mas este acesso era muito mais conectado à própria prática revolucionária. Após os anos 80, a difusão da teoria revolucionária ultrapassa em muito as demais formas da atividade revolucionária e, por isso mesmo, muitas vezes não se complementa com qualquer prática revolucionária que não a própria prática propagandística, ou o próprio estudo.

O lado bom de todas essas transformações é que aumentam as possibilidades da difusão teórica do marxismo. Todos os dias, espontaneamente, novas pessoas são levadas em direção à literatura marxista simplesmente porque suas pesquisas nos motores de busca as direciona para tal ou qual página (o que também vale, contudo, para a literatura burguesa em geral). Cada dia mais fica para trás a época da formação de quadros baseada quase exclusivamente em sinopses, resumos e manuais. Cada vez mais militantes revolucionários podem instruir-se diretamente a partir do estudo dos escritos clássicos, fundacionais, do socialismo científico. Cada vez mais quadros podem, a partir deste estudo, resolver por si próprios os problemas teóricos e práticos de nossa época, debatendo suas questões teóricas amplamente, às vezes inclusive com pessoas de outros países, através das redes sociais, e muito mais.

Contudo, o lado ruim diz respeito justamente à ausência de conexão direta entre a instrução teórica revolucionária e a prática coletiva do trabalho revolucionário. Nesse contexto de desconexão, a tendência é que a formação teórica seja concebida como um fim em si mesmo, ou guiada não pelas necessidades teóricas que emergem dos problemas práticos da militância, mas da pura curiosidade e afinidade temática individual. É simplesmente sintomático desta desconexão, portanto, que os intelectuais radicais vejam sua principal tarefa não como sendo o trabalho de agitação e propaganda entre as massas (única atividade capaz de operar a indispensável fusão entre a teoria revolucionária nascida na intelectualidade e o movimento de massas do proletariado), mas sim como sendo a “purificação do marxismo”, o eterno “retorno a Marx” para “descobrir o que deu errado” nas experiências socialistas do século XX (partindo da premissa questionável de que os desvios e erros do movimento comunista no último século têm suas causas principais em debilidades de apreensão teórica, e não nas próprias contradições das relações sociais historicamente determinadas).

Nesse contexto, o “marxismo” mais difundido assume a forma, no mais das vezes, de mera “marxologia”[5] diletante, na qual a “prática” figura como mera categoria conceitual. Para os adeptos mais fervorosos dessa tendência, apenas a literalidade “marxiana” é digna de atenção, e tudo o que veio depois de Marx é um desvio e uma corrupção terrível (Engels inclusive – “afinal, o próprio Marx dizia que não era marxista”, argumentam alguns, distorcendo grosseiramente o contexto de uma frase de efeito polêmica contra o “esquerdismo” de Guesde e Lafargue)… ou, então, essa “nova leitura” ressurge diretamente sob a velha forma da novidade revisionista, que se autodeclara marxismo apenas para se combinar a diversas formas de prática política reformista ou abstencionista, antimarxistas, “porque, afinal o mundo mudou” – e os sábios desse tipo se especializaram em “descobrir” que, se estivesse vivo, Marx, Engels e Lênin seriam hoje reformistas ou abstencionistas, como eles, e não defensores da luta política do proletariado revolucionário por sua ditadura de classe[6]! Some-se a isso uma certa soberba acadêmica, que condena em absoluto os manuais e resumos teóricos, como se nosso movimento dependesse simplesmente de (ou pudesse contar somente com) pessoas que leram, por si próprias, as Obras Completas de Marx… e pronto. Teremos o quadro completo da intelectualidade marxista profissional que predominou durante todo o período entre os anos 90 e hoje, e que, agora (conforme o pensamento revolucionário se dissemina e forma quadros intelectuais militantes, oriundos das massas trabalhadores – em especial em meio à juventude proletária), vê-se cada vez mais escanteada, desorientada e afoita.

Seria uma tolice, no entanto, concluir que basta “manter o lado bom e suprimir o lado ruim”. Mais que isso: é preciso, demarcando como ponto de apoio firme as novas forças teóricas e práticas do proletariado revolucionário (“o lado bom”), atravessar o “lado ruim”, incorporando inclusive alguns de seus momentos e, no caminho, também elevando essas novas forças a um patamar superior. Em outras palavras: a questão não é contrapor a esse retorno a Marx diletante a mera necessidade de aplicar Marx ao presente: trata-se de voltar a fazer, hoje, como Marx – como Lênin fez, também, a seu tempo.

Dito isso, é preciso ter em vista a profunda responsabilidade dos revolucionários e das revolucionárias de nossa época sobre o futuro da humanidade. Que a fidelidade à teoria de Marx, Engels e Lênin não pode ser, com efeito, confundida com a mera repetição dogmática, isso parece ser um consenso entre os intelectuais. Contudo, enquanto muito se critica o culto à personalidade das lideranças dos Estados operários do século XX (Stálin, Mao etc.), não raro esse mesmo culto à personalidade reaparecer sob a forma hipócrita da “humildade” perante os gigantes Marx, Engels e Lênin. Se é verdade que hoje podemos ver mais longe com mais facilidade graças ao trabalho pregressos desses colossos da teoria e da atividade revolucionária (porque “subimos em seus ombros”, como diz o antigo mote científico); também é verdade que, justamente por isso, devemos encarar a tarefa de estar à sua altura e, como eles, ir além daqueles que vieram antes de nós.

Não poucas vezes ouvi, contra mim e contra outros camaradas, à guisa de crítica a uma suposta “arrogância”: “ele acha que é Lênin”? Sem dúvida, à sua época, lutando contra muitos “marxistas” renomados e mais velhos, Lênin ouviu a mesma censura quanto a “achar que é Marx”… E sem dúvida Marx, a seu tempo, também ouviu sua boa dose de bobagem. Apenas décadas depois, após a própria demonstração histórica confirmar a veracidade dos postulados polêmicos desses camaradas, seus nomes foram recobertos por esse manto de inquestionabilidade. Mas, em vida, estiveram muitas vezes em minoria, condenados por sua radicalidade excessiva, sua suposta estreiteza, sua contundência, sua recusa a diluir-se em meio aos erros alheios etc.

A pergunta que defronta a intelectualidade revolucionária não é, então, se cada um de nós dispõe, individualmente, de tal ou qual capacidade pessoal que nos permita o brilhantismo do estilo ou do raciocínio lógico-abstrato de Marx, por exemplo. A questão é que é nosso dever fazer no mínimo o mesmo tanto, mas de fato mais do que pôde fazer Marx, a seu tempo, pela revolução proletária, precisamente porque podemos partir do estudo de sua obra teórica e prática. Ou, então, se nenhum de nós crer que possamos nos pôr à altura dessas pessoas (gente de carne e osso, histórica e concretamente determinada e limitada, como todo ser humano, e não semideuses), restaria apenas saber com base em que tipo de mediocridade devemos nivelar por baixo nossas atividades e tarefas históricas…

Portanto, sejamos todos Lênin. Não basta que tenhamos centenas ou milhares de camaradas que conheçam o marxismo: precisamos pensar e atuar como Marx, o que só é possível precisamente pela combinação do afinco no estudo teórico, da prática coletiva centralizada e da constante polêmica democrática. Só essa combinação pode, pela crítica e autocrítica, forjar, a partir de diversas pessoas com níveis desiguais de compreensão teórica e prática, um conhecimento e uma atividade coletivos, uma organização dos quadros avançados da classe proletária.

Assim, no intuito de contribuir para essa reflexão sobre o que constitui o “pensar e agir ao modo de Marx”, oferecemos às e aos camaradas o artigo abaixo, escrito pela companheira de Lênin, Nadejda Krúpskaia, traduzido e revisado à guisa de introdução leninista ao estudo de Marx. Boa leitura!

* * *

Como Lênin estudava Marx, por Nadejda Krúpskaia

Devido ao atraso da indústria na Rússia, o movimento operário só começou a se desenvolver nos anos [18]90, quando a luta revolucionária da classe trabalhadora já estava se desenvolvendo em vários outros países. Já havia transcorrido a experiência da grande Revolução Francesa, a experiência da revolução de 1848, a experiência da Comuna de Paris em 1871. Os grandes líderes ideológicos do movimento operário – Marx e Engels – foram forjados no fogo da luta revolucionária. Os ensinamentos de Marx mostraram a direção tomada pelo desenvolvimento social, a inevitabilidade da desintegração da sociedade capitalista, a substituição dessa sociedade pela sociedade comunista, os caminhos que serão tomados pelas novas formas sociais, o caminho da luta de classes; eles revelaram o papel do proletariado nessa luta e a inevitabilidade de sua vitória.

Nosso movimento operário se desenvolveu sob a bandeira do marxismo. Não cresceu cegamente, tateando seu caminho, mas seu objetivo e seu caminho eram claros. Lênin desempenhou um tremendo papel na iluminação do caminho da luta do proletariado russo com a luz do marxismo. Cinquenta anos se passaram desde a morte de Marx, mas, para o nosso partido, o marxismo ainda é o guia para a ação. O leninismo é apenas mais um desenvolvimento do marxismo, um aprofundamento do mesmo.

Portanto, é óbvio o motivo pelo qual é tão grande o interesse em esclarecer a questão do estudo de Marx por Lênin.

Lênin tinha um conhecimento maravilhoso de Marx. Em 1893, quando chegou a São Petersburgo, surpreendeu a todos nós, que já éramos marxistas na época, com seu tremendo conhecimento das obras de Marx e Engels.

Nos anos noventa, quando os círculos marxistas começaram a se formar, estudávamos principalmente o primeiro volume de O capital. Era possível obter O capital, embora com grandes dificuldades. Mas as coisas eram extremamente difíceis com relação às outras obras de Marx. A maioria dos membros dos círculos nem sequer havia lido o Manifesto comunista. Eu, por exemplo, o li pela primeira vez apenas em 1898, em alemão, quando estava no exílio.

Marx e Engels eram absolutamente proibidos. Basta mencionar que, em 1897, em seu artigo Para uma caracterização do romantismo econômico[7], escrito para o jornal Nova Palavra, Lênin foi obrigado a evitar o uso das palavras “Marx” e “marxismo”, e a falar de Marx de maneira indireta para não causar problemas ao jornal.

Lênin entendia línguas estrangeiras e dedicou o seu melhor a escavar tudo o que podia de Marx e Engels em alemão e francês. Anna Ilinichina conta como ele leu Miséria da filosofia em francês juntamente com sua [outra] irmã, Olga. A maior parte das coisas ele teve que ler em alemão. Traduziu para russo, para si mesmo, as partes mais importantes das obras de Marx e Engels, as que mais o interessavam.

Em seu primeiro grande trabalho, publicado ilegalmente por ele em 1894, O que são os ‘amigos do povo’ e como lutam contra os social-democratas?[8], há citações do Manifesto comunista, da Contribuição à crítica da economia Política, de Miséria da filosofia, de A ideologia alemã, da carta de Marx a Ruge de 1843 e dos livros de Engels, o Anti-Dühring e A origem da família, da propriedade privada e do Estado.

O que são os ‘amigos do povo’ ampliou enormemente a visão da maioria dos então marxistas, que ainda tinham muito pouco conhecimento das obras de Marx. Tratou de uma série de perguntas de uma maneira totalmente nova e foi tremendamente bem sucedido nessa empreitada.

Na obra seguinte de Lênin, O conteúdo econômico do narodismo e uma crítica dele no livro de Struve[9], já encontramos referências ao 18 Brumário de Luís Bonaparte, à Guerra civil na França, à Crítica do programa de Gotha e ao segundo e terceiro volumes de O capital.

Mais tarde, a vida na emigração possibilitou a Lênin familiarizar-se com todas as obras de Marx e Engels e estudá-las. O breve esboço biográfico de Marx[10], escrito por Lênin em 1914 para a Enciclopédia Granat, ilustra melhor do que qualquer outra coisa o maravilhoso conhecimento das obras de Marx por Lênin. Isso também é evidenciado pelos inúmeros extratos de Marx que Lênin anotava constantemente, durante a leitura de suas obras. O Instituto Lênin tem muitos cadernos contendo excertos de Marx.

Lênin usou esses excertos em seu trabalho, leu-os repetidamente e fez anotações sobre eles. Lênin não só conhecia Marx, mas também refletia profundamente sobre todos os seus ensinamentos. Em seu discurso no Terceiro Congresso da União da Juventude Comunista de toda a Rússia, em 1920, Lênin disse aos jovens que era necessário “se apropriar de toda a soma dos conhecimentos humanos, e apropriar-se disso de tal modo que o comunismo não seja algo aprendido de cor, mas pensado por vocês mesmos, seja uma conclusão necessária do ponto de vista da educação moderna.” “Se um comunista fosse se vangloriar do seu comunismo com base em conclusões já prontas, por ele recebidas, sem ter empreendido um trabalho sério, muito difícil e muito grande, sem compreender completamente os fatos em relação aos quais ele tem a obrigação de adotar uma atitude crítica, esse comunista seria uma triste figura.”[11]

Lênin não estudou apenas as obras de Marx, mas estudou o que foi escrito sobre Marx e o marxismo pelos seus opositores do campo da burguesia e da pequena-burguesia. Em suas polêmicas com eles, Lênin explica as posições fundamentais do marxismo.

Seu primeiro grande trabalho foi O que são os ‘amigos do povo’ e como lutam contra os social-democratas…, onde ele contrastou o ponto de vista dos narodniks [populistas] (Mikhailovski, Krivenko, Iuchakova) com o ponto de vista de Marx.

No artigo O conteúdo econômico dos narodismo e uma crítica dele no livro de Struve, ele ressaltou os modos pelos quais o ponto de vista de Struve era diferente do ponto de vista de Marx.

Após estudar a questão agrária[12], ele escreveu uma brochura, A questão agrária e os críticos de Marx[13], onde os pontos de vista pequeno-burgueses dos social-democratas David e Hertz, e dos críticos russos Chernov e Bulgákov, foram contrastados com o ponto de vista de Marx.

Du choc des Opinions jaillit la vérité (do choque de opiniões emerge a verdade), diz o provérbio francês. Lênin adorava realizá-lo. Ele trouxe constantemente à luz e contrastou, com base nas questões do movimento operário, os pontos de vista de classe.

É muito característico como Lênin estabeleceu vários pontos de vista lado a lado. O Volume XIX de Obras completas[14] lança bastante luz sobre isso – lá, estão reunidos os excertos, anotações, planos de artigos etc. sobre a questão agrária, abrangendo todo o período pré-1917.

Lênin recapitula cuidadosamente as declarações dos “críticos”, seleciona e copia as frases mais claras e mais características e as contrapõem às declarações de Marx. Ao analisar cuidadosamente as declarações dos “críticos”, ele tenta mostrar a essência de classe de suas declarações, apresentando as questões mais importantes e urgentes em relevo proeminente.

Lênin, com muita frequência, agudizou deliberadamente uma questão. Ele considerava que o tom não era importante. É possível se expressar de modo áspero e mordaz. O importante é que você vá direto ao ponto. No prefácio à publicação da correspondência de F. A. Sorge[15], ele repete uma citação de Mehring em sua correspondência com Sorge: “Mehring está certo ao dizer que Marx e Engels se importavam pouco com boas maneiras. Eles não ficavam pensando longamente antes de desferir um golpe, mas eles também não se queixavam por cada golpe que recebiam.” A incisividade da forma e do estilo era natural para Lênin. Ele a aprendeu com Marx. Ele diz: “Marx relata como ele e Engels lutaram constantemente contra a condução ‘miserável’ do jornal Sozial-Demokrat e muitas vezes lutaram agudamente (wobei oft scharf hergeht)”. Lênin não temia a agudeza, mas ele exigia que as objeções fossem direito ao ponto. Lênin tinha uma palavra favorita, que ele usava com frequência: “fraseologia”. Se uma polêmica começasse sem ir direto ao ponto, se as pessoas começassem a agarrar-se a minúcias ou a fazer malabarismos com fatos, ele costumava dizer: “isso é mera fraseologia”. Lênin expressou-se com ainda mais veemência contra polêmicas que não tinham o objetivo de clarificar as questões, mas de tirar a limpo pequenos rancores fracionistas. Este era o método favorito dos mencheviques. Escondendo-se atrás de citações de Marx e Engels, retiradas de seu contexto, das circunstâncias em que foram escritas, eles se punham inteiramente a serviço de objetivos fracionistas. No prefácio da correspondência de F. A. Sorge, Lênin escreveu: “Imaginar que o conselho de Marx e Engels ao movimento operário anglo-americano pode ser simples e diretamente adaptado às condições russas significa utilizar o marxismo não para elucidar seu método, não para estudar as peculiaridades históricas concretas do movimento operário em países definidos, mas a serviço dos ressentimentos mesquinhos da intelligentsia.”

Aqui chegamos diretamente à questão de como Lênin estudava Marx. Isso pode ser visto, em parte, na citação anterior: é necessário elucidar o método de Marx, aprender com Marx como estudar as peculiaridades do movimento operário em países determinados. Foi isso que Lênin fez. Para Lênin, os ensinamentos de Marx eram um guia para a ação. Ele usou uma vez a seguinte expressão: “Quem quer se consultar com Marx?” É uma expressão muito característica. Ele mesmo constantemente “se consultou com Marx”. Nos pontos de viragem mais difíceis da revolução, ele mais uma vez voltou à leitura de Marx. Às vezes, quando se entrava em seu quarto, quando todos estavam ansiosos, Lênin estava lendo Marx e mal podia desviar sua atenção. Não era para acalmar seus nervos, não para se armar com a crença no poder da classe operária, acreditando em sua vitória final. Lênin tinha o bastante dessa fé. Ele se enterrou em Marx para “se consultar” com Marx, para encontrar uma resposta dele às candentes questões do movimento operário. No artigo F. Mehring sobre a Segunda Duma[16], Lênin escreveu: “A argumentação de tais pessoas baseia-se em uma pobre seleção de citações. Eles adotam a posição geral sobre o apoio à grande burguesia contra a pequena burguesia reacionária e, sem críticas, a adaptam aos Cadetes russos e à Revolução Russa. Mehring dá a essas pessoas uma boa lição. Qualquer um que queira se consultar com Marx sobre as tarefas do proletariado e da revolução burguesa deve adotar o raciocínio de Marx que se aplica precisamente à época da revolução burguesa alemã. Não é à toa que nossos mencheviques tão temerosamente evitam esse raciocínio. Neste raciocínio, vemos a expressão mais completa e clara da luta implacável contra a burguesia conciliadora, que foi realizada pelos bolcheviques russos na Revolução Russa”.

O método de Lênin consistia em tomar as obras de Marx tratando de situações similares e analisá-las cuidadosamente, comparando-as com o momento atual, descobrindo semelhanças e diferenças. A adaptação à revolução de 1905–1907 ilustra, melhor que qualquer coisa, como Lênin fazia isso.

Na brochura Que fazer?, em 1902, Lênin escreveu:

A história agora coloca diante de nós uma tarefa imediata que é a mais revolucionária de todas as tarefas imediatas do proletariado de qualquer outro país. A realização desta tarefa, a destruição do bastião mais poderoso não só da reação europeia, mas também (podemos dizer agora) asiática, faria do proletariado russo a vanguarda do proletariado revolucionário internacional.

Sabemos que a luta revolucionária de 1905 elevou o papel internacional da classe operária russa, enquanto a derrubada da monarquia czarista em 1917 fez com que o proletariado russo se tornasse a vanguarda do proletariado revolucionário internacional – mas isso ocorreu apenas 15 anos após Que fazer? ser escrito. Quando, em 1905, após o Domingo Sangrento, em 9 de janeiro, a onda revolucionária da Praça Dvortsoff começou a elevar-se cada vez mais, colocou-se urgentemente a questão de para onde o partido deveria liderar as massas, que política deveria seguir. E, aqui, Lênin consultou Marx. Ele citava com especial atenção as obras de Mar que tratam das revoluções democrático-burguesas francesa e alemã de 1848: As lutas de classes na França de 1848–50 e o terceiro volume de A herança literária de Marx e Engels, publicado por F. Mehring, tratando da revolução alemã.

Em junho-julho de 1905, Lênin escreveu a brochura Duas táticas da social-democracia na revolução democrática[17], onde a tática dos mencheviques (que adotaram a linha de conciliação com a burguesia liberal) foi contrastada com a tática dos bolcheviques (que pediam à classe operária que continuasse com uma determinação e luta irreconciliável contra a monarquia até o ponto de rebelião armada).

Era necessário pôr fim ao czarismo, escreveu Lênin em Duas táticas. “A conferência (dos neo-iskristas) também esqueceu que, enquanto o poder permanecer nas mãos do czar, quaisquer decisões de qualquer representante [parlamentar] segue sendo uma conversa fiada, tão lamentável como as ‘decisões’ do parlamento de Frankfurt, famosas na história da Revolução Alemã de 1848. Por essa razão, Marx, na Nova Gazeta Renana, derramou sarcasmo sem piedade sobre os liberais ‘libertadores’ de Frankfurt, porque pronunciavam excelentes discursos, adotaram todos os tipos de ‘decisões’ democráticas, ‘estabeleceram’ todos os tipos de liberdade, mas, na realidade, deixaram o poder nas mãos da monarquia e não organizaram a luta armada contra as tropas da monarquia. E enquanto os libertadores de Frankfurt tagarelavam, a monarquia aguardou seu tempo, concentrou suas forças militares e a contrarrevolução, confiando na força real, derrubou os democratas com todas as suas lindas decisões.”

Lênin levanta a questão de saber se a burguesia poderia destruir a revolução russa por meio de um acordo com o czarismo – “ou”, como Marx disse ao seu tempo, “acertando as contas com o czarismo de maneira ‘plebéia’”. “Quando a revolução vencer decisivamente, deveremos nos acertar com o czarismo de maneira jacobina ou, se você preferir, de maneira plebeia.” “Todo o terrorismo francês, escreveu Marx na famosa Nova Gazeta Renana, em 1848, não era senão a maneira plebeia de acertar as contas com os inimigos da burguesia, com o absolutismo, o feudalismo, a nobreza. (Vide A herança literária de Marx e Engels, publicado por Mehring). As pessoas que assustaram os operários social-democratas russos com o espantalho do “jacobinismo” na época da revolução democrática já pensaram no significado dessas palavras de Marx?”

Os mencheviques disseram que sua tática era “permanecer o partido da extrema oposição revolucionária”. E que isso não excluía as tomadas parciais do poder de tempos em tempos e a formação de comunas revolucionárias em uma cidade ou outra. O que significa “comunas revolucionárias”, pergunta Lênin, e responde:

A confusão do pensamento revolucionário os leva (os neo-iskristas), como muitas vezes acontece, à fraseologia revolucionária. O uso das palavras ‘comuna revolucionária’ na resolução de representantes da social-democracia é fraseologia revolucionária e nada mais. Marx mais de uma vez condenou tal fraseologia, quando as tarefas do futuro estão escondidas por trás de termos tranquilizadores do passado morto. O fascínio pelos termos que desempenharam um papel na história é convertido, em tais casos, em um ouropel vazio e prejudicial, em fraseologia. Devemos oferecer aos operários e a todo o povo uma ideia clara e inconfundível de por que queremos estabelecer um governo revolucionário provisório, que mudanças exatamente devemos levar a cabo se influenciarmos decisivamente o poder, mesmo amanhã, se a revolta nacional que começou for vitoriosa. Estas são as questões com que se defrontam os líderes políticos.

Esses vulgarizadores do marxismo nunca pensaram nas palavras de Marx sobre a necessidade de substituir a arma da crítica pela crítica das armas. Usando o nome de Marx em todos os lugares, eles, na realidade, criam uma resolução tática totalmente no espírito dos tagarelas burgueses de Frankfurt, criticando livremente o absolutismo, aprofundando a consciência democrática, mas sem entender que o tempo da revolução é um tempo de ação, acima e abaixo.

“As revoluções são as locomotivas da história”, diz Marx. Por essa referência a Marx, Lênin avalia o papel da revolução que estava sendo deflagrada.

Em sua análise mais aprofundada dos escritos de Karl Marx na Nova Gazeta Renana, Lênin deixa claro o que significa a ditadura revolucionária do proletariado e do campesinato. Mas, ao esboçar a analogia, Lênin também se refere à questão de como a nossa revolução democrático-burguesa difere da revolução democrático-burguesa alemã de 1848. Ele diz:

Assim, foi apenas em abril de 1849, depois que o jornal revolucionário Nova Gazeta Renana (que havia sido publicado desde 1 de junho de 1848) existia há quase um ano, que Marx e Engels se expressaram a favor de uma organização operária independente. Até então, eles simplesmente conduziam o ‘órgão da democracia’, que não estava conectado por nenhum vínculo organizacional com um partido proletário independente. Esse fato –  monstruoso e improvável do nosso ponto de vista contemporâneo –  mostra-nos claramente que havia uma enorme diferença entre o então Partido Operário Social-Democrata Alemão e o atual russo. Este fato mostra-nos quão mais fracas (devido ao atraso da Alemanha em 1848, economicamente e politicamente – ausência de unidade do Estado) foram as características proletárias do movimento na revolução democrática alemã, o quão mais fraca foi a sua camada proletária.

Particularmente interessantes são os artigos de Vladímir Ilitch que se referem a 1907 e são dedicados à correspondência e à atividade de Marx.

Eles são o Prefácio da tradução das cartas de Marx a K. L. Kugelmann[18], Mehring sobre a Segunda Duma e o Prefácio às cartas para F. A. Sorge. Esses artigos lançam uma luz particularmente vívida sobre o método pelo qual Lênin estudou Marx. O último artigo é de interesse excepcional. Foi escrito no período em que Lênin retomou mais uma vez o estudo da filosofia, em conexão com suas controvérsias com Bogdánov[19], quando as questões do materialismo dialético exigiam especial atenção.

Enquanto estudava as colocações de Marx que se referiam a questões análogas àquelas que surgiram entre nós em conexão com o refluxo da revolução e, simultaneamente, as questões do materialismo dialético e histórico, Lênin também aprendeu com Marx como aplicar ao estudo do desenvolvimento histórico o método do materialismo dialético.

No Prefácio às cartas para F. A. Sorge, escreveu:

Uma comparação entre o que Marx e Engels têm a dizer sobre as questões dos movimentos operários anglo-americano e alemão é muito instrutiva. Se alguém leva em consideração que a Alemanha, por um lado, e a Grã-Bretanha e a América, por outro, representam diferentes estágios do desenvolvimento capitalista, diferentes formas de governo da burguesia, como classe, em toda a vida política desses países, a referida comparação assume um significado especial. Do ponto de vista científico, temos aqui uma amostra da dialética materialista, sua capacidade de estabelecer e enfatizar diferentes pontos, diferentes aspectos da questão em sua aplicação às peculiaridades concretas das várias condições políticas e econômicas. Do ponto de vista da política prática e das táticas do partido operário, temos aqui uma amostra da maneira como os criadores do Manifesto comunista definiram a tarefa do proletariado em luta aplicada às diversas fases do movimento operário nacional dos vários países.

A revolução de 1905 trouxe à tona toda uma série de novas questões essenciais, durante a solução das quais Lênin se aprofundou ainda mais nas obras de Karl Marx. O método leninista (marxista de ponta a ponta) de estudar Marx foi forjado nas chamas da revolução.

Este método de estudo de Marx armou Lênin para lutar contra as distorções do marxismo e a castração da sua essência revolucionária. Sabemos que papel importante o livro O Estado e a revolução de Lênin tem desempenhado na organização da Revolução de Outubro e do poder soviético. Este livro é inteiramente baseado em um estudo profundo dos ensinamentos revolucionários de Marx sobre o Estado. Lênin escreve:

Dá-se com a doutrina de Marx, neste momento, aquilo que, muitas vezes, através da história, tem acontecido com as doutrinas dos pensadores revolucionários e dos dirigentes do movimento emancipatório das classes oprimidas. Os grandes revolucionários foram sempre perseguidos durante a vida; a sua doutrina foi sempre alvo do ódio mais feroz, das mais furiosas campanhas de mentiras e difamação por parte das classes dominantes. Mas, depois da sua morte, tenta-se convertê-los em ídolos inofensivos, canonizá-los por assim dizer, cercar o seu nome de uma auréola de glória, para ‘consolo’ das classes oprimidas e para o seu engano, enquanto se castra a substância do seu ensinamento revolucionário, embotando-lhe o gume, aviltando-o. A burguesia e os oportunistas do movimento operário se unem presentemente para infligir ao marxismo um tal ‘tratamento’. Esquece-se, esbate-se, desvirtua-se o lado revolucionário, a essência revolucionária da doutrina, a sua alma revolucionária. Exalta-se e coloca-se em primeiro plano o que é ou parece aceitável para a burguesia. Todos os social-patriotas (não riam!) são, agora, marxistas. Os sábios burgueses, que ainda ontem, na Alemanha, se especializavam em refutar o marxismo, falam cada vez mais num Marx ‘nacional-alemão’ que, a dar-lhes ouvidos, teria educado os sindicatos operários, tão magnificamente organizados, para uma guerra de rapina. Em tais circunstâncias, e uma vez que se logrou difundir tão amplamente o marxismo deformado, a nossa missão é, antes de mais nada, restabelecer a verdadeira doutrina de Marx sobre o Estado. (Primeira página de O Estado e a revolução).

Em Sobre os fundamentos do leninismo, o camarada Stálin escreveu:

Somente no estágio seguinte, o estágio da ação direta, da revolução proletária, quando a derrubada da burguesia se tornara uma questão prática imediata, o problema de encontrar reservas para o exército proletário (estratégia) se torna real, e só então todas as formas de luta e de organização, seja no campo parlamentar ou extraparlamentar (táticas) exigem claramente uma solução. Até essa fase ter começado, a estratégia proletária não poderia ser sistematizada e as táticas proletárias elaboradas. As ideias geniais de Marx e Engels sobre tática e estratégia, que os oportunistas da II Internacional haviam sepultado, foram trazidas à luz do dia por Lênin, precisamente nesse período.

Mas Lênin não se limitou a restabelecer proposições táticas individuais de Marx e Engels. Ele as desenvolveu e complementou com novas ideias e proposições, criando de tudo isso um sistema de regras e princípios condutores para a vanguarda da luta de classes do proletariado. Tais brochuras de Lênin como Que fazer?, Duas táticas, Imperialismo, O Estado e a revolução, A revolução proletária e o renegado Kautsky e Esquerdismo serão, sem dúvida, contribuições das mais valiosas para o tesouro comum do marxismo, para o seu arsenal revolucionário. “A estratégia e tática do leninismo é uma ciência sobre a liderança da luta revolucionária do proletariado” (J. Stálin, Questões do leninismo). Marx e Engels disseram que seu ensinamento “não são um dogma, mas um guia para a ação”. Essas palavras deles foram continuamente repetidas por Lênin. O método pelo qual ele estudou as obras de Marx e Engels e a prática revolucionária, bem como todas as circunstâncias da época das revoluções proletárias, ajudaram Lênin a converter com justeza o aspecto revolucionário de Marx em um verdadeiro guia de ação.

Vou me debruçar sobre uma questão de importância decisiva. Há pouco tempo comemoramos o décimo quinto aniversário do Poder Soviético. E, neste contexto, recordamos como a tomada do poder foi organizada em outubro [de 1917]. Não era um ato espontâneo: foi profundamente pensado por Lênin, que foi guiado pelas instruções diretas de Marx sobre a organização de uma insurreição.

A Revolução de Outubro, colocando a ditadura nas mãos do proletariado, mudou radicalmente todas as condições da luta, mas apenas porque Lênin não se orientou pela letra dos ensinamentos de Marx e Engels, mas por sua essência revolucionária, porque sabia como aplicar o marxismo também à construção do socialismo na época da ditadura proletária.

Só me debruçarei sobre alguns pontos. Um trabalho de pesquisa completo é necessário aqui: selecionar tudo o que foi extraído de Marx e Engels por Lênin, indicando em que períodos e em conexão com quais tarefas do movimento revolucionário. Eu nem mencionei questões tão importantes como a questão nacional, o imperialismo etc. A publicação dos trabalhos completos de Lênin torna este trabalho mais fácil. A maneira de Lênin de estudar Marx em todas as fases da luta revolucionária, do começo ao fim, nos ajudará a entender melhor e a aprofundarmo-nos não só em Marx, mas no próprio Lênin, em seu método de estudar Marx e no seu método de converter os ensinamentos de Marx em um guia de ação.

Há mais um aspecto do estudo de Marx por Lênin que deve ser mencionado devido ao seu grande significado. Lênin não só estudou o que Marx e Engels escreveram, bem como o que os “críticos” de Marx escreveram sobre ele; ele também estudou o caminho que levou Marx às suas várias visões e as obras e livros que estimularam os pensamentos de Marx e os conduziram em uma direção definida. Ele estudou, por assim dizer, as fontes da filosofia marxista, buscando o quê e quanto Marx tirou desse ou daquele escritor. Ele estava especialmente preocupado em empreender um estudo profundo do método do materialismo dialético. Em 1922, no artigo Sobre o significado do materialismo militante[20], Lênin disse que cabia aos contribuintes da revista Sob a bandeira do marxismo organizar o trabalho para um estudo sistemático da dialética de Hegel do ponto de vista materialista. Ele acreditava que, sem uma base filosófica séria, é impossível aguentar a luta contra a pressão das ideias burguesas e a restauração da filosofia burguesa. Foi com base em sua própria experiência que Lênin escreveu sobre a maneira de estudar a dialética de Hegel do ponto de vista materialista. Damos aqui o parágrafo correspondente do artigo de Lênin Sobre o significado do materialismo militante.

Mas, para evitar reagir a um fenômeno desse tipo de forma pouco inteligente, devemos entender que nenhuma ciência natural, nenhum materialismo, pode aguentar a luta contra as investidas das ideias burguesas e a restauração da filosofia burguesa sem uma sólida base filosófica. Para amparar essa luta e ajudar a levar a cabo sua conclusão bem-sucedida, o cientista natural deve ser um materialista moderno – um adepto consciente desse materialismo que Marx representa, isto é, ele deve ser um materialista dialético. Para conseguir isso, os membros de Sob a bandeira do marxismo devem organizar um estudo sistemático da dialética hegeliana do ponto de vista materialista, ou seja, a dialética que Marx aplicou concretamente em seu O capital e utilizada em suas obras históricas e políticas. […]

Baseando-nos sobre a maneira como Marx aplicou a concepção materialista da dialética hegeliana, podemos e devemos elaborar essa dialética em todos seus aspectos. A revista deve publicar trechos das principais obras de Hegel; deve interpretá-los de forma materialista e dar exemplos de como Marx aplicou a dialética, bem como exemplos de dialética no campo das relações econômicas e políticas. A história moderna, particularmente a guerra e a revolução imperialistas modernas, fornecem inúmeros exemplos desse tipo. Os editores e funcionários de Sob a bandeira do marxismo devem, penso eu, representar uma espécie de ‘Associação de Amigos Materialistas da Filosofia Hegeliana’. Os cientistas naturais modernos encontrarão (se buscarem e se pudermos aprender a ajudá-los) na interpretação materialista da dialética hegeliana uma série de respostas para as questões filosóficas que são colocadas pela revolução no domínio das ciências naturais, que fazem com que os admiradores intelectuais das modas burguesas ‘deslizem’ para o campo reacionário.

Os volumes IX e XII das obras escolhidas de Lênin já foram publicados na União Soviética. Eles divulgaram todo o processo do pensamento de Lênin quando trabalhava nas principais obras de Hegel; eles mostram como ele aplicou o método do materialismo dialético ao estudo de Hegel, o quão bem ele conectou este estudo com um profundo estudo sobre os escritos de Marx, com a capacidade de converter o marxismo em um guia de ação nas mais variadas circunstâncias.[21]

Mas Hegel não era o único objeto do estudo de Lênin. Ele leu a carta de Marx a Engels de novembro de 1859, na qual ele critica severamente o livro de Lassalle, A filosofia de Heráclito, o Obscuro, de Éfeso (dois volumes) e chama esse trabalho de “amador”. Lênin oferece, para começar, uma breve formulação da crítica de Marx: “Lassalle simplesmente repete Hegel, ele o descreve, rumina milhões de vezes certas palavras de Heráclito”. Mas, no entanto, Lênin mergulha no estudo deste trabalho de Lassalle, faz constatações e anota excertos dele, escreve notas e resume: “A crítica de Marx é, na sua totalidade, correta. Não vale a pena ler o livro de Lassalle.” Mas o trabalho sobre este livro deu ao próprio Lênin uma compreensão mais profunda de Marx: ele entendeu por que esse livro de Lassalle desagradava Marx e em que medida.

Para concluir, mencionarei mais uma forma do trabalho de Lênin sobre Marx –  a popularização dos ensinamentos de Marx. Se o popularizador levar seu trabalho a sério, se seu objetivo é dar uma forma muito simples e inteligível, uma explicação da própria essência desta ou daquela teoria, esse trabalho o ajudará muito.

Lênin tratou muito bem esse trabalho. “Não há nada que eu gostaria tanto quanto poder escrever para os trabalhadores”, ele escreveu do exílio para Plekhánov e Axelrod.

Ele queria explicar e aproximar as massas dos ensinamentos de Marx. Na década de noventa, quando trabalhou nos círculos operários, ele tentou explicar, antes de tudo, o primeiro volume de O capital, e ilustrou as proposições apresentadas com exemplos da vida de seus ouvintes. Em 1911, na escola do partido em Longjumeau (perto de Paris), onde Lênin estava trabalhando arduamente para a preparação de quadros dirigentes para o movimento revolucionário em desenvolvimento, ele lecionou aos trabalhadores sobre economia política e tentou simplificar, o tanto quanto possível, os fundamentos dos ensinamentos de Marx. Em seus artigos para o Pravda, Ilitch tentou popularizar vários pontos dos ensinamentos de Marx. Uma amostra da popularização leninista é a sua caracterização, durante as disputas sindicais de 1921[22], da maneira de estudar um assunto com a aplicação do método dialético. Lênin disse:

Para conhecer bem um assunto, é preciso se apossar dele e estudar todos os lados, todas as conexões e seu lugar apropriado na situação dada. Podemos nunca atingir plenamente isso, mas a exigência de múltiplas faces nos permitirá afastar os erros e a inércia. Isso vem em primeiro lugar. Em segundo lugar, a lógica dialética exige que o objeto seja levado em seu desenvolvimento, em seu ‘automovimento’ (como Hegel diz) e suas transformações. Em terceiro lugar, na ‘determinação’ completa do objeto, toda a prática humana deve figurar como critério da verdade, bem como um indicador prático da conexão do objeto com aquilo que é necessário para as pessoas. Em quarto lugar, a lógica dialética nos ensina que ‘não existe uma verdade abstrata, que a verdade é sempre concreta’, como costumava dizer o finado Plekhánov, que era um seguidor de Hegel.

Estas poucas linhas são a quintessência daquilo que Lênin atingiu como resultado de longos anos de trabalho sobre questões filosóficas, nas quais ele sempre usou o método do materialismo dialético, “consultando” Marx o tempo todo. Em uma forma sintética, essas linhas indicam tudo o que é essencial, que deve ser o guia de ação durante o estudo dos fenômenos.

O modo como Lênin trabalhou em cima de Marx é uma lição de como estudar o próprio Lênin. Suas lições estão inseparavelmente ligadas às lições de Marx, são o marxismo em ação, o marxismo da época do imperialismo e das revoluções proletárias.

Notas:

1 Para o conceito leninista de propaganda, vide meu artigo: O que é agitação e o que é propaganda: algumas questões na era das mídias digitais. Disponível em: https://18.118.106.12/2019/01/21/o-que-e-agitacao-e-o-que-e-propaganda-algumas-questoes-na-era-das-midias-digitais/

2 “A monogamia foi um grande progresso histórico, mas, ao mesmo tempo, iniciou, juntamente com a escravidão e as riquezas privadas, aquele período, que dura até nossos dias, no qual cada progresso é simultaneamente um retrocesso relativo, e o bem-estar e o desenvolvimento de uns se verificam às custas da dor e da repressão de outros. É a forma celular da sociedade civilizada, na qual já podemos estudar a natureza das contradições e dos antagonismos que atingem seu pleno desenvolvimento nessa sociedade.” Fridrich Engels, em A origem da família, da propriedade privada e do Estado, ao final do capítulo II (“A família”).

3 “Uma das primeiras traduções [do Manifesto comunista] foi a de Octavio Brandão a partir da versão francesa de Laura Lafargue, inicialmente publicada em partes entre julho e dezembro de 1923 no jornal carioca Voz Cosmopolita, publicado por um grupo de empregados em hotéis, restaurantes, cafés, bares e anexos, cuja associação, o Centro Cosmopolita, era então próxima do Partido Comunista. […]

Essa mesma tradução seria publicada sob a forma de livro em 1924 em Porto Alegre, custeado pela organização local do Partido Comunista, de cuja tiragem de 3 mil exemplares centenas teriam sido queimados por ordem da direção dos Correios de Porto Alegre, onde se encontravam para serem remetidos para outros pontos do país, conforme denunciava a carta do Secretariado Internacional do PC endereçada à Correspondance Internationale. […]

Em 1945, sinal inequívoco do clima do imediato pós­- guerra com a legalidade do PCB no auge do seu prestígio, são lançadas nada menos que quatro edições do Manifesto, todas por editoras do Rio de Janeiro.” BATALHA, Claudio H. M. O Manifesto comunista e sua recepção no Brasil. Disponível em: https://www.ifch.unicamp.br/criticamarxista/arquivos_biblioteca/dossie9Dossie6.pdf

4 www.marxists.org

5 Complementar à marxologia, ou “marxianismo” é a existência de uma infinidade de “frações teóricas”, uma vasta proliferação de tendências teoricamente contrapostas que, contudo, coexistem e confraternizam nos simpósios universitários, onde a verdade é “democraticamente” fantasiada de opinião, e aqueles dispostos a um ponto de vista crítico totalizante são tratados como “dogmáticos”. Complementar porque esse “marxianismo” não pode existir senão como marxismo de um novo intérprete ou outro de Marx. Com efeito, é característico das tendências marxistas universitárias se apresentarem como uma “constelação” de “marxismos”, todos igualmente possíveis e mais ou menos válidos porque, afinal, quem poderia falar em nome do defunto Marx e assegurar que sua interpretação é a mais verdadeira, mais fiel ao método etc.? Na realidade, contudo, por trás desse discurso, na medida em que colidem em proposições mutuamente excludentes, essas tendências todas se consideram verdadeiras e polemizam umas com as outras, agarrando-se a seus intérpretes universitários de terceira mão favoritos. Nisso, entre outras coisas, o leninismo se diferencia em sua franqueza: não esconde conceber-se como a única interpretação consequente e, portanto, verdadeira da obra de Marx e Engels (e, precisamente por isso, se autodenomine marxismo-leninismo, dizendo sem hesitar: Lênin, porque indica o modo de desenvolver com rigor e fidelidade aquilo que Marx começou etc).

6 As leituras predominantes de Pachukanis no Brasil, por exemplo, são uma bela demonstração de como essas “novas leituras”, muitas vezes sob uma mesma base interpretativa, divergem e hesitam praticamente entre o reformismo e o abstencionismo enquanto táticas. O verdadeiro marxismo, como diziam Marx e Engels no Manifesto e como esmiuça Lênin em seu A guerra de guerrilhas (abaixo), concebe as formas de luta, as questões táticas, de modo bastante distinto:

“Comecemos pelo começo. Quais são as exigências fundamentais que qualquer marxista deve apresentar ao exame da questão das formas de luta? Em primeiro lugar, o marxismo distingue-se de todas as formas primitivas de socialismo pelo fato de ele não amarrar o movimento a qualquer forma determinada e única de luta. Ele reconhece as mais diferentes formas de luta, e além disso não as ‘inventa’, mas apenas generaliza, organiza, dá consciência àquelas formas de luta das classes revolucionárias que surgem por si no curso do movimento. Absolutamente hostil a todas as fórmulas abstratas, a todas as receitas doutrinárias, o marxismo exige uma atitude atenta em relação à luta de massas em curso, a qual, com o desenvolvimento do movimento, com o crescimento da consciência das massas, com a agudização das crises econômicas e políticas, gera métodos sempre novos e cada vez mais diversos de defesa e de ataque. Por isso o marxismo não renuncia absolutamente a nenhuma formas de luta. O marxismo não se limita em nenhum caso às formas de luta possíveis e existentes apenas num dado momento, reconhecendo a inevitabilidade de novas formas de luta, desconhecidas dos participantes do período dado, com a modificação da conjuntura social dada. O marxismo neste aspecto aprende, se assim nos podemos exprimir, com a prática das massas, está longe da pretensão de ensinar às massas formas de luta inventadas por ‘sistematizadores’ de gabinete. Nós sabemos – disse, por exemplo, Kautsky ao analisar as formas da revolução social – que a crise futura nos trará novas formas de luta que nós não podemos prever agora.

Em segundo lugar, o marxismo exige um exame absolutamente histórico da questão das formas de luta. Colocar esta questão fora da situação histórica concreta significa não compreender o ABC do materialismo dialético. Em diferentes momentos da evolução econômica, dependendo das diferentes condições políticas, nacionais-culturais, de vida etc., diferentes formas de luta passam para primeiro plano, tornam-se as principais formas de luta, e, em ligação com isso, modificam-se também as formas secundárias, acessórias, de luta. Tentar responder por sim ou não à questão da utilização de um determinado meio de luta, sem examinar detalhadamente a situação concreta do movimento dado no grau dado do seu desenvolvimento, significa abandonar completamente o terreno do marxismo.”

7 Em Escritos de juventude, v. 2. São Paulo: LavraPalavra Editorial, 2020.

8 Em Escritos de juventude, v. 1. São Paulo: LavraPalavra Editorial, 2020.

9 https://www.marxists.org/archive/lenin/works/1894/narodniks/index.htm

10 https://www.marxists.org/portugues/lenin/1914/11/marx-avante.htm

11 https://www.marxists.org/portugues/lenin/1920/10/02.htm

12 Vide, notadamente, O desenvolvimento do capitalismo na Rússia.

13 https://www.marxists.org/archive/lenin/works/1901/agrarian/index.htm

14 Na edição em inglês, volume 40. Disponível em: https://www.marxists.org/archive/lenin/works/cw/pdf/lenin-cw-vol-40.pdf

15 https://www.marxists.org/archive/lenin/works/1907/apr/06.htm

16 https://www.marxists.org/archive/lenin/works/1907/apr/00b.htm

17 https://www.marxists.org/portugues/lenin/1905/taticas/index.htm

18 https://www.marxists.org/archive/lenin/works/1907/feb/05.htm

19 Vide Materialismo e empirocriticismo.

20 https://www.marxists.org/portugues/lenin/1922/03/12-1.htm

21 Vide Cadernos filosóficos, publicados parcialmente no Brasil pela Boitempo Editorial.

22 https://www.marxists.org/portugues/lenin/1921/01/26.htm

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