Chamando a contradição pelo nome

imagemIlustração de Katie Horwich

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Por Christian Stache. Publicado em março de 2021 em Das Fleischkapital. Zur Ausbeutung von Arbeitern, Natur und Tieren (O Capital da Carne. Sobre a exploração dos trabalhadores, da natureza e dos animais).

Traduzido por Lívia Maria e revisado por Rebecca Borges e Maila Costa.

A comunista brasileira, militante pela libertação animal e feminista Maila Costa fala sobre as maquinações da maior corporação produtora de carne do mundo, a JBS, e sobre o veganismo popular.

O governo de Jair Bolsonaro começou em janeiro de 2019 no Brasil. O que mudou nesse momento na política da esquerda?

Primeiramente é preciso enfatizar que medidas neoliberais, como a privatização de serviços sociais públicos e a redução dos direitos trabalhistas, foram iniciadas em 2016 por Michel Temer, após o golpe contra Dilma Rousseff. A trupe de Bolsonaro começou então, durante seu mandato atual, a fazer de tudo para expandir a condição colonial do Brasil na divisão internacional do trabalho. Por um lado, isso dificultou o trabalho da esquerda radical, mas por outro lado, a crescente precarização da vida — e das condições trabalhistas — fez com que muitas pessoas refletissem sobre si mesmas e sua classe, e se tornassem parte do movimento de resistência.

Um opositor da política de esquerda no Brasil é a maior empresa de carne do mundo, a JBS. Como se sabe, membros do governo Bolsonaro haviam recebido subornos da empresa no passado. Qual é hoje a relação entre o governo e a JBS?

O governo mantém atualmente uma comissão que representa os interesses do agronegócio. O comitê é financiado por 38 grupos lobistas. A JBS pertence a alguns deles. Além disso, a empresa tem sido financiada, desde o fim do governo do Partido dos Trabalhadores (PT) em 2016, com pelo menos 4 milhões de euros do Banco Nacional do Desenvolvimento (BNDES), um banco estatal brasileiro, que, aliás, também detém ações da JBS. Além disso, Tereza Cristina, ministra da agricultura de Bolsonaro, é proprietária de terras e realiza negócios com os donos da JBS, a família Batista. Mas ela afirma, é claro, não haver conflitos de interesses entre o ministério e sua empresa.

A JBS, em apenas dez anos, passou de um pequeno abatedouro a um conglomerado privado líder no Brasil. Em 2018, o grupo teve um faturamento recorde de 41,3 bilhões de euros. Você pode resumir para nós o sistema JBS e as consequências para animais, trabalhadores e natureza?

A JBS passou de uma empresa nacional para um conglomerado internacional quando a família Batista decidiu negociar ações da empresa na bolsa e comprar os concorrentes. O BNDES financiou as estratégias de internacionalização da JBS. Isso aconteceu como parte da política de expansão do governo Lula para empresas nacionais daquela época. A crescente expansão global de produtos de origem animal, especialmente na China, também foi crucial para esse desenvolvimento. A JBS usou incentivos fiscais e subsídios, pagamento de subornos, não apenas sobre o processamento de carne, mas também para expandir a sua influência em outras áreas, como nos bancos e no setor de telecomunicações. Atualmente 235 mil pessoas trabalham para a empresa. O setor inteiro de abate no Brasil é terrível.

A JBS é conhecida como a “campeã dos acidentes de trabalho”. Apenas no Estado do Mato Grosso são notificadas 19 mil violações de direitos trabalhistas por ano pela JBS. Alia-se a isso o estresse psicológico que o trabalho desumano de abate de animais traz consigo e o alto grau de alienação do “produto”, dos animais e de si mesmos. O destino dos milhões de animais não humanos sob o controle da indústria é simplesmente horrível. Os números são enormes: por dia são mortos pela JBS 45 mil bovinos, 47 mil porcos e 10 milhões de frangos. Para cumprir as regulações legais, o gado no Brasil é criado em campos abertos. Mas, em outros países que a JBS opera, existe a pecuária intensiva, o que é ainda mais cruel. A lista de problemas com os quais somos confrontados só cresce. Por exemplo, como resultado da monocultura para produção de ração animal, a qualidade do solo diminui, a poluição da água e do ar devido a detritos, uso de pesticidas e emissão de gases do efeito estufa aumenta, e a lista continua.

Existe resistência direta, ou pelo menos protesto, contra a JBS e esse sistema de exploração?

Até onde eu saiba, não. É extremamente difícil organizar ações contra grandes corporações porque o poderio da polícia militar é usado descaradamente contra a população. Principalmente no campo, onde os animais são criados, é muito perigoso fazer alguma coisa. Os capatazes não hesitam em atirar. Há dezenas de casos em que ativistas sem-terra e indígenas foram vítimas dos interesses do agronegócio.

O Brasil é um país da semiperiferia do sistema capitalista mundial. Os problemas, inclusive os sociais, são graves. Nessa situação, faz algum sentido, politicamente falando, lutar pela libertação dos animais?

Eu diria que fazer isso, exatamente por causa das complexas condições sociais, é sensato e necessário. A histórica posição do Brasil na divisão do trabalho é a de uma colônia a serviço dos países europeus. Hoje, pode-se encontrar aqui no Brasil partes da produção capitalista que se quer banir dos países centrais do capitalismo. Isso inclui a exploração intensiva de animais, com todas as suas consequências. A fabricação de bens de origem animal em grande escala e a produção de ração associada trazem grandes problemas, como o acesso limitado à comida por parte da população ou a criminalização de movimentos por reforma agrária. Penso que apontar a miséria dos animais não humanos é chamar pelo nome mais uma contradição terrível do capitalismo, que traz sofrimento extremo.

Nós temos tido experiências mistas com a esquerda no geral e comunista, em particular, quando nos confrontamos com a questão animal. Qual importância tem a libertação animal na política do Partido Comunista Brasileiro (PCB)?

Como na maior parte da esquerda, o debate da questão animal entre os comunistas ainda está num nível embrionário. A libertação animal é associada ao veganismo, e esta associação gera automaticamente a crítica marxista da ação individual. Eu e alguns camaradas procuramos criticar essa caricatura e esclarecer que a exploração animal não pode acabar apenas com um estilo de vida vegano. O veganismo é uma parte da práxis revolucionária. Isso vem dos nossos padrões éticos, que também devem se aplicar aos animais. O consumo de animais foi necessário no passado, mas hoje, graças ao desenvolvimento das forças produtivas, não é mais justificável. Os membros do Partido Comunista Brasileiro normalmente entendem que a indústria animal apresenta várias contradições. Mas isto é primeiramente apenas uma visão teórica, sem grandes implicações políticas ou na reprodução social cotidiana. A juventude do partido, a União da Juventude Comunista (UJC), é a exceção da regra. Lá se dedicam, provavelmente seguindo a tendência mundial, muito mais camaradas à causa animal.

Na Alemanha, Suíça e outros países do hemisfério ocidental, os movimentos que lutam pelos animais são dominados por diferentes variedades de liberalismo, dentro das quais o veganismo é o eixo. Você pode descrever como o movimento de defesa e libertação dos animais está posicionado no Brasil?

Como em todos os movimentos anti-opressão, há uma propensão ao liberalismo. O veganismo está se tornando mais popular no Brasil, inclusive o veganismo político, ou, como geralmente chamamos, o “veganismo popular”. É claro que uma grande parte dos veganos daqui pertence à classe média branca e acredita no “veganismo de mercado”. Mas cada vez mais pessoas da classe trabalhadora também estão se tornando veganas no sentido político, ou seja, não apenas por alívio de consciência ou por razões de saúde. O número de coletivos anti-especistas tem crescido nos últimos anos. Não consigo pensar agora em nenhum exclusivamente marxista. Mas há alguns que representam posições anticapitalistas e nos quais os marxistas estão incluídos, geralmente em conjunto com os anarquistas. Além disso, existem iniciativas muito interessantes, como a Favela Orgânica. Este é um projeto na favela da Babilônia, no Rio de Janeiro. Seu objetivo é ensinar os residentes locais sobre o uso de plantas que caíram no esquecimento em consequência da industrialização dos alimentos. Os ativistas também têm como objetivo derrubar a ideia de que o veganismo é elitista. A Animal Liberation Front (ALF ou Frente de Libertação Animal) também está ativa no Brasil. Por fim, pessoas como eu e alguns camaradas estamos trabalhando em organizações políticas e nos movimentos populares mais amplos e estamos realizando os debates necessários por lá.

O que devem fazer os marxistas e ativistas pela libertação animal no centro do imperialismo para apoiar camaradas na semiperiferia e periferia?

Eu já morei na Europa. A diferença entre os movimentos de libertação animal lá e no Brasil é enorme. Na Europa as pessoas têm a impressão de que o avanço da libertação animal se reduz à compra de produtos veganos. Não há necessidade de questionar por que algumas pessoas não têm acesso à comida ou por que indígenas são mortos ou expulsos de suas terras para que os grandes latifúndios possam plantar soja. No Brasil essas questões estão sempre na ordem do dia. É praticamente impossível falar sobre a abolição da exploração animal sem abordar os outros problemas. A ala marxista dos movimentos pela libertação animal deve mostrar solidariedade. Deve buscar entender as diferentes condições materiais de vida em outras partes do mundo e incluí-las na análise da totalidade social.

Maila Costa é militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e mora no Estado do Rio Grande do Sul.

A revista Das Fleischkapital. Zur Ausbeutung von Arbeitern, Natur und Tieren é uma publicação do coletivo Bündnis Marxismus und Tierbefreiung pode ser encontrado no Instagram, Twitter e Facebook.

Fonte:

https://leiamarxistas.medium.com/chamando-a-contradi%C3%A7%C3%A3o-pelo-nome-958931e0b6b

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