O chão social da “moral” bolsonarista

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O fenômeno do bolsonarismo, compreendido em seu conteúdo econômico, anticientífico e moral tem se apresentado como grande desafio interpretativo da realidade política brasileira.

por G. Lessa – Membro do Comitê Central do PCB

Em artigos anteriores, apresentamos hipóteses para a compreensão de sua resiliência, bem como analisamos suas dimensões irracionalistas, que se expressam, por exemplo, em uma manipulação política do senso comum.

Cabe-nos, agora, tentar jogar luz sobre os padrões éticos abraçados por esse capítulo neofascista da história brasileira. Isto é, tentaremos elucidar como foi possível e por que encontrou tanta reverberação na sociedade brasileira a “moral” bolsonarista: uma ética reacionária, hipócrita e perversa. A explicação passará, obrigatoriamente, pelos efeitos da urbanização na subjetividade dos brasileiros, pelo crescimento do neopentecostalismo no país e pelo vazio ético artificialmente fabricado pela golpista Operação Lava-Jato.

A questão evangélica

Não é raro que o êxito da direita no campo dos costumes e o triunfo do fundamentalismo moral sejam creditados simplesmente ao crescimento do número de evangélicos no país, especialmente das igrejas neopentecostais, de fundação mais recente. Os próprios dados censitários, contudo, indicam que esta análise é excessivamente superficial, além de não explicar, antes, as próprias condições que permitem o crescimento destes ramos conservadores do protestantismo no Brasil.

No período de 1991-2010 (para o qual temos números detalhados e confiáveis nos censos), os evangélicos saltaram de 9% para 22% da população. Destes, 13,3% eram pentecostais, 4% estavam em igrejas de missão e 4,8% não declararam a tendência teológica. Pesquisa DataFolha apurou que os protestantes já eram 31% dos brasileiros em 2020. Em termos geográficos, os evangélicos estão mais localizados no Sudeste, no Centro-Oeste e no Norte, enquanto os católicos possuem maior presença no Nordeste, norte de Minas Gerais e no Sul.

Em 2010, a Assembleia de Deus possuía 12,3 milhões dos 25 milhões adeptos do pentecostalismo, enquanto apenas 1,9 milhão congregavam na Igreja Universal (considerada neopentecostal, principalmente por adotar a “Teologia da Prosperidade”). Portanto, ao contrário do que geralmente se pensa, uma congregação tradicional, fundada há 104 anos, de estrutura descentralizada, organizava naquela data – e ainda organiza em 2022 – metade dos pentecostais.

O fato alude às dimensões estruturais e de longa duração das modificações no perfil religioso do país. Se o avanço deste ramo protestante fosse apenas fruto do marketing da Igreja Universal e assemelhadas, uma instituição tão longeva e conservadora como a Assembleia de Deus não teria tal importância no processo.

Capitalismo, urbanização e padrões de moralidade

O fenômeno do pentecostalismo não está desconectado da complexificação do capitalismo no país. O adensamento e a sofisticação das relações mercantis nas cidades foi solidificando, progressivamente, ao longo de décadas, condições objetivas para a hegemonia de um “espírito capitalista”.

A taxa de urbanização no Brasil acelerou na segunda metade do século XX e continua robusta até o presente. No mesmo período anteriormente citado, de 1991 a 2010, o número de residentes urbanos saltou de 111 para 161 milhões, avanço de 45%. Enquanto isso, a população rural diminuiu de 36 para 30 milhões (Censo/IBGE). Como os padrões tradicionais de moralidade tendem a prevalecer no campo, por razão listadas adiante, estas mudanças produziram dramático choque entre valores rurais e valores urbanos na mente de milhões de pessoas.

Estas transformações foram mediadas por grupos da sociedade civil (sindicatos, movimentos sociais, associações de bairro, etc.) e instâncias estatais (prefeituras, governos estaduais, governo federal etc.) com mais erros do que acertos. A má gestão destes processos sociais criou difíceis problemas culturais.

O conservadorismo moral nutriu-se destas circunstâncias e tornou-se grave ameaça às alternativas racionais e progressistas, como a Teologia da Libertação e a esquerda partidária, e se expressou principalmente nas igrejas pentecostais/neopentecostais e, mais recentemente, no bolsonarismo. Como a hegemonia e a direção política têm forte componente ético, para disputar com êxito o campo da moralidade, a esquerda brasileira necessita identificar bem os conflitos morais vividos pela maioria da população e apresentar alternativas aos engodos fundamentalistas e bolsonaristas.

Como já mostrou Max Weber e, antes dele, Karl Marx, o citado “espírito capitalista” se expressa melhor no protestantismo do que no catolicismo, pois este é estruturado por doutrina de inspiração feudal e anticapitalista (foco na caridade e condenação das riquezas materiais). Já as igrejas evangélicas “de missão” (Batista, Metodista, Luterana, Presbiteriana, Adventista e Congregacional) são não apenas melhor adaptadas à ideologia capitalista, como também são mais abertas aos elementos da modernidade.

O pentecostalismo tradicional, por sua vez, tem oferecido, há décadas, uma mistura de moral capitalista ascética e reafirmação de valores patriarcais. Por fim, nos anos 1990 consolidam-se as igrejas neopentecostais, como a Universal, que abandonam o ascetismo e propagam a Teologia da Prosperidade, conseguindo fiéis com a promessa de riquezas na terra.

Com a crescente urbanização, os vastos contingentes chegando continuamente às cidades precisaram adaptar seus valores ao novo ambiente. No entanto, o processo de amoldamento não foi exitoso devido à inadequação das políticas públicas (moradia, emprego, educação, lazer, cultura etc.) e à insuficiência das propostas apresentadas por instituições da sociedade civil (a Igreja Católica, sindicatos, associações de bairro, partidos políticos etc.).

Sem esse apoio e na falta de boa formação escolar, ficou mais difícil justificar as decisões cotidianas em referenciais científicos. Na ausência de bibliotecas públicas suficientes, o acesso à cultura letrada se tornou impossível. Criou-se uma complexa situação na qual os valores rurais se mostraram inadequados ao novo ambiente e os valores urbanos não foram absorvidos suficientemente, gerando insegurança e amálgamas perversos, como a cultura da “justiça com as próprias mãos”, dentro de grave crise na subjetividade e apego desesperado a qualquer alternativa para superar a angústia que decorre dela.

O fundamentalismo religioso pentecostal/neopentecostal apresentou, então, uma das mais vitoriosas “soluções” alienadas para o problema ao sintetizar a moral capitalista (na linha ascética da Assembleia de Deus ou na abordagem hedonista da Igreja Universal) com a reafirmação rígida e fora de lugar de valores tradicionais. Ou seja, o fiel é convencido, com o auxílio da qualidade literária da Bíblia, a manter-se em linha moral enrijecida, que envolve a renúncia às muitas possibilidades de pensar e experimentar.

Na Assembleia de Deus são proibidos, por exemplo: brincos, pulseiras, colares, maquiagem, assistir TV, ir ao cinema, ouvir música secular, ir ao estádio e jogar futebol. Esta rigidez leva à diminuição momentânea da angústia por ocorrer junto do fortalecimento de instância coletiva punitiva: a comunidade de crentes. Mesmo na vertente da Teologia da Prosperidade, esta rigidez não é coerente com a sociedade moderna – mesmo que o seja com a aparência das relações capitalistas – e abre espaço para o retorno dos impulsos reprimidos como doença, podendo causar a anulação da personalidade, o domínio da hipocrisia ou da perversidade.

Peculiaridades éticas urbanas e rurais

Mesmo estando há séculos envolvidas em relações capitalistas, sejam as evidentes (assalariamento, juros, aluguel etc.) ou as disfarçadas (escravidão de povos indígenas e africanos, parceria etc.), as áreas rurais brasileiras, como em todos os países, têm singularidades que as predispõem a valores tradicionais. Essas singularidades fazem com que seus habitantes sejam mais ligados a justificativas religiosas (“está na Bíblia”), atavismos (“sempre foi e vai continuar a ser”) e ao biologismo (“homem nasce homem, mulher nasce mulher”).

As principais entre essas singularidades são: 1) dependência dos ciclos da natureza (regime de chuva, processos químicos do solo, estações do ano etc.); 2) baixa densidade econômica e demográfica; 3) dificuldades de comunicação remota; e 4) menor velocidade das mudanças nos sistemas produtivos, causada principalmente pela propriedade privada da terra.

É importante destacar, por outro lado, para evitar mal-entendidos, que este padrão de moralidade não se expressa, necessariamente, em posições políticas reacionárias e antipopulares. Por exemplo, a população rural inglesa do século XVIII usou direitos comunitários feudais para combater o monopólio dos grãos. As revoluções russa e chinesa foram realizadas, majoritariamente, por camponeses. Portanto, o tradicionalismo rural pode se expressar, em determinadas conjunturas políticas, como anticapitalismo revolucionário.

As peculiaridades das áreas agrícolas dificultam, até certo ponto e dependendo da época histórica, a compreensão do fato de que as pessoas produzem, por meio do trabalho e outras atividades orientadas pela consciência, a si mesmas como seres sociais. Dificulta-se, dessa maneira, o entendimento de que os valores morais são criações da própria sociedade e não derivações dos desígnios de Deus ou das leis da natureza.

Nas cidades, a relativa independência dos ciclos da natureza, a densidade demográfica, a facilidade de comunicação remota e a intensa dinâmica da economia, entre outros elementos, criam condições para uma tendência contrária: a “dessacralização” do mundo e o esclarecimento da origem social dos valores morais. Isto explica, por exemplo, por que os movimentos com significativo traço de renovação da moralidade (movimento feminista, movimento LGBTQIA+ etc.) começam nas grandes metrópoles.

No entanto, nem tudo é luz no espaço urbano, pois existe nas cidades maior densidade das relações capitalistas e, portanto, a falsa aparência característica delas é mais forte e possui grande capacidade de induzir os indivíduos a imaginarem que a riqueza econômica é criação do capital, e não da classe trabalhadora.

Nesta versão proposta pela aparência das relações mercantis, os/as trabalhadores/as seriam apenas elementos passivos da economia, peças do maquinário, sequer seriam humanos, pois não teriam capacidade de acrescentar valor aos produtos. Esta inversão ideológica da realidade gera um problema moral particular: os valores morais tendem a ser novamente justificados por forças fora do controle humano, como o dinheiro, o capital e as mercadorias percebidos como “coisas” e não como produtos sociais.

Estes elementos podem ganhar disfarces simbólicos, conscientes ou inconscientes, e serem chamados de “Jesus”, “Deus”, “espírito santo” e “pátria”. Nas igrejas neopentecostais, os pastores identificam deliberadamente Deus e o capital. A divindade vira bolsa de ações ordinárias e preferenciais. Esta nova alienação da consciência leva à defesa do patriarcalismo e, portanto, de uma família tradicional idealizada, em plena cidade.

A possibilidade de adaptações morais à esquerda

Como já mencionado, contudo, o padrão de moralidade mais ligado ao ambiente rural não recai, obrigatoriamente, em posições políticas reacionárias e antipopulares. Durante o mesmo período de urbanização e crescimento do pentecostalismo no Brasil, a busca por padrões morais satisfatórios encontrou também propostas anticapitalistas e progressistas, como aquelas das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), dos movimentos sociais (MST, por exemplo) e dos partidos de esquerda, com destaque para o Partido dos Trabalhadores (PT), a partir dos anos 1980.

As CEBs, surgidas entre os anos 1970 e 1980, eram milhares de pequenos grupos de fiéis pobres reunidos por proximidade geográfica e inspirados pela Teologia da Libertação, vertente mais à esquerda da doutrina social da Igreja Católica. Representavam, moral e politicamente, antípodas dos templos da Assembleia de Deus. Propunham projeto político marxista, democratização do poder religioso e uma ética católica de inspiração franciscana (“opção preferencial pelos pobres”). Respondia à demanda das massas por uma moral urbana com a síntese entre asceticismo, recusa aos valores capitalistas e abordagem materialista dos problemas sociais.

Como a complexificação do capitalismo multiplica as experiências dos indivíduos em grandes coletivos laborais (como fábricas e supermercados), fica também demonstrado, na prática, o caráter social do trabalho. Colocam-se as condições para o desenvolvimento de uma moralidade urbana socialista, ao mesmo tempo em que a aparência das relações mercantis coloca as condições para um “espírito capitalista”, ou seja, para a moralidade oposta.

Portanto, as CEBs não estavam fadadas à derrota em relação às igrejas pentecostais, se não tivessem sido boicotadas pelo próprio papa João Paulo XX e o sucesso dependesse apenas da adequação da própria doutrina à vida dos trabalhadores. Prova disso foi a trajetória ascendente e vitoriosa do PT (repetindo, com singularidades ideológicas e organizativas, o papel do Partido Comunista Brasileiro/PCB no passado), agremiação talhada por valores e temas próximos àqueles da Teologia da Libertação: foco nas demandas sociais, na distribuição de renda e na organização pela base.

Política e moralidade

A política possui acentuada dimensão moral por ser a instância que relaciona o debate aprofundado e a resolução prática dos principais problemas da sociedade. Os eleitores fazem muitas exigências morais aos candidatos porque, entre outras coisas, são obrigados pelo sistema eleitoral a conceder enorme poder aos candidatos. Além de possuírem funções como organizar e governar, os partidos tornam-se, frequentemente, referências morais, uma dimensão bastante destacada por Antonio Gramsci.

A partir de meados dos anos 1980 até o Mensalão e, posteriormente, a operação Lava Jato – trama criada pela imprensa, pelas grandes empresas e pelos segmentos fascistas do Judiciário para depor a presidenta Dilma Rousseff – o PT era considerado, por grande parte do eleitorado, como exemplo de ética política, principalmente pela síntese entre valores modernos (democracia, laicidade do Estado, direitos trabalhistas, ética do trabalho etc.) e a defesa das políticas de distribuição de renda.

No mesmo período, os partidos de direita e de centro, como o PMDB e o PSDB, deslegitimaram-se progressivamente ao assumirem a agenda neoliberal, técnica e moralmente indefensável. O vazio político/moral criado pela operação Lava Jato, ou seja, pela convergência entre a desmoralização artificial do Partido dos Trabalhadores e a proibição da candidatura de Lula em 2018, ofereceu as condições para o bolsonarismo tornar-se, conjunturalmente, corrente “moral” e política vitoriosa.

Perceber estas circunstâncias ajuda a entender por que enorme porcentagem dos brasileiros tem relegado padrões humanistas de moralidade e assumido valores neofascistas. O bolsonarismo buscou misturar as noções da extrema direita norte-americana com o reacionarismo mais moderado difundido pela doutrina pentecostal/neopentecostal. Para tanto, bombardeou os crentes nesta doutrina com elementos externos, como o culto às armas, os linchamentos morais e a crítica direta aos movimentos feminista, negro e LGBTQIA+, buscando envolver fiéis e pastores em uma “moralidade” antimoderna mais radical e ativamente autoritária.

E o objetivo foi alcançado em larga medida. Ajudado pela conjuntura econômica e política (como exposto no artigo “A resiliência do bolsonarismo nas Eleições 2022”), e atuando em ambiente de desorientação político-moral causada pela destruição da imagem do sistema político e do petismo, o bolsonarismo passou a ter êxito ao explorar os dilemas morais e religiosos dos indivíduos, estabelecendo-se como nova referência “ético-política”.

Contudo, com a anulação de todos os processos contra o ex-presidente Lula, a Lava Jato foi desmascarada, e o petismo começou a ser reabilitado perante amplas massas. Esse processo foi, ainda, acelerado pela atitude genocida e desrespeitosa em relação aos valores cristãos de Bolsonaro durante os dois anos mais fatais da pandemia da Covid-19.

Para concluir

Dessa forma, também na dimensão da moralidade, a influência de massa do bolsonarismo não é inexplicável. As colossais mudanças demográficas, geográficas e econômicas experimentadas pela população brasileira a partir da segunda metade do século XX expressaram-se em complexos processos ideológicos, políticos e morais. A construção de valores para o crescente ambiente urbano foi disputada por vários sujeitos coletivos: movimentos sociais, centrais sindicais, igrejas, terreiros, produtoras de cinema, editoras, jornais, revistas, redes de rádio e televisão, movimentos artísticos, gravadoras de discos, prefeituras, governos estaduais e federal, entre outros.

Por serem intérpretes bastante reconhecidos da moral tradicional, a Igreja Católica e as correntes evangélicas tiveram um papel decisivo no processo de atualização dos valores, como fica claro na influência da CEBs (e da Conferência dos Bispos do Brasil – CNBB) e na multiplicação de templos pentecostais/neopentecostais. Diante da profunda crise experimentada pelo PCB no final dos anos 1980 – gerada principalmente pela inadequação à realidade do caráter etapista do seu programa estratégico (problema superado no início do século XXI) – o Partido dos Trabalhadores (PT), influenciado pelos valores católicos (via Teologia da Libertação) e noções de várias correntes marxistas, passa a ser, por décadas, a referência mais visível de ética política na esquerda e no campo progressista.

Os avanços na distribuição de renda conseguidos durante os governos Lula estagnaram no segundo governo Dilma Rousseff. A presidenta, antes disposta a implantar matriz econômica à esquerda (2011), não respondeu generosamente às demandas legítimas postas pelas Jornadas de 2013. Este desencontro causou enorme fratura entre partes das massas e o PT, abrindo margem à ascensão da Lava Jato (2014), instrumento preparado do golpe de 2016, que também destruiu a imagem do sistema político como um todo, criando as condições para o bolsonarismo influenciar as massas e aparecer como referência de “ética política” a partir de valores fascistas.

A vitória da candidatura Lula foi o primeiro duro golpe no bolsonarismo. Mas é preciso lembrar que a história não se repete: o neofascismo no país apenas será totalmente superado se a esquerda como um todo se mantiver coerente com os seus valores e projetos, sem concessão ao neoliberalismo e à ordem capitalista.