Fundos patrimoniais: uma ameaça à autonomia universitária

Apontamentos sobre a Lei dos Fundos Patrimoniais, o Programa Future-se e a ameaça à autonomia universitária dos IFES

Por João Marcelo e Ghabriel Ibrahim, militantes do núcleo UJC UERJ

O que são e para que servem os Fundos Patrimoniais?

No dia 07 de janeiro de 2019, foi sancionada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro a Lei 13.800, que regula a criação de fundos patrimoniais com o objetivo de arrecadar, gerir e destinar doações de pessoas físicas e jurídicas privadas para programas, projetos e demais finalidades de interesse público. No texto aprovado pelo Congresso Nacional e sancionado pelo ex-presidente, os fundos patrimoniais são caracterizados como um “conjunto de ativos de natureza privada instituído, gerido e administrado pela organização gestora de fundo patrimonial (OGFP) com o intuito de constituir fonte de recursos de longo prazo, a partir da preservação do principal e da aplicação de seus rendimentos”.

Para entendermos o funcionamento dos fundos patrimoniais, precisamos compreender, primeiramente, o que é o Programa Future-se. Para a professora Carolina Gabas Stuchi, o programa, apresentado em 2019 pelo ex-ministro da educação Abraham Weintraub, possibilitaria transferir a agentes privados (OS, Fundações de Apoio, Fundos Patrimoniais e Fundos de Investimento) parcelas importantes do poder hoje pertencente à comunidade acadêmica em suas instâncias colegiadas de administração, pulverizando os núcleos de decisão, privatizando-os e, com isso, afastando os critérios e pressupostos públicos com efeitos potencialmente devastadores sobre a autonomia das instituições. O programa Future-se tinha como objetivo “subverter as diretrizes constitucionais visando estabelecer as bases para a privatização e a ampla desresponsabilização estatal no setor educacional” (STUCHI, 2020; XIMENES, 2020).

As várias mudanças propostas pelo Future-se intentavam mudar a forma de gestão pública dos Institutos Federais de Ensino Superior (IFES), fraturando-a ao mesmo tempo em que alterariam modelos de administração e financiamento destas instituições. Visando desresponsabilizar o Estado sob o pretexto de certa “modernidade”, corroborando com os dogmas neoliberais que entendem que um Estado enxuto é sempre melhor, caminhavam no sentido de dirimir a autonomia didático-científica a partir da ingerência cada vez maior de recursos privados. Não sejamos ingênuos: “quem paga a banda escolhe a música”.

Em suma, é preciso compreender que a última minuta do Future-se, com suas modificações, está diretamente integrada à implementação da Lei dos Fundos Patrimoniais. Apesar de o programa ter sido barrado após forte mobilização estudantil em 2019 (nos chamados “Tsunamis da Educação”), a autonomia universitária continua correndo fortes riscos. Os grandes empresários da educação privada, através desta lei, juntamente com os cortes de verbas, almejam de pouco em pouco “cercar” o controle do orçamento universitário das IFES.

Que fique bem claro: o conjunto de empresas e fundações de origem empresarial ou familiar que se organizou especificamente para aprovar a Lei dos Fundos Patrimoniais é também parte do lobby que se organizou para a aprovação da EC 95 (Teto de Gastos) de Temer, que limitou os gastos da educação pública por 20 anos. Obviamente, não é coincidência que os fundos patrimoniais surjam no Brasil ao mesmo tempo em que inúmeros cortes orçamentários são aplicados às universidades e instituições públicas!

Voltando mais especificamente aos meandros da Lei 13.800/19, uma das novidades trazidas é a figura de Organização Gestora de Fundo Patrimonial (OGFP) – instituição privada sem fins lucrativos instituída na forma de associação ou de fundação privada com o intuito de atuar exclusivamente para um fundo na captação e na gestão das doações oriundas de pessoas físicas e jurídicas e do patrimônio constituído. Os agentes de mercado e os representantes das instituições públicas ficam, assim, encobertos por essa entidade, que passa a ser vista como responsável por concretizar o “interesse público” e recebe por isso o prestígio social. Além disso, é importante destacar que a separação entre o fundo propriamente dito e a gestora possibilita ao mercado que atue com vantagem sobre as instituições do Estado, dado que a iniciativa privada encontra aí dupla entrada.

Autonomia universitária em risco

De modo mais claro, a autonomia universitária é posta em risco uma vez que, tirando da comunidade acadêmica a centralidade das decisões sobre potenciais parcerias – em virtude de as OGFPs e os próprios doadores terem a palavra final nesse campo –, as prioridades podem se subordinar à necessidade de atrair investidores. Os ativos vêm de entes privados, são geridos por essa organização gestora e só então passam ao ente público, que ao longo de todo o processo possui papel passivo.

É nesse sentido que vemos com preocupação e estranheza o fundo patrimonial “Amigos – Direito Uerj”. Considerando o corpo docente elitista da FDir-UERJ e uma gestão de centro acadêmico conivente com investimentos privados na Universidade, é necessário que voltemos nossa atenção a essa iniciativa ainda pouco comum em território nacional.

No ano de 2022, entre as atividades realizadas pelo fundo patrimonial em questão podemos ver um evento visando discutir oportunidades na advocacia privada, bolsas para cursos privados de mediação e um encontro com o Senior Director da Universidade de Chicago, fortemente associada, no campo da economia, ao pensamento neoclássico. Entre os maiores patrocinadores, o escritório Sérgio Bermudes, localizado no edifício da Bolsa de Valores do Rio de Janeiro – o que parece apropriado, dado que o dinheiro doado é especulado no mercado financeiro antes de se tornar “presente” aos alunos da UERJ. Mais interessante que a maioria dessas informações, porém, é o fato de que parte significativa dos fundadores do fundo fizeram (ou fazem?) parte do lobby para a mudança de local da Faculdade de Direito.

Luís Roberto Barroso, Luiz Fux e Paulo Cezar Pinheiro Carneiro, para citar três, estiveram se mobilizando ativamente em 2017 para que essa mudança ocorresse. No ano em questão, a UERJ passava por profunda crise econômica. Fux defendeu a proposta afirmando que a mudança para o prédio no Centro da cidade traria ao alunato “dignidade e reverência”, e seria condição para que a universidade estivesse “nos moldes de Harvard”. Essa proposta de mudança não considera, por exemplo, as condições dos alunos cotistas, que necessitam do restaurante universitário presente somente no atual campus da faculdade.

Na UFRJ também já há um fundo patrimonial em funcionamento. Em reportagem de 2021, a CNN informou que o fundo, implantado em dezembro de 2020, demonstrava crescimento significativo. Entre seus apoiadores de destaque, Carlos Brito – CEO da AB Inbev -, Geraldo Thomaz e Mariano Gomide – fundadores da empresa Vtex. Curiosamente, este fundo não aparece em pesquisa realizada pelo IDIS (Instituto Desenvolvendo o Investimento Social), que mapeou neste ano mais de 50 fundos patrimoniais pelo Brasil. Entre eles, na UFBA e na USP.

Lutar, criar, universidade popular!

É necessário entender que estamos vivendo um momento de ofensiva liberal contra a universidade pública. Apesar das pequenas vitórias institucionais, como a derrota do programa Future-se, partes do seu projeto privatista foram aprovadas e ameaçam a autonomia universitária. A lei dos Fundos Patrimoniais é uma delas. Velado pelo discurso filantrópico, é um aparato legal que naturaliza a ingerência de agentes privados no ensino público, fortalece a especulação no mercado financeiro e enfraquece o poder de decisão da comunidade acadêmica sobre suas próprias demandas. Como concluíram Stuchi et al (2020), “sob a gramática da autonomia, portanto, teríamos uma universidade heteronomamente governada, gerida por uma multiplicidade de instâncias e contratos de regime privado e, de preferência, capaz de produzir direta e indiretamente algum lucro, via produtos financeiros e venda de serviços”.

Conclamamos todos os estudantes que defendem uma universidade verdadeiramente popular a voltarem sua atenção contra esses mecanismos que tentam dissimular o processo de privatização do ensino público. Nem um passo atrás em defesa da autonomia universitária!

Lutar, criar, universidade popular!

BIBLIOGRAFIA
BOTTARI, E., RAMALHO, G. Mudança do Direito da Uerj vira debate acadêmico. O GLOBO, Rio de Janeiro, 11 ago. 2017. Disponível em: https://oglobo.globo.com/rio/mudanca-do-direito-da-uerj-vira-debate-academico-21693709. Acesso em: 03/01/2023
RESENDE, I. Fundo formado por ex-alunos deve da UFRJ deve arrecadar R$15 milhões até o fim do ano. CNN BRASIL. São Paulo, 28 jul. 2021. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/fundo-formado-por-ex-alunos-da-ufrj-deve-arrecadar-r-15-milhoes-ate-fim-do-ano/. Acesso em: 04/01/2023
RODAS, S. Transferência da faculdade de direito da Uerj limitaria diálogo, dizem professores. CONJUR. São Paulo, 04 ago. 2017. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2017-ago-04/professores-reclamam-mudanca-faculdade-direito-uerj. Acesso em: 04/01/2023
STUCHI, C. G.; XIMENES, S.; PIPINIS, V. T.; VICK, F. Velhas tendências, novos arranjos: a autonomia universitária frente às propostas de Organizações Sociais e Fundos Patrimoniais. Jornal de Políticas Educacionais. V. 14, n. 13. Janeiro de 2020.
WOLFFENBÜTTEL, A., FABIANI, P PANORAMA DOS FUNDOS PATRIMONIAIS NO BRASIL. 1ª ed. São Paulo: IDIS, 2022. Disponível em: https://www.idis.org.br/wp-content/uploads/2022/04/Panorama_Fundos_Patrimoniais_Brasil_Digital.pdf.
Acesso em: 04/01/2023