Os rumos da luta de classes sob o governo Lula-Alckmin
Nota Política do Partido Comunista Brasileiro (PCB)
Nas últimas décadas, a profunda crise sistêmica do capitalismo mundial tem se manifestado no acirramento da concorrência interimperialista e do militarismo; no aumento do desemprego, da miséria e da violência estatal contra a classe trabalhadora e o povo pobre; nos ataques aos direitos trabalhistas, previdenciários e sociais das maiorias oprimidas; na acumulação e na concentração cada vez mais gritante da riqueza nas mãos de um punhado de monopólios e na formação e potencialização de grupos neofascistas com variadas vertentes e interlocuções.
Ao mesmo tempo, conforme se aprofunda, essa crise tem sido o palco da reemergência do movimento comunista e das ideias revolucionárias, uma vez que a ofensiva global da burguesia contra o proletariado e as crises esporádicas dos governos de conciliação de classes põem à luz as contradições e limites dos projetos reformistas e social-liberais.
No caso brasileiro, o enraizamento do golpismo reacionário abrange desde grandes setores do agronegócio, das finanças e da indústria, passando por lideranças religiosas, pelo crime organizado sob comando das milícias e por agentes de segurança pública, até diversos setores das forças armadas e da opinião pública burguesa (como grupos empresariais de comunicação e redes de produtores de conteúdo anticomunista fartamente financiadas).
A estreita margem de votos entre o primeiro e o segundo colocados nas eleições presidenciais expressam o quanto o país esteve polarizado no período pregresso, e que essa polarização continuará presente, sob uma nova forma, na luta entre o Governo e o Congresso, que conta com um número significativamente maior de congressistas reacionários do que na última legislatura. Nesse sentido, os primeiros quarenta dias do governo Lula-Alckmin nos apresentam um cenário denso em termos de acontecimentos políticos, revelando tendências e desdobramentos que poderão intensificar as contradições sociais e as lutas de classes no próximo período.
Logo após a vitória eleitoral de Lula-Alckmin no segundo turno, os atores políticos reacionários se articularam em uma cruzada golpista, que já vinha sendo tramada como plano B, caso a candidatura de Bolsonaro não fosse vitoriosa. Esse projeto golpista foi posto em movimento logo nos primeiros dias após a divulgação do resultado eleitoral, com ocupações de estradas em diversos estados brasileiros e a formação de acampamentos em frente a diversos quartéis do exército, agitando em favor de um golpe de Estado por meio de uma intervenção militar.
Além do teatro de “ações de massas” – marcadas pelo financiamento patronal a mercenários, como no caso do locaute de ruralistas e empresários do transporte em junho de 2022, que teve como figura pública o agitador neofascista Zé Trovão –, o movimento golpista ensaiou atos efetivamente terroristas pouco antes do final de 2022, com o intuito de criar o caos e possibilitar a decretação da “Garantia da Lei e da Ordem” (GLO), na esperança de assim suspender a posse de Lula. O exemplo mais emblemático desse processo foi a tentativa de explosão de um caminhão-tanque estacionado no aeroporto de Brasília, às vésperas do Natal.
O ápice da tentativa de desestabilização se deu no dia 08 de janeiro em Brasília, quando milhares de golpistas, contando com a conivência e prevaricação das autoridades locais, invadiram a Praça dos Três Poderes, produzindo uma onda de devastação e intimidação, que pretendia estimular manifestações golpistas em outras regiões do país e uma eventual intervenção militar. Naquele momento ficaram expostas as evidentes relações econômicas, políticas e ideológicas que alimentaram os intentos golpistas e sua conexão com membros do Governo Bolsonaro, do agronegócio e das forças policiais e militares.
Até aqui as investigações trouxeram à tona uma extensa lista de financiadores e articuladores que vão desde empresas de transporte e ruralistas a clubes de tiro, lideranças religiosas e militares da reserva. No entanto, essa aventura golpista carecia ainda de respaldo consistente no conjunto da burguesia nacional e estrangeira, como foi evidenciado nos dias seguintes pelos posicionamentos condenatórios quase unívocos dos veículos da imprensa comercial e das associações de classes dos empresários de diversos ramos.
Isso não significa que o fascismo e o golpismo sejam alternativas descartadas pela burguesia. Significa apenas que, neste momento, cumprem um papel imediatamente mais útil como força de pressão sobre o governo de conciliação de classes, mantendo-o cada vez mais refém da maioria parlamentar burguesa, como as recentes eleições da presidência do Senado e da Câmara evidenciam com nitidez. Apenas a luta de massas pode – por meio da pressão pela punição dos fascistas e pelo combate à sua influência ideológica sobre o povo trabalhador – isolar as forças reacionárias e dificultar seu amadurecimento em uma alternativa viável para a burguesia brasileira.
O motivo desse “voto de confiança” instável da burguesia brasileira ao governo Lula-Alckmin não é nenhum mistério. Nessas primeiras semanas de governo, ficaram evidenciadas as tentativas de reeditar um novo “pacto social”, com a participação de diversos setores da sociedade, abrangendo pautas e reivindicações sociais tais como a defesa das terras indígenas e quilombolas, o fortalecimento da agricultura familiar e a retomada de projetos sociais; ao mesmo tempo em que mantém a obediência estrita aos interesses dos grandes capitalistas nas pautas econômicas e administrativas, negando a revogação das contrarreformas trabalhista, previdenciária e educacional e reiterando o compromisso com a reforma administrativa e a política fiscal.
No último caso, especialmente, a dupla Haddad-Tebet tem se apresentado à burguesia como os guardiões governamentais da chamada “austeridade fiscal”. Dois exemplos emblemáticos, por terem sido promessas de campanha amplamente difundidas, são o aumento do salário-mínimo e a revisão da tabela do imposto de renda para isentar quem ganha até R $5.000. Em ambos os casos, com desculpas puramente burocráticas (que não se sustentam sequer de um ponto de vista estritamente jurídico), a dupla econômica do governo Lula-Alckmin protela o cumprimento das promessas. No caso do salário-mínimo, Haddad recusa um aumento imediato de míseros R $18, adiando supostamente para 1º de Maio a edição de uma Medida Provisória que reajuste o mínimo para os prometidos R $1.320. Até lá, 57 milhões trabalhadores e aposentados ficam a ver navios, enquanto suas dívidas crescem e seu poder de compra se deteriora.
Além disso, na figura do ministro-chefe da Casa Civil, o petista Rui Costa, o governo já anunciou um “Programa de Parcerias de Investimentos” (na prática: privatizações) voltado ao setor dos transportes. Em entrevista ao Valor Econômico, o ministro foi categórico: “Na transição, a gente poderia ter suspendido o leilão do metrô de Belo Horizonte, mas a posição do presidente foi de manter o leilão”. Assim, o governo costura um pacto de não-agressão com o reacionário governador de Minas Gerais, Romeu Zema. O mesmo movimento vem sendo ensaiado para o caso do bolsonarista Tarcísio de Freitas, à frente do governo de São Paulo, que já obteve sinalizações positivas do governo federal para o projeto de privatização do Porto de Santos, o maior da América Latina. Há que mencionar ainda os acenos e compromissos com o “mercado” que se materializam na indicação dos cargos do primeiro e segundo escalão nos Ministérios e na chefia de empresas importantes e estratégicas, como é o caso da Petrobrás, Furnas e Banco do Brasil.
Entre as múltiplas contradições em curso, sabemos que as principais se darão no campo da política econômica. Ao contrário do que ocorreu no primeiro governo Lula, a partir de 2003, o cenário econômico e político, tanto em nível internacional quanto nacional, é mais crítico, e a crise do capital produzirá tensões para que muitas das pautas sociais sucumbam à pressão burguesa pela apropriação do orçamento público e aos compromissos com o sistema da dívida pública. Tais contradições econômicas não se restringem aos ministérios ditos econômicos, conforme se vê com as indicações de diversos quadros ligados às organizações empresariais no Ministério da Educação. Vale lembrar que os primeiros governos petistas ajudaram no processo de concentração dos capitais desse setor, incubando alguns dos maiores monopólios financeiros do ramo em todo o mundo.
O governo Bolsonaro-Mourão deixou um cenário de terra arrasada em diversas áreas. Isso permite, por um lado, que o governo Lula-Alckmin sinalize um movimento de melhora, mesmo fazendo efetivamente muito pouco. Sabemos que a ampliação do orçamento para 2023, votada pelo Congresso cessante, será ainda muito limitada para produzir efeitos imediatos que possam promover mudanças significativas na economia, de modo a gerar empregos e distribuir renda, como prometido durante a campanha.
Cabe ainda ressaltar outro fator que faz parte da lógica de “Frente Ampla” e “pacto social” entre trabalhadores e empresários: muitas entidades e setores importantes dos movimentos sociais têm sido chamados a participar da “reconstrução nacional”. A cota dessa participação será cobrada na tentativa de rebaixar os horizontes das reivindicações e das lutas da classe trabalhadora, de modo a atenuar a pressão sobre o governo. A pretexto da luta antifascista contra o golpismo, setores reformistas do movimento popular buscam direcionar as manifestações apenas para as bandeiras mais abstratas da defesa da democracia, mantendo assim em compasso de espera o movimento de massas que votou na candidatura Lula com a perspectiva de mudanças radicais e imediatas para combater e superar o grau de miserabilidade social.
O cenário atual exigirá dos comunistas um esforço redobrado na luta ideológica, a fim de preservar e fortalecer a independência de classe do proletariado em sua luta cotidiana. É preciso abordar de modo particularmente minucioso, perseverante e paciente os limites do projeto de conciliação de classes e a atualidade da estratégia socialista revolucionária – inclusive no que diz respeito a um combate classista e consequente ao golpismo.
Devemos agitar amplamente a palavra de ordem “Sem anistia”, em favor da condenação de Bolsonaro, Mourão e todos seus cúmplices. A revelação dos gastos de Bolsonaro e seus consortes com cartões corporativos expressa o desdém desse bando genocida com a miséria e a fome do povo, além do envolvimento nos esquemas de corrupção e financiamento das manifestações golpistas país afora. Soma-se a isso o crime de genocídio perpetrado contra os povos indígenas, em especial os Yanomami, associado à cumplicidade com os garimpeiros que agem ilegalmente em terras indígenas. Tudo sob a anuência e, em alguns casos, até mesmo apoio logístico das autoridades civis e militares!
Bolsonaro segue foragido, sem foro privilegiado, com visto de turista nos EUA, receoso de ter sua prisão decretada em decorrência dos inúmeros crimes cometidos. A cereja do bolo é a descoberta de uma carta detalhando o “passo a passo” do golpe de Estado que deveria ter sido desfechado logo após o resultado do pleito presidencial. Todas as denúncias, além dos processos pelos crimes cometidos durante o auge da pandemia de Covid-19, seguem no Judiciário e devem ser amplamente divulgados, de modo a desmascarar os bolsonaristas e militaristas que o apoiam.
O PCB considera que a vitória eleitoral de Lula cumpriu um importante papel, suspendendo o avanço institucional da extrema-direita brasileira e seu projeto fascistizante. Essa mudança significa uma alteração importante na correlação de forças no interior da luta de classes. Por isso mesmo, acreditamos que é hora de reforçar a mobilização e a organização da classe trabalhadora e do povo oprimido, e não apenas deixar nas mãos do governo um cheque em branco. O cenário atual permite um espaço mais amplo para nossa agitação e propaganda contra o capitalismo e os limites da democracia burguesa, colocando no primeiro plano a necessidade de superar as ilusões e as armadilhas da conciliação de classes – evidenciadas, entre outros aspectos, no embate entre os anseios e necessidades históricas da classe trabalhadora e os interesses do “mercado”.
A luta contra o neofascismo e contra o golpismo não pode ser pretexto para que os movimentos sociais arrefeçam as críticas à política de conciliação de classes; muito menos pode promover a desmobilização das lutas em torno das pautas sociais mais candentes, de modo a meramente instrumentalizar a suposta “defesa das conquistas democráticas”. A bandeira da democracia não pode ser um fim em si mesmo. Ao contrário: é apenas pondo em prática a mais radical democracia, desde as bases da sociedade, por meio da mais ampla luta de classes, que será possível pôr um freio à marcha fascistizante, bem como assegurar as conquistas sociais e democráticas obtidas às custas de tanto sangue pelo proletariado e pelo povo oprimido.
É preciso diferenciar a perspectiva proletária do combate ao golpismo das perspectivas burguesas – que, na verdade, buscarão no reforço da repressão estatal e da criminalização da luta social a solução para a crescente instabilidade política nacional. Por mais que os golpistas possam lançar mão, em diversas ocasiões, de métodos efetivamente terroristas (existem muitos exemplos, desde os históricos, como o atentado do Riocentro, até os recentes, como no caso já mencionado, da véspera do Natal de 2022), é bastante preocupante o movimento existente no judiciário e nas instituições estatais burguesas de caracterizar de modo genérico como terrorismo ações como bloqueios de rodovias e ocupações de prédios públicos. Se tais interpretações se consolidarem, não tardará para que todo movimento de massas urbano ou rural possa ser enquadrado como “terrorista”, pois sabemos quais são as vítimas preferenciais da coerção estatal: sempre o povo trabalhador. Devemos armar ideologicamente a luta antifascista também contra esse risco, evitando atalhos moralistas na agitação política que possam se voltar, mais tarde, contra o movimento popular.
O PCB, portanto, mantém-se firme em sua luta revolucionária contra o neoliberalismo e o modo de produção capitalista, entendendo que o combate à extrema-direita e seus intentos golpistas deve estar combinada necessariamente à luta em defesa de pautas sociais que possam superar esse cenário de miséria, desemprego, opressão e violência contra do povo trabalhador e avançar na superação desse modelo de sociedade, rumo à reorganização socialista da sociedade.
Manteremos nossa luta em torno das reivindicações programáticas aprovadas nas resoluções do XVI Congresso do PCB e divulgadas na campanha eleitoral, como a redução da jornada de trabalho para 30 horas semanais sem redução de salário; a revogação de todas as contrarreformas de Temer-Bolsonaro (trabalhista, previdenciária, do ensino médio, a autonomia do Banco Central etc), da Lei de Responsabilidade Fiscal e da Emenda Constitucional do Teto de Gastos. Seguiremos atuando para fortalecer a unidade de ação com as forças de esquerda e os movimentos que lutam por demandas populares imediatas, pela anulação das privatizações de empresas estratégicas como a Eletrobrás (comprada de modo fraudulento pelos mesmos donos da agora falida Americanas, cujo caso permite desmascarar todo parasitismo do capitalismo contemporâneo) e em defesa da Petrobrás 100% estatal.
O momento exige muito mais empenho na luta ideológica e no nosso processo de formação e organização, para que possamos contribuir de forma decisiva no processo de reorganização da classe trabalhadora, travando com independência de classe a luta contra o neofascismo golpista, contra a política de conciliação de classes e as ilusões que ela produz no seio do proletariado.
Pela revogação de todas as contrarreformas!
Sem anistia para os golpistas civis e militares!
Reorganizar a classe trabalhadora e fortalecer a independência política do proletariado!
Pelo Poder Popular e o socialismo!
Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro.
Fevereiro de 2023.