A guerra de Israel contra a Palestina e a revolta mundial

Por Vijay Prashad – Jornalista comunista indiano.

Nenhuma tentativa das empresas de redes sociais de virar o algoritmo contra os palestinos foi bem sucedida, nenhuma tentativa de proibir os protestos – nem mesmo a proibição da exibição da bandeira palestina – funcionou.

Centenas de milhões de pessoas em todo o mundo ficaram profundamente comovidas com as atrocidades da guerra israelense contra a Palestina. Milhões de pessoas participaram de marchas e protestos, muitas delas envolvendo-se em tais manifestações pela primeira vez nas suas vidas. As redes sociais, em quase todas as línguas do mundo, estão saturadas de memes e posts sobre esta ou aquela ação terrível.

Algumas pessoas concentram-se no ataque israelense às crianças palestinas, outras no ataque ilegal às infraestruturas de saúde de Gaza, e outras ainda apontam para a aniquilação de pelo menos quatrocentas famílias (mais de dez pessoas mortas em cada família). O foco de atenção não parece estar diminuindo. As férias de dezembro passaram, mas a intensidade dos protestos e das mensagens manteve-se constante. Nenhuma tentativa das empresas de redes sociais de virar o algoritmo contra os palestinos foi bem sucedida, nenhuma tentativa de proibir os protestos – nem mesmo a proibição da exibição da bandeira palestina – funcionou. As acusações de antissemitismo caíram por terra e as exigências de condenação do Hamas foram rejeitadas. Este é um novo estado de espírito, um novo tipo de atitude em relação à luta palestina.

Nunca antes, nos últimos 75 anos, houve uma atenção tão constante à causa dos palestinos e à brutalidade israelense. Desde 2006, Israel lançou oito campanhas de bombardeios contra Gaza. E Israel construiu toda uma estrutura ilegal contra os palestinos em Jerusalém Oriental e na Cisjordânia (um muro de apartheid, assentamentos, postos de controle). Quando os palestinos tentaram resistir – seja através de ações cívicas ou da luta armada – enfrentaram imensa violência por parte dos militares israelenses. Desde que as redes sociais passaram a existir, imagens do que ocorre na Palestina têm circulado, incluindo a utilização de fósforo branco contra civis em Gaza, a detenção e o assassinato de crianças palestinas em todo o Território Ocupado da Palestina. Mas nenhum dos anteriores atos de violência evocou o tipo de resposta de todo o mundo como esta onda de violência que começou em outubro de 2023.

Genocídio
A violência armada de Israel contra Gaza desde outubro tem assumido uma forma qualitativamente diferente de qualquer violência anterior. O bombardeio de Gaza foi cruel, com aviões israelenses atingindo áreas residenciais sem qualquer preocupação com a vida dos civis. O número de mortos aumentou dia a dia a um ritmo nunca antes visto. Depois, quando as forças terrestres israelenses entraram em Gaza, realizaram uma expulsão ilegal em massa dos civis palestinos das suas casas e empurraram-nos cada vez mais para sul, em direção à fronteira com o Egito. Os israelenses violaram as suas próprias promessas de «zonas seguras», atingindo áreas mais densamente povoadas do que antes, devido ao deslocamento interno.

Foi esta escala de violência que provocou a utilização precoce do termo «genocídio» para descrever o que estava acontecendo em Gaza. No início de janeiro, mais de 1% de toda a população palestina em Gaza tinha sido morta, enquanto mais de 95% tinha sido deslocada. O tipo de violência utilizado neste caso não foi visto em nenhuma guerra contemporânea, nem no Iraque (onde os EUA desrespeitaram a maioria das leis de guerra), nem na Ucrânia (onde o número de civis mortos é muito menor, apesar de a guerra já durar dois anos).

O ritmo dos protestos de massa levou o governo da África do Sul a apresentar uma disputa na Corte Internacional de Justiça (CIJ) contra Israel pelo crime de genocídio. Ambos os países são signatários da Convenção contra o Genocídio de 1948 e a CIJ é a instância competente para a solução de controvérsias. O processo de 84 páginas apresentado pelo governo sul-africano documenta muitas das atrocidades perpetradas por Israel e também, o que é crucial, as palavras de altos funcionários israelenses. Nove páginas deste texto (pp. 59 a 67) listam as autoridades isralelenses nas suas próprias palavras, muitos deles apelando a uma «Segunda Nakba» ou a uma «Nakba contra Gaza», um uso do termo «Nakba» ou Catástrofe que se refere à Nakba de 1948, a expulsão dos palestinos das suas casas, que levou à criação do Estado de Israel.

São palavras assustadoras, e têm sido amplamente utilizadas desde outubro. O linguajar racista sobre «monstros», «animais» e a «selva» marca os discursos e as declarações destas autoridades do governo israelense. O ministro da Defesa de Israel, Yoav Gallant, disse em 9 de outubro de 2023 que as suas forças estão «impondo um cerco completo a Gaza. Sem eletricidade, sem comida, sem água, sem combustível. Tudo está fechado. Estamos combatendo animais humanos e estamos agindo de acordo». Isto, em conjunto com o caráter dos ataques militares israelenses, é suficiente como referência para a acusação de genocídio. Na audiência na CIJ, Israel não conseguiu responder de forma credível à queixa da África do Sul.

Foi uma combinação das imagens de Gaza e das palavras destes altos funcionários israelenses – com total apoio do governo dos Estados Unidos e de muitos governos de países europeus – que provocou a raiva e a desesperança que impulsionaram estes protestos em massa.

Legitimidade
Ao longo dos últimos dois anos – desde o início da guerra na Ucrânia até agora – houve um rápido declínio da legitimidade do Ocidente, especialmente dos países da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte), liderados pelos Estados Unidos. Essas guerras não são a causa desta queda de legitimidade, mas aceleraram o declínio da legitimidade dos países da OTAN, particularmente no Sul Global.

Desde o início da Terceira Grande Depressão, em 2007, o Norte Global tem perdido lentamente o seu domínio sobre a economia mundial, sobre a tecnologia e a ciência e sobre as matérias-primas. Os bilionários do Norte Global aprofundaram a sua «greve fiscal» e transferiram uma grande parte da riqueza social para paraísos fiscais e para investimentos financeiros improdutivos. Isso deixou o Norte Global com poucos instrumentos para manter o poder econômico, incluindo para investimentos no Sul Global. Esse papel foi lentamente assumido pela China, que vem reciclando os lucros globais em projetos de infraestrutura em todo o mundo. Em vez de contestar a Iniciativa «Cinturão e Rota» da China, por exemplo, através do seu próprio projeto comercial e econômico, o Norte Global procurou militarizar a sua resposta com gastos maciços (três quartos dos gastos militares globais são dos Estados da OTAN). O Norte Global utilizou a Ucrânia e Taiwan como alavancas para provocar a Rússia e a China em conflitos militares, de modo a «enfraquecê-las», em vez de contestar o crescente poder energético russo e o poder industrial e tecnológico chinês através do comércio e do desenvolvimento.

É evidente para a maioria das pessoas no mundo que foi o Norte Global que não conseguiu resolver as crises no planeta, quer se trate da crise climática ou das consequências da Terceira Grande Depressão. O Norte Global tentou substituir a realidade por uma linguagem eufemística, utilizando termos como «promoção da democracia», «desenvolvimento sustentável», «pausa humanitária» e – do ministro dos Negócios Estrangeiros do Reino Unido, Lord David Cameron, e da ministra dos Negócios Estrangeiros da Alemanha, Annalena Baerbock – a ridícula formulação de um «cessar-fogo sustentável»

Palavras vazias não substituem ações reais. Falar de um «cessar-fogo sustentável» enquanto se arma Israel ou falar de «promoção da democracia» enquanto se apoiam governos antidemocráticos define agora a hipocrisia da classe política do Norte Global.

Os israelenses dizem que continuarão essa guerra genocida durante o tempo que for necessário. A cada dia que passa desta guerra, a legitimidade de Israel deteriora-se. Mas por trás dessa violência há o fim muito mais profundo de manter a legitimidade do projeto da OTAN, cuja hipocrisia ecoa como a de pregos sendo arrastados contra um ensanguentado quadro negro.