Zapatismo, conciliação e neofascismo

Por Leonardo Silva Andrada

O neoliberalismo nasceu como tática do capital para a contraofensiva que deveria superar a crise do final da década de 1960. A sua era de ouro do pós-guerra rendeu os Cadillacs, tv’s espalhadas pela casa, baldes de frango frito e coca-cola pra assistir a produção triunfalista de Hollywood, no centro do Império. A engenharia financeira de Bretton Woods, para garantir que o resto do mundo sustentasse esse padrão de vida, impulsionou dinâmicas locais nas potências de segundo escalão, que constituíram a órbita necessária para que o circuito do capital cumprisse sua função de reciclagem em Wall Street. Cumprindo essa rota, financiava a economia deficitária norte-americana, seu consumo predatório em massa e o militarismo em larga escala, garantia do controle de metade do globo, financiando os grandes grupos do complexo industrial militar.

Na periferia, promoveu “modernizações” com traços próprios, muitas delas de caráter autocrático conservador, para garantir que regimes concentradores não sofressem indesejáveis intervenções democráticas de forças populares organizadas. Na versão brasileira, os desenvolvimentos dessa lógica nos proporcionaram o golpe de 64 e a ditadura burgo-militar, que deveria tratar de estrangular a florescência de nossas próprias reações dialéticas à modernização acelerada por substituição de importações. Sob o guarda-chuva ideológico do nacionalismo, comunistas, trabalhistas, católicos de esquerda organizavam bases populares para a Revolução Brasileira que realizaria a tarefa histórica que nossa morosa revolução burguesa insistia em adiar: a verdadeira independência e a verdadeira democracia, querendo dizer ruptura com o imperialismo e inclusão política das classes populares.

A burguesia precisava derrotar esse ator político para se desfazer do Estado nacional desenvolvimentista que a tinha anabolizado. Com o golpe e o regime subsequente, vimos os estertores dessa vitalidade política social. Tivemos nossas versões de movimentos que pretendiam radicalidade, quando expressavam leituras equivocadas da conjuntura e da própria estrutura de ação política; mas também tivemos a preservação da linha de construção do movimento de massas. E igualmente tivemos nossa manifestação regional de contracultura, cuja expressão mais marcante foi a Tropicália. A hegemonia da linha dura encaminhou, como tratamento para esse último suspiro, o recrudescimento da repressão, a censura e o arbítrio, através do AI-5. Aniquilou os grupos de caráter político, sufocou a expressão artística, neutralizada ao ser incorporada à sociedade de consumo via indústria cultural.

Uma tática para a neutralização ideológica da memória desse período foi a cristalização das imagens do mítico ano de 68, em seus aspectos mais espetacularizados. A contracultura, por um lado, e por outro, a rebelião estudantil em sua versão francesa (é relevante lembrar que o 68 estudantil no Brasil e no México, entre tantos outros, teve outro caráter), no que ela tinha de mais inovador: os aspectos performáticos, emotivos e individuais. Foi o prenúncio do pós-modernismo, que seria seu rebento teoricamente mais bem acabado.

A resposta burguesa entra em cena na década seguinte e se dissemina pelo mundo durante os anos 1980, mas nesta década a América Latina ainda precisava reorganizar a sua estrutura institucional. O Estado criado para gerenciar as ditaduras que executaram a modernização de forma acelerada, conservadora e violenta, sufocando a resistência popular, não era compatível com as necessidades do capital financeiro para o papel a ser cumprido pela periferia, particularmente nos gerentes regionais, como no caso brasileiro. O processo, mais uma vez, dá mostras de como opera a dialética histórica do modo de produção capitalista.

As formas de rearticulação do interesse popular, após a derrota acachapante que significaram o golpe, a ditadura e a repressão subsequente, sustentaram uma dinâmica política que deteve o experimento neoliberal até Fernando Henrique Cardoso. Daí em diante, sua hegemonia não foi mais deslocada; em alguns momentos, foi amortecida, em virtude, outra vez mais, da dialética da história, que teima em apresentar respostas populares às tentativas burguesas de naturalizar e pacificar sua dominação. Se a via institucional de canalizar essa expressão, através do PT, é incorporada à ordem e se contenta com a gerência do capitalismo em crise, explorando brechas para incorporar os trabalhadores ao mercado de consumo, esse é um problema político a que pretendemos chegar mais adiante.

Nas economias centrais, a disseminação do capitalismo financeiro, em um diversificado processo que se embalou sob o rótulo de “neoliberalismo”, avançou sem maiores obstruções, contando com a louvação “glorificante” da propaganda ideológica do fim da história. O desmantelamento da URSS e das experiências socialistas associadas não apenas foi referência a essa apologia de que não há alternativa, mas também impactou decisivamente no pólo das lutas populares. Um número expressivo de quadros e organizações levou essa derrota conjuntural a extremos de reinterpretação de toda forma de referencial, seja teórica, seja de concepções de atuação política, de estrutura organizacional, de propostas de sociedade futura, de formas de dar encaminhamento às questões centrais – a rigor, a própria noção de centralidade e de organização coletiva foram postas à prova.

A década de 1990, ao mesmo tempo em que testemunha a marcha inapelável da institucionalização e desenvolvimento do neoliberalismo, serve de palco para as tentativas de rearticulação da luta popular sob novas bases. Uma expressão da novidade, ainda muito tributária das experiências do século XX, é o movimento zapatista, no sul do México. Paralelamente, herdeiros da contracultura dos 60, tratando de representar a contestação vanguardista, agora se valendo de mais de duas décadas de aprofundamento teórico e prático do pós-modernismo gerido em 68, raiam no horizonte do século XXI sob a forma da Geração Seattle.

É sintomático que o encontro dessas variadas vertentes das tentativas de reorganização da luta nos 90 tenha buscado uma síntese para um outro mundo possível na América Latina, mais precisamente em Porto Alegre, no I Fórum Social Mundial de 2001. Da maré montante para os movimentos populares no período, emerge a força eleitoral que resulta na onda rosa da primeira década deste século. Foram governos que se elegeram com plataformas de centro-esquerda, mais ou menos moderadas a depender da trajetória histórica do movimento popular e da estrutura da luta de classes em cada país. Ao final dessas experiências, a incorporação à ordem, administrando o capitalismo em crise, não se apresentou como a alternativa que atenderia aos interesses populares. Há algum tempo, a desesperança, a frustração, o ressentimento têm buscado nas expressões do neofascismo a tábua de salvação, em um mundo que se apresenta cada vez mais condenado.

Acabamos de superar o bolsonarismo por muito pouco, o que deixa no ar o temor de que, se a sua ignorância olímpica não o tivesse impedido de atuar de forma menos irresponsável na pandemia, provavelmente o agitador neofascista seria reeleito. A Argentina elegeu Javier Milei, que em menos de três semanas, editou quase 1000 normativas, contando com o beneplácito da imprensa corporativa e a disposição da classe trabalhadora de não aceitar passivamente ser submetida a um feudalismo financeiro, ainda que submetida a uma repressão desmedida. Se o presidente da república que se aconselha com espíritos de cachorros aglutinar força política o suficiente para garantir a implementação de seu projeto, podemos estar testemunhando o nascimento da nova tática de exercício da dominação pelas frações financeiras. Trata-se de um Estado neofascista mais abertamente ditatorial, como caminho para o aprofundamento do modelo neoliberal nos espaços inacessíveis com a vigência da democracia burguesa construída na segunda metade do século passado.

Outro ícone do neofascismo que viceja pelo mundo há mais de uma década, Devendra Modi suspendeu 140 parlamentares de oposição no final de 2023, atestando o caráter da versão indiana desse processo. Antes que se completassem 30 dias desses movimentos da ofensiva reacionária do capital, ainda em dezembro desse mesmo ano, o Exército Zapatista de Libertação Nacional anunciou a dissolução do modelo de municípios autônomos, forma organizativa de sua resistência ao Estado mexicano. A vizinhança com a Guatemala expõe os zapatistas ao avanço das máfias que entrelaçam narcotráfico e controle institucional, conquistando força o suficiente para se impor a um movimento que já não tem mais o vigor necessário para se garantir, como foi em seu auge.

O ascenso de formas ainda mais brutas de exercício da dominação da fração financeira, através de regimes neofascistas truculentos, concomitante à desarticulação das forças de contestação, deve ser tratado com a gravidade que o tópico exige. As vitórias eleitorais de chapas de conciliação nacional devem ser corretamente creditadas ao movimento de massas, mas sem que se perca do horizonte suas apertadas limitações. Essas pequenas conquistas circunscritas não garantem a dissipação da ameaça de retorno do neofascismo. Do que apresentam esses governos na América Latina em anos recentes, não garantem nem mesmo a preponderância das forças populares na coalizão que os sustenta. Por um lado, a hegemonia burguesa é construída institucionalmente com lawfare, golpes parlamentares, uso massivo do poder econômico para campanhas ideológicas modernas e recurso aos novíssimos canais de comunicação, importantes ferramentas para construir maiorias eleitorais; por outro, o apelo da propaganda de extrema direita oferece a falsa ruptura com um sistema que não atende as demandas subalternas.

É preciso dar à classe trabalhadora a proposta revolucionária que efetivamente atende seus interesses. A assimilação de governos de centro esquerda, eleitos a partir da expectativa de real transformação, mas executando uma política de conciliação incapaz de contornar a submissão do pólo dominado é fonte da frustração e combustível do ressentimento que se traduz em voto neofascista. A insistência na subordinação dos interesses populares a uma política de austeridade, que penaliza a classe trabalhadora financiando os grandes grupos do capital, fragiliza o governo Lula muito mais do que as críticas que seus defensores não admitem que sejam feitas. Não há propaganda que resista ao confronto com uma realidade em que este governo realiza a conciliação com setores retrógrados, para a execução de uma plataforma de austeridade, incluindo cortes no orçamento para serviços públicos, reforma administrativa e uma pequena coleção de políticas que favorecem o interesse privatista. A vitória apertada de chapas de frente ampla não deve ofuscar a ameaça de retorno neofascista, ainda muito viva. E é preciso ter claro que as eleições de Bolsonaro, Milei e demais figuras tétricas com programas de extrema direita manifestam descrença e rancor.

A frustração das esperanças depositadas em chapas de centro-esquerda cada vez mais assimiladas e pasteurizadas alimenta esse rancor. Sem oferecer à classe trabalhadora uma alternativa clara de ruptura e superação de um padrão que não atende minimamente a seus interesses, o risco de derrota eleitoral é enorme. Ainda que este cenário não se confirme, sem uma base social muito ampla e sólida, lawfare e golpes parlamentares têm sido recorrentes no continente. E essa opção tem que ser tomada logo, pois o trabalho político leva tempo. O pessimismo da razão indica que o ocaso da experiência zapatista e a assimilação plena da centro-esquerda sinalizam o esgotamento das respostas ao neoliberalismo gestadas a partir de meados da década de 90; o otimismo da vontade nos impele à rearticulação das lutas, para seguir resistindo e defendendo uma outra ordenação social.

As lições da história só podem ser apreendidas se delas extrairmos sínteses, e é nesse sentido que se torna relevante interpretar o significado do esgotamento das respostas gestadas nos últimos anos como formas de organizar a luta popular. Uma das possibilidades é que o ímpeto “novidadeiro”, sempre muito forte em períodos de crise, ceda o passo para a inspiração em formas organizativas que já comprovaram sua capacidade para articular a luta popular de forma vitoriosa. Evidentemente, não uma réplica cimentada de expressões passadas, mas adaptada ao momento presente da luta de classes.