Para atacar Venezuela, jornalões usam ONG estadunidense como fonte única
Os jornalões brasileiros cobrem de forma absolutamente seletiva os acontecimentos internacionais. E não é uma seleção baseada em critérios jornalísticos, mas em critérios político-ideológicos. A Venezuela é sempre retratada como um país violento, corrupto e sem democracia, o mesmo se podendo falar sobre o Equador e a Bolívia, países também governados por presidentes progressistas. Sobre a Argentina, Cristina Kirchner é retratada como maluca, dependente politicamente do legado de Nestor, e pouco afeita à liberdade de expressão. Sobre Cuba pouco se fala, e quando o país é referido é através das mesmas fontes de sempre, de independência duvidosa e vinculadas aos opositores que adorariam que o país voltasse a ser espaço de lazer dos ricaços estadunidenses. Quando a Colômbia, por exemplo, está em voga, o tema é sempre o narcotráfico e a violência dos grupos armados, evitando-se referência ao terrorismo de Estado patrocinado pelos últimos governos ligados a Washington.
Foi pauta nesta terça-feira um relatório da ONG Human Rights Watch (HRW) a respeito da Venezuela. Como em relatórios anteriores em relação àquele país, o HRW afirma uma suposta falta de respeito à democracia e às instituições por parte do Executivo, e critica ações que, segundo o relatório, restringiram a liberdade de expressão no país – citam, novamente, a questão da RCTV, emissora de TV que foi peça fundamental do golpe de Estado sofrido por Chávez em 2002 e que não teve sua concessão renovada.
O Globo, Folha de S. Paulo e Estadão estamparam nas capas de seus sites as seguintes manchetes, respectivamente: “ONG denuncia abusos de poder cometidos no governo de Chávez”, “Chávez censura juízes e imprensa para conter oposição, diz ONG” e “Situação de direitos humanos na Venezuela está mais precária, diz ONG”. E “diz ONG” poderia ser o título único, já que nenhuma outra fonte é consultada. São 6547 caracteres de texto na matéria de O Globo, 5477 na Folha e 6202 no texto do Estadão, totalizando 18226 caracteres. E em tudo isso, não há sequer uma entrevista, uma fonte que não seja a própria organização que produziu o relatório. Mais: as matérias de Estadão e Folha foram enviadas por correspondentes em Washington. A de O Globo é matéria sem assinatura. Ninguém ali esteve na Venezuela.
É o ruim e velho jornalismo declaratório, que Perseu Abramo incluiu em um de seus genialmente formulados “padrões de manipulação da grande mídia”, o “padrão de inversão”, com a substituição do fato pela versão – no caso, a versão da HRW é a única que importa, o fato em si é absolutamente ignorado pela abismal distância física e mesmo dialógica entre os jornais (e seus “repórteres”, com muitas aspas) e a realidade venezuelana.
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Mas ainda resta um ponto a ser destacado. Em nenhum momento qualquer dos três jornais coloca em questão os interesses envolvidos na divulgação de um relatório como esse – especialmente às vésperas de uma eleição presidencial. A palavra da HRW é tomada como o próprio fato, como já escrevemos acima, o que significa também que sua imparcialidade e neutralidade quer ser apresentada aos leitores como óbvia. Na verdade, não é tão óbvia assim. Não há imparcialidade ou neutralidade. Todas as organizações, governamentais ou não, de quaisquer setores sociais, atuam com vistas a determinados interesses, nobres ou não, e de forma transparente ou não. Com a Human Rights Watch não é diferente.
Os ataques ao legítimo governo venezuelano se sucedem, assim como se sucedem os ataques ao governo cubano, por exemplo, na mesma linha dos setores entreguistas oligárquicos de toda a América Latina, ligados ideologicamente – ou mais – aos interesses estadunidenses na região. A HRW é sediada nos EUA, o que não anula sua legitimidade. Mas vejamos o que mais está envolvido, segundo trecho do excelente artigo do site Links:
A quem representa a Human Rights Watch?
(tradução: Bruna Andrade e Alexandre Haubrich)
A resposta à última pergunta é um pouco mais difícil que no caso de outras organizações como a National Endowment for Democracy (NED), estabelecida pelo governo dos Estados Unidos, ou mesmo o Repórteres Sem Fronteiras (RSF), com sede na França e financiada pelo Departamento de Estado dos EUA em algumas de suas campanhas contra Cuba. À maneira dos “jornalistas aliados” que viajam com as tropas dos EUA em todo o mundo, a NED e o RSF podem ser considerados “vigilantes aliados” que contribuem para legitimar ou deslegitimar determinados governos em função da política dos Estados Unidos da América.
A Human Rights Watch, no entanto, não é financiada pelo governo dos EUA, mas obtém a maior parte de seus fundos de uma série de fundações estadunidenses, por sua vez, financiadas por muitas das maiores corporações deste país. Estas fundações, privadas e endinheiradas, costumam vincular suas contribuições a projetos específicos. Assim, por exemplo, os relatórios da HRW sobre o Oriente Próximo, muitas vezes, se baseiam em informações de fundações pró-Israel e recebem financiamento das mesmas. Outros grupos, pedem um enfoque sobre os direitos das mulheres ou o HIV. Mais de 90% dos 100 milhões de dólares do orçamento da HRW para 2009 foi conseguido dessa maneira. Em outras palavras, HRW oferece uma seleção de assuntos vendidos e realizados nos EUA que servem aos interesses dos ricos.
A coordenação de todos estes interesses se ilustra, com toda claridade, por meio do novo presidente da HRW, James F. Hoge Jr., editor e jornalista, redator-chefe da publicação Foreign Affairs, de 1992 a 2009, e membro notável do patrocinador damesma, o Council on Foreign Relations (CFR), localizado em Nova York. O CFR, considerado como o mais influente think tank (Usina de ideias) da política externa dos Estados Unidos, inclui grande parte da elite empresarial norte-americana (entre outros, os bancos e os meios de comunicação), assim como líderes do passado e do presente dos grandes partidos. Ex-secretários de Estado como Henry Kissinger e Condoleezza Rice, e o atual secretário de Defesa, Robert Gates, são membros do CFR.
O conselho diretivo da HRW está igualmente dominado pela elite corporativa dos EUA, como a bancária e os grandes meios de comunicação, e alguns acadêmicos, ainda que não por funcionários do governo. O conselho diretivo inclui o ex ministro de Assuntos Exteriores mexicano Jorge Castañeda (acadêmico que uma vez foi marxista, reconvertido em político de direita), enquanto o advogado de origem chilena José Miguel Vivanco é diretor da Divisão para as Américas da HRW.
Vivanco foi objeto de uma grande controvérsia na América Latina por causa de seus ataques contra Venezuela e Cuba. Se HRW às vezes parecia atuar com certa independência em relação à política exterior dos EUA, por exemplo quando apoiou a “guerra contra o terrorismo” mas criticou as operações estadunidenses no Iraque, este não foi o caso na América Latina, onde o grupo seguiu ao pé da letra a linha de Washington.
De todos os relatórios da Human Rights Watch sobre a América Latina nos últimos anos, os únicos governos a que se tem feito críticas sistemáticas são os da Venezuela e de Cuba. Outros relatórios, sobre Brasil, Honduras e México, tem tratado de questões muito mais concretas, como a violência da polícia, os direitos dos transexuais ou a Justiça Militar. Quando se trata da Colômbia, HRW publicou relatórios sobre o uso de minas terrestres e sobre as “máfias paramilitares”. Este último relatório citado reconhece que a Colômbia tem um nível de violência alto como “quase nenhum outro país no hemisfério ocidental”. Na realidade, a Colômbia está à frente de qualquer outro país latino americano em número de assassinatos de sindicalistas, jornalistas e advogados. Os militares colombianos e seus aliados das milícias da extrema direita foram responsáveis pela maior parte destes massacres e mesmo assim HRW culpa a guerrilha de esquerda e as milícias de direita igualmente, sem implicar o regime de Álvaro Uribe, o maior recebedor de ajuda estadunidense na América Latina.
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