A disputa pelos restos da Líbia: “A Líbia é a próxima Somália?”
A Líbia dá sinais de se estar a converter na próxima Somália, com grande parte do país já controlado por milícias armadas de clãs ou tribos. Tal como aconteceu na Somália, está em curso um processo de divisão com a criação a leste da Cirenaica, rica em petróleo, cuja proclamação de independência de facto já foi lançada.
Trípoli, a capital da Líbia, parece estar a converter-se no que foi Mogadishiu, capital da Somália há 20 anos, com incontáveis milícias de áreas das periferias urbanas, bem armadas, que se instalam nas cidades e se envolvem em infindáveis confrontos por território, disputando os restos de poder.
O único governo nacional real e modernizante que a Líbia jamais conheceu foi o governo de Kadhafi, assim como o único governo modernizante que houve na Somália foi o governo de Siad Barre.
Os dois países foram criados pelo colonialismo italiano e passaram a integrar o Império Colonial Italiano em África. Nenhum dos dois jamais teve qualquer unidade histórica. Antes do colonialismo italiano, a Líbia eram algumas cidades-estado e as tribos, a maioria das quais absolutamente nómadas.
Antes do colonialismo italiano, jamais existiu nem algum Rei da Somália nem alguma Terra da Somália governada por conselho tribal ou clânico, chefes ou conselhos de grandes chefes.
Nem num país nem no outro jamais se constituiu nação, antes exactamente o contrário. Mesmo assim, durante algum tempo, os dois países viveram bem – por difícil que seja acreditar nisso, no caso da Somália.
Em 2011, a Líbia foi destruída por bombardeio aéreo quase sem precedentes, com mais de 10 mil ataques aéreos, que despejaram sobre os líbios cerca de 40 mil bombas explosivas de alto poder de destruição, ao longo de cerca de oito meses. 40 mil bombas, matando cada uma duas pessoas em média e, só até aí, já seriam 80 mil líbios mortos pela OTAN em 2011. Numa população muito pequena, de cerca de 6 milhões.
A destruição que a OTAN provocou na Líbia equivale a cerca de 100 mil ataques aéreos sobre a Grã-Bretanha, com cerca de 400 mil bombas que matassem 800 mil britânicos em oito meses. É desse modo, afinal, que se pode fazer uma ideia realista da escala da desgraça que a OTAN levou à Líbia.
Hoje a Líbia exporta mais de 90% do nível de produção de petróleo e gás de antes da guerra, quase 2 milhões de barris/dia, de um dos melhores tipos de petróleo que existe no planeta. Para onde vão os quase US$ 200 milhões diários, US$ 6 milhões de milhões por mês, mais de US$ 70 milhões de milhões no final de 2012, permanece mistério quase absoluto.
O chefão da Al-Qaeda e dos rebeldes líbios que fez o serviço mais sujo depois do bombardeio pela OTAN é o muitas vezes infame Abdelhakim Belhadj, ex-comandante da Al-Qaeda no Iraque e capo da Al-Qaeda no Norte da África. Comanda hoje a maior, a mais bem organizada militarmente e a mais eficiente milícia que opera em Trípoli. Sob o seu comando operam milícias tribais de diferentes tamanhos e competências, entre as quais as milícias de Zintan que mantêm preso Saif al Islam Kadhafi.
Com relações de uma difícil paz com essas milícias está o Conselho Nacional de Transição chefiado, pelo menos em parte, por vários dos ex-comandantes de Kadhafi.
Eleições comandadas por um “governo” lá implantado pela OTAN não passam de um artifício para encobrir a ilegitimidade do actual regime, cujo único projecto de governo é receber os 70 milhões de milhões anuais da renda do petróleo e os dividendos dos $100 milhões de milhões do fundo soberano líbio depositado em bancos ocidentais.
No campo oposto, contra, ao mesmo tempo, Belhaj e o Conselho Nacional de Transição, está o que é conhecido como “Resistência Verde” que a imprensa-empresa ocidental chama de “militantes pró-Kadafi”. São grande parte da maior tribo que há na Líbia, os Warfalla, tribo da mãe de Saif al Islam, e deles se diz que, aos poucos, começam a organizar forças de autodefesa, para proteger as suas comunidades contra ataques de senhores-da-guerra e respectivas milícias.
Belhaj esteve preso na Líbia, onde foi torturado por gente que hoje circula entre os capi do Conselho Nacional de Transição, entregue a eles como prisioneiro, pela CIA-EUA, num dos programas pelos quais prisioneiros da CIA eram entregues a outros países para serem interrogados. A tortura de Belhaj só acabou quando Saif al Islam Kadhafi convenceu seu pai a perdoar Belhaj e seus chefes, em troca de uma promessa de coexistência pacífica que Belhaj imediatamente traiu.
O que se sabe é que Belhaj tem manifestado alguma benevolência em relação a Saif al Islam, o que pode explicar por que o filho de Kadafi continua vivo, mantido a salvo, longe do alcance, ao mesmo tempo, da Corte Internacional de Justiça e do Conselho Nacional de Transição, e entregue à proteção de aliados de Belhaj em Zintan.
É altamente provável que Belhaj esteja operando para assumir o controlo sobre os milhões de milhões do petróleo, mantendo-os fora do alcance do governo imposto pela OTAN, ao mesmo tempo em que trabalha para se vingar dos seus ex-torturadores, hoje confinados em Bengazi no Conselho Nacional de Transição (quando não estão fora do país).
Para conseguir o que almeja, Belhaj pode bem estar interessado em aceitar um acordo de cessar-fogo com a Resistência Verde, a qual também quer o fim do governo do Conselho Nacional de Transição fantoche da OTAN. Descartado o Conselho Nacional de Transição, poder-se-á talvez cogitar um acordo de paz entre Belhaj e Saif al Islam para tentar pôr fim ao fogo e ao sangue que ainda pinga dos sabres na Líbia.
Mas isso também pode não ser mais do que tomar desejos por realidades, e depende de a OTAN não intervir militarmente para defender o “seu” Conselho Nacional de Transição – ameaça presente que, por sua vez, pode explicar a paciência de que Belhaj e os seus aliados têm dado várias provas.
Quem sabe? A verdade é muitas vezes mais estranha do que qualquer ficção. E o que hoje parece tomar desejos por realidades pode converter-se em realidade amanhã ou depois de amanhã. Todavia, naquilo que diz respeito à possibilidade de a Líbia estar a caminho de se converter numa nova Somália, a verdade é que é precisamente esse o rumo que a história indica.
Em Counterpunch, 29/07/2012
*Thomas C. Mountain é o jornalista independente mais credenciado da África. Vive e trabalha na Eritreia desde 2006. As suas entrevistas podem ser vistas no jornal Russia Today TV e PressTV (Irão). Recebe e-mails em:thomascmountain@yahoo.com.
Fonte: Redecastorphoto. Traduzido pelo Colectivo de Tradutores da Vila Vudu