Israel: Apartheid, seja como for que se chame

Seríamos nós tão terríveis assim? A cada um que tenta estabelecer uma comparação entre o regime de ocupação de territórios e o apartheid sul-africano – e seu número não pára de crescer – rotulamos de cara como anti-Israel ou anti-Semita. Mas os fatos justificam a comparação. Não, Israel não é um Estado de apartheid, mas a ocupação nos territórios é apartheid.

A comparação é legítima. E é uma boa coisa que ela incomode tantos israelenses – afinal, talvez sua irritação os leve a pensar melhor sobre a ocupação pelo menos uma vez. Não é possível dizer que não haja diferenças entre os dois regimes, entre a tirania da ocupação israelense e o regime de segregação que vigiu na África do Sul. Aliás, a maior diferença, infelizmente, é que o apartheid não existe mais, enquanto a ocupação torna-se mais e mais arraigada.

Brian Brown, um clérigo sul-africano que foi forçado ao exílio como resultado de suas atividades anti-apartheid e que é atualmente Moderador do Sínodo de New South Wales e do Território da Capital Australiana, deu uma palestra fascinante e erudita desenvolvendo a comparação em uma conferência na Escócia, alguns meses atrás. Rudolf Hinz, professor de teologia na Universidade de Kiel, na Alemanha, me passou os eixos da palestra. A conclusão de Brown foi de que as similaridades justificam a comparação.

Brown afirma que devemos pensar no apartheid em termos de desapropriação – da terra, dos direitos, da dignidade, da nacionalidade, do poder. Isto vale para os negros na África do Sul do apartheid e também para os palestinos nos territórios. Em ambos os casos, as comunidades dirigentes, os brancos na África do Sul e a comunidade judaica em Israel, foram um dia elas próprias vítimas da opressão. Os Boers sentiram na carne a ferroada do chicote do Império Britânico, assim como os judeus passaram pelo infinitamente mais terrível horror do Holocausto.

Alguns dos Boers na África do Sul e os Sionistas em Israel baseiam na vontade divina seu direito às terras respectivas. Ambas as sociedades conquistaram territórios violando o direito internacional. Após a formação, em 1910, da União da África do Sul, o Estado conquistou seu vizinho ao leste, hoje em dia a Namíbia, e o governou sob mandato da Liga das Nações; Israel conquistou os territórios palestinos cerca de 50 anos depois.

O fato de que as duas sociedades ocupantes se vissem como vítimas as ajudou a cimentar laços entre Israel e o regime do apartheid, a despeito do apoio deste último à Alemanha nazista no passado. Ambas as sociedades enxergavam a si mesmas como defensoras da civilização, e viam a luta contra, respectivamente, negros e palestinos, como uma luta dos valores ocidentais contra os bárbaros em um caso e os adeptos da jihad no outro. A África do Sul se tinha na conta de uma fortaleza contra a União Soviética durante a Guerra Fria; Israel se enxerga como “a única democracia no Oriente Médio”. Mais importante: em ambos os casos, a violência original, institucionalizada, foi promovida pelo regime. A violência do Congresso Nacional Africano e da Organização pela Libertação da Palestina, respectivamente, foi reativa.

Ainda: ambas as sociedades se caracterizaram pela discriminação institucional. Na África do Sul a nação era branca; em Israel o Estado é judeu. Não-brancos na África do Sul e não-judeus em Israel tiveram de encontrar outra identidade nacional, diferente, para si. Na África do Sul, a identidade nacional para os negros foi remetida aos Bantustões, a assim chamada terra natal nacional que não foi nunca reconhecida por qualquer outro Estado, exatamente do mesmo modo como nenhum outro Estado reconhece reconhece a ocupação israelense.

A política de imigração também foi similar: em ambos os regimes, foi baseada na identidade racial ou étnica. Apenas a brancos era permitido imigrar para a África do Sul; apenas a judeus e permitido imigrar para Israel. Na África do Sul, imigrantes brancos deveriam proceder à naturalização; em Israel, qualquer judeu pode se tornar cidadão imediatamente. Em ambos os regimes não há relação entre o tamanho da população e seu controle do território.

Brown nota que há ainda um paralelo no tocante à distinção entre “pequeno apartheid” e “grande apartheid” no interior da África do Sul e entre os dois regimes. No caso do “pequeno apartheid” – segregação racial em locais de entretenimento e afins – a diferença entre os dois regimes é grande, de fato. Mas os negros sul-africanos, ele pondera, não se lançaram à batalha para conquistar a permissão de sentar nos mesmos bancos de praça que os brancos. Sua luta foi contra o “grande apartheid”, o apartheid da desapropriação violenta e institucionalizada. Os palestinos estão lutando exatamente a mesma batalha. Deveríamos mesmo considerar esta comparação ridícula, sem fundamento, anti-Semita?

Tradução: Partido Comunista Brasileiro (PCB).

Fonte: http://www.haaretz.com