Você faça tudo, mas faça um favor
A iniciativa de criar um partido objetivando apenas dar suporte para a candidatura de Marina Silva à Presidência da República revela o baixo nível do debate político brasileiro entre setores majoritários da centro-esquerda e da direita, além de representar uma clara traição ao legado de Chico Mendes. Enquanto este lutou por um projeto ecológico anticapitalista fundado nas organizações políticas de base, o “partido de Marina” começa pela cúpula, aposta na fragmentação dos eleitores e no apoio de grandes empresários. A democracia de base virou o tradicional personalismo, a proposta de um socialismo ecológico tornou-se o marketing do capitalismo verde.
Chico Mendes, morto por pistoleiros em 1988, quando se tornara a principal liderança dos seringueiros e do movimento ecológico com raízes populares, representava para os trabalhadores da terra o mesmo que Lula representava para os trabalhadores da cidade antes de ir para a direita, no início dos anos 2000. O militante acreano afirmava um tipo de movimento social agrário mais amplo do que os movimentos pela reforma agrária que se solidificaram, pois estes passaram três décadas dando centralidade apenas aos sem-terra, relegando a um papel secundário o campesinato pobre, os assalariados agrícolas e os povos da floresta (erro que têm procurado superar nos últimos anos).
Após o assassinato do líder seringueiro, Marina Silva, companheira de várias lutas, logo surgiria como natural herdeira do seu legado. Em várias dimensões e momentos, Marina demonstrou estar à altura do desafio de substituir um genuíno herói do povo brasileiro, marcado pela síntese entre um alto padrão ético, uma perspectiva marxista aberta aos aportes contemporâneos relativos às populações tradicionais e uma grande capacidade de articulação política.
Caso tivesse sobrevivido à violência dos latifundiários, Chico Mendes seria um líder nacional com uma mesma magnitude política de Lula. A união dos dois personagens durante o período em que Lula ainda era uma liderança combativa representaria a constituição da conhecida e produtiva aliança entre o campo e a cidade, presente na história de vários países que resolveram seus problemas estruturais. Não se pode saber qual seria a atitude de Chico Mendes diante da guinada à direita efetivada pelo Partido dos Trabalhadores a partir da segunda metade dos anos 1990. Se permanecesse no partido, seria um forte candidato à sucessão de Lula.
A saída de Marina do PT e sua candidatura à Presidência da República pelo Partido Verde (PV), em 2010, justamente contra uma Dilma Rousseff subserviente aos latifundiários, representou a impossibilidade de compatibilizar determinados pressupostos do ideário ambientalista contemporâneo com a proposta ultraconservadora do PT para o mundo rural. Contudo, como a Marina de hoje não é mais a continuadora do anticapitalista Chico Mendes e o petismo do presente virou sinônimo de status quo liberal, a discordância entre os dois lados é mais superficial do que aparece. Marina propõe uma aliança com o grande capital descompromissado com os valores e interesses do agronegócio, um consórcio com empresários para quem a conservação das florestas traz mais lucro do que prejuízo, pois não dependem de desmatamentos e queimadas para alavancarem seus negócios e podem até lucrar com o chamado capitalismo verde.
O “partido da Marina”, portanto, ao contrário do que parece, nasce com um forte lastro de classe, pois conecta setores do grande capital com segmentos da classe média urbana ansiosos por unirem de modo prático a preocupação ambiental e a adesão explícita à Ordem capitalista. O personalismo, a falta de um programa claro e o “eleitoralismo” são características desses setores sociais. A classe média em foco aceitará de bom grado a submissão aos banqueiros e a uma personalidade carismática em troca da realimentação da sua esperança de ficar livre de qualquer alusão à ascensão dos trabalhadores ao poder e de qualquer crítica aos valores capitalistas, tudo disfarçado pelo amor às florestas e a seus habitantes.