A PEC 37: MUITO MAIS DO QUE UMA QUESTÃO JURÍDICA
A votação pela Câmara dos Deputados da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 37 – prevista para o próximo dia 26 de junho – não é apenas, como parece, uma discussão jurídica. Trata-se de importantíssima questão sobre democracia e direitos do cidadão – sobretudo os das camadas populares e os dos mais pobres.
Recordando e resumindo: a proposta visa mudar o que estabelece a Constituição de 1988, no que diz respeito a investigações sobre infrações penais. Se hoje está garantido ao Ministério Público (os promotores de Justiça) o direito de acompanhar e participar ativamente de investigações e inquéritos policiais, a PEC 37 pretende retirar-lhe este direito e dar às policias federal e civil dos estados e do Distrito Federal competência privativa sobre eles.
Não estranhamente apresentada por deputado federal que é também delegado da Polícia Civil, a proposta passou por Comissão Especial da Câmara, em novembro do ano passado. Será agora votada pelo plenário da Casa e depois pelo Senado Federal. Se aprovada – o que nem seria surpreendente, tendo em vista a distância que separa o Congresso dos reais interesses do país –, chegaríamos à incoerência de que o órgão incumbido pela Constituição de representar a sociedade ante o Poder Judiciário seria impedido de fazê-lo, no quase sempre decisivo momento em que a investigação levanta os dados que balizarão o julgamento.
Se observado mais de perto, o que poderia configurar delírio corporativo de delegados revelase tentativa política de garantia de uma espécie de reserva de direito, nas questões da Justiça, por parte das elites econômicas e sociais, do grande capital aplicado no negócio de compra e venda de favores estatais que realimentam seus lucros, dos grupos ligados à lavagem de dinheiro subtraído ao trabalhador ou obtido por todos os meios escusos imagináveis, da fina flor do banditismo de colarinho branco. Além disso, a aprovação da proposta é também do máximo interesse de setores políticos cujas práticas inconfessáveis têm sido perturbadas por investigações do Ministério Público.
Não que promotores de Justiça devam ser considerados acima do bem e do mal. Entre eles também existem os que não cumprem o dever. Mas é evidente que profissionais aprovados em concurso de reconhecida dificuldade e que não devem favores ao Executivo e ao Legislativo têm muitíssimo mais independência do que delegados de polícia, sempre sujeitos às pressões dos poderosos e a um corporativismo endêmico e escancarado.
Imaginem-se investigações sobre um mega-empresário, um banqueiro, um latifundiário, um político influente, um burocrata de ótimas relações, alguma figura influente nos altos extratos sociais, um filho de família rica, um barão dos diversos tráficos: quem será mais provavelmente sensível à influência nefasta de qualquer um deles, durante as investigações? O promotor de Justiça ou o delegado de polícia? O acompanhamento de casos recentes e dos mais antigos não deixa margem a dúvidas – o que não significa afirmar que não há policiais íntegros e incorruptíveis.
Da mesma maneira, quando o investigado é um trabalhador da cidade ou do campo, um semterra, um homem simples do povo, um filho de família humilde, um mero sub-assalariado dos tráficos: quem tem mais condições e disposição para garantir-lhe investigação justa? O delegado de polícia ou o promotor de Justiça? Aqui também, o exemplo de inúmeros casos torna a resposta evidente.
Por razões conjunturais, a PEC 37 rachou as correntes de direita (cujas relações com os poderosos da sociedade de classes tenderiam a empurrá-la para o apoio à aprovação) e de centro-esquerda (que a votação obtida entre os trabalhadores suporia fazer tender ao repúdio). Parte da direita, de olho na penalização de políticos e burocratas ligados ao Governo e envolvidos em escândalos, trabalha pela rejeição da medida. Pelo mesmo motivo, mas com sinal trocado, correntes da centro-esquerda querem aprová-la. Esta inversão de posições é mais uma prova de que investigações não devem ser deixadas apenas aos delegados de polícia. Dos dois lados existe a certeza de que eles são bem mais facilmente manipuláveis.
A sessão da Comissão Especial em que a proposta foi aprovada e encaminhada desenrolou-se de modo absolutamente parcial. Os participantes foram ouvidos por tempo restrito – 5 minutos cada um, em tema tão importante. Foi mero cumprimento de uma etapa da rotina parlamentar. A aprovação foi rápida, sem que fossem lidos os votos em separado.
É um mau prenúncio para as batalhas na Câmara e no Senado. O racha nas correntes e o posicionamento a partir de interesses políticos próprios tornaram o resultado imprevisível. São esperadas fortes manobras parlamentares vindas dos apoiadores da PEC 37 e não se sabe até que ponto seus adversários estarão em condições de resistir-lhes e impedir a consumação do absurdo.
Por tudo isso, serão fundamentais a mobilização da sociedade e a pressão sobre deputados e senadores indecisos ou ainda renitentes a aprovar medida tão danosa, apenas para defender interesses poderosos. Nas redes sociais da Internet, a mobilização espalhou-se e já é grande, mas precisa ser ampliada, nesta reta final. As organizações da sociedade civil – dos sindicatos às entidades estudantis, das associações de bairro aos grupos de defesa das minorias – devem comprar esta briga, que também é sua. E os movimentos que estão nas ruas das cidades brasileiras – numa demonstração de que o povo não se cala por muito tempo – podem perfeitamente levantar mais esta bandeira de luta, em suas passeatas.