Relatório de uma visita à Ucrânia

No pretérito dia 14 de Agosto de 2014 a Associação Portuguesa de Juristas Democratas (APJD) , representada por Madalena Santos e António Negrão participou em Kiev (Ucrânia) numa das audiências do processo que visa a ilegalização do Partido Comunista da Ucrânia (PCU).

 

Fizémo-lo em representação da Associação Portuguesa de Juristas Democratas, com mandato para representar igualmente a Associação Internacional de Juristas Democratas (IADL) e organizações similares de outros países europeus, nomeadamente a “Droit Solidarité” de França. O estatuto de observador internacional não foi possível de obter – face à urgência e tempo efectivo para tratamento do processo junto das entidades competentes – pelo que acabámos por ser constituídos mandatários do Partido Comunista da Ucrânia (PCU).

No que toca à natureza do processo judicial com vista à ilegalização da actividade política do Partido Comunista da Ucrânia salienta-se que se trata de uma acção administrativa. Os autores são o Ministério da Justiça e o Serviço de Registo Estatal da Ucrânia, a que se juntaram depois, como “terceiros”, outros organismos do Estado e vários partidos políticos envolvidos no golpe de Fevereiro , entre os quais o Svoboda [de orientação nazifascista]; o réu é o Partido Comunista da Ucrânia. O que os autores do processo pedem é que sejam banidas as actividades do PCU. A audiência a que assistimos faz ainda parte da fase preliminar, em que o tribunal avaliará se há ou não bases para que se venha a instruir um processo contra o PCU visando a proibição da sua actividade. (Ver em anexo a Petição Inicial apresentada pelos autores).

Esta audiência, a segunda nesta fase preliminar, foi interrompida sine die com a argumentação de que alguns dos documentos agora apresentados terão que ser mais bem avaliados pelas partes e pela própria juíza. Quando saímos de Kiev (dia 15 de Agosto) não ficou marcada a próxima audiência. Sabemos hoje à data em que elaboramos este relatório que a próxima sessão será já no dia 4 de Setembro.

Não estamos ainda perante um processo-crime, mas sim um processo administrativo. A situação é esta: há um partido político, que foi constituído segundo a lei da Ucrânia e está registado no Serviço de Registo Estatal da Ucrânia. O que os autores do processo questionam é se esse partido deve manter ou não esse registo, ou seja, avaliar se as suas actividades violam ou não as leis do país.

Na petição inicial, os autores do processo fazem a fundamentação baseando-se naquelas que são as leis ucranianas relativas aos partidos políticos, seus direitos e deveres, acusando depois vários dirigentes do PCU de, em diversas ocasiões, violarem várias destas normas. Como consequência, pedem a ilegalização do partido.

Importa que nos interroguemos sobre qual a “validade” dessas provas do ponto de vista estritamente jurídico. Pelo que ouvimos no tribunal, a prova (se assim se pode chamar) essencial em que se baseia o pedido do Ministério da Justiça assenta em declarações proferidas por líderes do Partido – desde o primeiro-secretário até centenas de dirigentes de vários níveis de responsabilidade –, algumas delas proferidas no Parlamento. Por exemplo, o primeiro-secretário do PCU [Petro Simonenko] propôs no Parlamento a transformação da Ucrânia em uma Federação, algo que o Ministério da Justiça entende como sendo um apelo ao “separatismo”; quando o PCU defendeu que se considerasse melhor as questões de segurança e que fossem criadas milícias populares que pudessem ajudar a polícia a assegurar a ordem e a tranquilidade públicas, isso foi interpretado como um incentivo à sedição armada.

Enquanto representantes da APJD assistimos no tribunal a algo inaudito: a proposta de realização de uma “perícia linguística”. Ou seja, por outras palavras, tal como existem perícias médicas para reconstituir alguns tipos de crime, existe na Ucrânia a chamada “perícia linguística”, capaz alegadamente de perceber que quando Petro Simonenko fala em “federalização do país” estaria, na verdade, a falar de “separatismo”.

Na nossa perspectiva, esta é uma concepção inequivocamente fascistóide, pois significa que as pessoas já não são livres de se expressar como entendem na sua língua materna. Tudo o que dizem está sujeito a ser interpretado de forma enviesada por terceiros.

Para cúmulo, estas ditas “perícias” foram aceites como prova, mas quando o PCU pediu para que os registos vídeo e áudio das sessões do Parlamento pudessem constar como prova (para se evitarem leituras descontextualizadas das afirmações dos seus dirigentes) o tribunal não aceitou.

A opinião dos nossos colegas ucranianos é que se está, de facto, perante uma encenação de julgamento e que as instruções vindas de autoridades ilegalmente constituídas são para que o PCU e a sua legítima actividade política e parlamentar sejam banidos. Não se trata de uma opinião individual, pois estamos perante uma equipa de seis ou sete advogados e todos têm esta opinião.

Os próprios golpistas actualmente no governo já se devem ter apercebido da inconsistência deste processo administrativo e estão a tentar alcançar os seus objectivos por outros meios. Tivemos conhecimento de que o primeiro-secretário do Partido Comunista da Ucrânia está a ser acusado criminalmente de todos os factos imputados ao PCU neste processo. Ou seja, já não se está apenas no plano administrativo mas agora também penal. O que necessariamente agrava a questão pelas eventuais penas que possam vir a ser aplicadas a todos aqueles dirigentes do PCU que vierem a ser julgados e condenados em processo-crime.

Constatámos que, após o golpe, terá havido alterações significativas no poder judicial e que os magistrados parecem não ser já magistrados de carreira, profissionais. A pressão sobre os tribunais é demasiado grande para que se possa falar em verdadeira independência e separação de poderes, como existe em qualquer Estado de Direito. Na Ucrânia, os juízes são designados pelo Ministério da Justiça que, neste caso, é um dos autores do processo. O processo está assim inquinado e viciado à partida. Não é este o tipo de processo que conhecemos em democracia e no Estado de Direito.

Durante a realização da audiência decorreu uma manifestação à porta do tribunal, onde se empunhavam bandeiras da Ucrânia e bandeiras nacionalistas, se gritavam palavras de ordem como “morte aos comunistas” e “comunistas para a forca” e se simulava o “enterro” do Partido Comunista da Ucrânia. Na sala do tribunal [que funcionava nas instalações de uma antiga creche] tudo isto podia ser ouvido, pois a manifestação decorria mesmo do outro lado da janela. A própria juíza tinha um polícia armado de cada lado (?!!!). Não houve qualquer ordem da juíza no sentido de enviar força policial para afastar os manifestantes para local mais longínquo e assim não perturbar a serenidade da função de julgar. Foram, inclusivamente, atirados contra a porta e paredes do tribunal tomates e ovos, quer antes do início da audiência, quer durante a tentativa de um dos advogados de defesa do PCU falar à comunicação social. Este elemento é essencial para atestar que, hoje em dia, as autoridades policiais ucranianas têm muita dificuldade em manter a ordem e impedir a organização e actuação de milícias “nacionalistas” que se movimentam livremente aterrorizando as pessoas. A confusão à entrada para o julgamento, sem que as autoridades, quer policiais, quer judiciais do próprio tribunal, consigam estabelecer ordem e regras na forma de acesso à sala de audiências é mais um elemento essencial para compreender a pressão a que se encontra sujeito este dito “julgamento”.

Toda a audiência foi gravada e transmitida em directo por vários órgãos de comunicação social com 8 (oito) câmaras de televisão, algumas permanentemente apontadas para a juíza. Assistiram ainda à audiência outros órgãos da Comunicação Social (rádio, imprensa e net). Nas condições que estão criadas no país e face ao que observámos parece-nos ser de relevar este facto como mais uma intolerável pressão sobre o tribunal e, em particular, sobre a própria juíza.

Nós, advogados e cidadãos de um país europeu, que aliás integra a União Europeia, ao dirigirmo-nos ao tribunal para aí exercermos o nosso mandato, precisámos de segurança e guarda-costas para entrar e sair pela porta das traseiras… Também este facto, como muitos outros que poderíamos referir, serve para reforçar a ideia das condições de pressão em que o pretenso “julgamento” se está a realizar.

Não quisemos deixar de participar ainda numa conferência de imprensa realizada nas instalações da agência noticiosa “Golos”, na qual esteve também presente o primeiro-secretário do Partido Comunista da Ucrânia, Petro Simonenko, porque consideramos que julgar as ideias é próprio das sociedades fascizantes, para além da audiência ao julgamento, enquanto representantes da APJD e da AIJD (IADL) e “Droit Solidarité”.

Em resposta às perguntas dos jornalistas, tivemos a oportunidade de denunciar as aberrações formais que testemunhámos no processo movido contra o PCU, defendendo que nenhum partido deve ser ilegalizado devido a declarações, tomadas de posição ou propostas políticas dos seus membros, designadamente enquanto deputados eleitos pelo povo. Além disso, acrescentámos que numa sociedade democrática ninguém pode ser julgado por delito de opinião.

As opiniões não são factos ou actos materiais e julgar ideias em tribunal é próprio das sociedades fascizantes. Só aos povos compete julgar ideias. Acrescentámos ainda que a maioria das afirmações dos dirigentes do PCU foram proferidas no Parlamento, enquanto deputados com mandato conferido pelo povo (foram eleitos 33 deputados do PCU, sendo neste momento o maior partido da oposição representado no Parlamento, com 23 deputados), logo ao abrigo da imunidade parlamentar, princípio que a legislação ucraniana parece não contemplar.

Lembrámos ainda, nessa conferência de imprensa, outros “julgamentos” semelhantes, em que à proibição de partidos comunistas se sucedeu a instauração de ditaduras fascistas e depois a ilegalização de todas as outras forças e sectores democráticos. A Alemanha de Hitler é disso um tenebroso exemplo.

Questionámos ainda, tal como o dirigente comunista ucraniano, a quem servirá a proibição do PCU. É nosso entendimento que interessa àqueles que pretendem silenciar as forças que defendem os interesses dos trabalhadores e dos cidadãos em geral e de todos aqueles que se opõem aos oligarcas e ao seu crescente poder.

Petro Simonenko afirmou mesmo que o golpe de Estado de Fevereiro colocou no poder um sector da oligarquia apostado em instituir uma “ditadura nacional-fascista”.

Já as ligações internacionais dos golpistas tornam-se evidentes, desde logo, pela ocorrência de um facto tão coincidente quanto significativo: a decisão assumida pelo Parlamento ucraniano no próprio dia em que se realizou a conferência de imprensa da venda da empresa pública de gás ucraniana a uma multinacional norte-americana.

No próprio dia em que chegámos pudemos observar o início dos trabalhos de limpeza da praça Maidan pelas autoridades de Kiev.

Tivémos conhecimento por relato dos próprios ou por descrição de testemunhas das violentas agressões físicas que quotidianamente sofrem os comunistas e democratas ucranianos, vítimas de “bandos” para tal organizados. No próprio dia em que decorreu a audiência, duas deputadas do PCU foram agredidas com violência, tendo sido impedidas de participar no julgamento e recorrido a tratamentos no hospital. As agressões físicas (algumas que só terminam com o assassinato das indefesas vítimas) a velhos resistentes da 2ª Grande Guerra, é uma constante. As ocupações selvagens, seguidas de destruição do património e recheio, bem como de incêndio de edifícios de associações sindicais, culturais e sociais, de apoio à saúde, etc, são um meio banalizado por parte dos “bandos” organizados que as autoridades da Ucrânia não conseguem conter, nem reprimir.

Por tudo isto consideramos que a resistência e solidariedade internacionalistas e, em particular, dos juristas democratas da Europa e de outros continentes do mundo, pode e deve ser um elemento essencial para travar a inadmissível ilegalização do PCU. Até porque, já o sabemos, ensina-nos a História que este é um primeiro passo. Outros se lhe seguiriam com vista à eliminação de toda e qualquer liberdade de expressão.

Estamos certos de que foi extremamente importante a nossa deslocação à Ucrânia, e a este “julgamento” em particular, enquanto representantes da Associação Portuguesa de Juristas Democratas e de outras organizações internacionais, nomeadamente da Associação Internacional de Juristas Democratas (IADL), cuja presidente é Jeanne Mirer, e de “Droit Solidarité”, de França, dirigida por Roland Weyl.

Este foi um acto de grande importância do ponto de vista da solidariedade internacional.

Ninguém mais do que os portugueses conhece o valor desta solidariedade, pois nós também beneficiámos dela quando, durante a ditadura fascista em Portugal, os tribunais plenários julgavam antifascistas, comunistas e democratas portugueses. Também em alguns desses “julgamentos-farsa” estiveram representantes da Associação Internacional de Juristas Democratas (IADL), que transmitiram para o mundo o que cá se passou. Libertámo-nos do fascismo através de uma revolução, mas estes momentos de solidariedade foram muito importantes e uma ajuda inestimável para desmascarar os tribunais fascistas.

Travar a ilegalização do PCU é um acto imperativo! Pelo que essa pretensa ilegalização significa de atentado contra os valores da Liberdade e dos Direitos do Homem e dos Princípios da Carta das Nações Unidas. Não é uma batalha perdida à partida. É certo que algumas derrotas se têm vindo a suceder, mas elas não são obrigatoriamente definitivas.

Temos de aumentar o nosso grito de alerta por parte dos advogados (de Portugal, de países da União Europeia e de todo o mundo) e se conseguirmos erguer um movimento de opinião pública internacional em defesa dos valores da liberdade e democracia podemos barrar-lhes o caminho e, neste caso concreto, impedir a ilegalização do PCU. Hoje são os comunistas, amanhã serão outros…

Não podemos conceder nem um milímetro de tolerância a tais práticas que infelizmente constatámos com os nossos próprios olhos existirem na Ucrânia de hoje, pois não esquecemos a violenta e repressiva passagem pela História da humanidade do ignóbil, criminoso e anti–humano fascismo que está muito presente na memória dos democratas.

Por sermos testemunhos vivos de experiências e práticas que lembram o nazi-fascismo temos uma responsabilidade acrescida de divulgar por todos os meios possíveis este perigo – que ali não é já um perigo latente, mas real – do recrudescimento das ideias e práticas nazifascistas. É esta a nossa responsabilidade enquanto democratas e enquanto juristas que defendem a paz, a liberdade, a democracia e a manutenção de um Estado de direito democrático, e é isso que nos move. Não nos calaremos: Fascismo nunca mais!

Esperamos que esta solidariedade contribua activamente para travar os golpistas nesta sua primeira ofensiva “judicial” contra os comunistas ucranianos. Mas não tenhamos ilusões: outras se lhes seguirão. A ideia com que ficámos é a de que o Partido Comunista da Ucrânia está a resistir firmemente a esta onda de violência que sobre ele se abateu. E é uma resistência de uma coragem física e psicológica extraordinárias. O PCU tem os seus membros e as suas vias de inserção no próprio povo e é por essas vias que vai resistindo. O processo judicial é uma gota de água na resistência do PCU que pode não ser muito visível do ponto de vista mediático mas é efectiva. Daí também este apelo à solidariedade internacional, que é uma das componentes essenciais dessa resistência.

Lisboa, 18 de Agosto de 2014

[*] Da Associação Portuguesa de Juristas Democratas (APJD), aportuguesajuristasdemocratas@gmail.com

Este relatório encontra-se em http://resistir.info/ .

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