Eixo energético reforça as opções geoestratégicas da Rússia e da China

Nos primeiros meses de 2013, as autoridades russas repararam que, mesmo com a saída de Hillary Clinton da Secretaria de Estado, a posição política dos Estados Unidos em relação à Rússia se havia tornado cada vez mais agressiva, chegando até a interpor alguns países da OTAN para acirrar ainda mais o contencioso entre os dois países e, consequentemente, obrigar a própria União Européia a assumir posições duras e às vezes provocativas.

Por outro lado, os analistas do Kremlin repararam que, após a concessão do asilo político, em julho de 2013, ao ex-agente da CIA/NSA, Edward Snowden, toda a mídia estadunidense e grande parte da européia haviam iniciado uma campanha para desqualificar o perfil político do presidente russo Vladimir Putin e, consequentemente, transmitir à opinião pública mundial várias “reportagens”, nas quais a Rússia de hoje nada seria que uma nova URSS artisticamente maquiada com vestimentas democráticas.

A invasão da Líbia e a campanha de desestabilização do governo da Síria confirmaram a tese dos analistas do Kremlin, segundo a qual os Estados Unidos estavam construindo vários focos de tensão no Mar Mediterrâneo e, sobretudo, nos Estados que têm fronteiras com a Rússia. A manipulação da crise ucraniana por parte da Casa Branca resultou evidente quando Barack Obama enviou à Ucrânia a superconservadora Victoria Nuland, com o cargo de vice-secretária de Estado encarregada das relações exteriores dos EUA com a Europa e a Eurásia. Ao chegar à capital ucraniana, Kiev, logo declarava: “os Estados Unidos investiram cinco bilhões de dólares para desenvolver habilidades e instituições democráticas na Ucrânia”.

De fato, a atividade subversiva de Victoria Nuland em Kiev foi a prova decisiva que faltava aos analistas russos para alertar o governo e o presidente Putin sobre a perigosa atuação dos EUA na Ucrânia. Para melhor entender o papel que os homens da Casa Branca, e logicamente da CIA, desempenharam ao lado dos rebeldes de Euro-Maidan é útil lembrar o perfil de quem articulou a estratégia da rebelião, isto é, Victoria Nuland. A mesma “diplomata”, militante da corrente direitista conservadora (neocon) que, de 1993 a 1996, trabalhou pela CIA no Soviet Desk; depois, de 2000 a 2003, foi representante dos EUA na OTAN e “dulcis in fundo”, de 2004 a 2005, foi conselheira do vice-presidente Dick Cheney para a Segurança Nacional!

Não há duvidas de que aqueles cinco bilhões de dólares foram muito bem gastos pela CIA e pelo Departamento de Estado para desestabilizar o governo russófilo de Viktor Yanukovich, que havia sido reeleito em 2010 com 48% das preferências. É evidente que diante dos acontecimentos da Ucrânia, o presidente russo Vladimir Putin acelerou todas as negociações em curso para fortalecer o relacionamento da Rússia com os países da Ásia, em particular com a China.

Foi nesse âmbito que as lentas negociações comerciais realizadas no passado pelas empresas públicas russas Gazprom, Rosneft e a homóloga chinesa CNPC (China National Petroleum Corporation), logo viraram acordos econômicos governamentais, do momento que também a China desejava fortalecer as relações com a Rússia por causa da bicéfala condução política da Casa Branca na área asiática. A este propósito é bom lembrar que Barack Obama, desde sua primeira eleição, sempre se recusou a avaliar as reivindicações territoriais e de soberania marítima no Mar da China, apresentadas em vários fóruns internacionais pelo governo chinês.

O eixo energético

No mês de junho, o presidente Barack Obama teve o desprazer de legitimar o enterro do projeto geoestratégico dos EUA “Pivot To Asia”, que estava de pé desde os tempos de Nixon. Um projeto que, além de definir os novos parâmetros para o relacionamento financeiro e comercial com a China, fixava um conjunto de equações políticas que, na prática, restringiam o potencial geoestratégico do governo chinês na Ásia. Em particular, os EUA congelavam todas as reivindicações de ordem territorial e geoestratégica que a China avançava junto do Japão e da Coreia do Sul.

Uma situação que o Departamento de Estado não esperava encontrar e que descobriu quando o presidente estadunidense, no mês de maio, chefiou uma importante missão política e econômica no Japão. Em Tóquio, Obama reparou perfeitamente que os aliados asiáticos dos EUA estavam pouco interessados em endurecer as relações políticas com a China, do momento que os Estados Unidos, além de terem uma taxa negativa no import-export com a China e dependerem da “boa vontade” dos bancos chineses na valorização dos “bonds” de sua dívida externa, do ponto de vista militar não impressionavam mais a China, cuja indústria militar havia alcançado uma quase igualdade tecnológica e qualitativa.

Assim, no mesmo momento em que Obama, John Kerry e as excelências da Casa Branca tomavam um banho de água gelada em Seul e depois em Tóquio, em Moscou a Rússia e a China finalizavam os contratos energéticos (fornecimento de gás e de petróleo) com a assinatura por parte dos diretores das empresas públicas russas Gazprom, Rosneft e a CNPC. Por sua parte, os presidentes Vladimir Putin e Xi Jinping fortaleciam em termos políticos esses contratos, determinando que o fornecimento de hidrocarbonetos devesse ficar ininterrupto até 2043, isto é, durante os próximos trinta anos.

Esses dois “megacontratos”, que darão ao Banco Central da Rússia um lucro de 561 bilhões de dólares, são de extrema importância, visto que permitem à Rússia ter a segurança efetiva de um cash contínuo, com o qual poderá suprir dificuldades econômicas no caso de um endurecimento das sanções européias ditadas pela Casa Branca.

Por outro lado, o novo eixo energético sino-russo contribuiu para afirmar no continente asiático os elementos de um novo cenário político, cujos desdobramentos no contexto geoestratégico começaram a inviabilizar os parâmetros da estratégia “Pivot To Asia” que a Casa Branca programou há mais de quarenta anos para isolar a China e acirrar as controvérsias entre ela e a Rússia, com a criação de mecanismos diplomáticos, comerciais, financeiros, culturais e de direitos humanos. Enfim, o velho ditado do império romano “Dividit et Impera” (dividir para reinar).

A este propósito, as “más línguas” de Washington referem que, na década de 90, o FBI fez acordos “em off” com alguns chefões de Cosa Nostra (máfia dos EUA) e da Yakuza (máfia do Japão), “fechando os olhos investigativos sobre as atividades criminosas desses nos EUA, caso eles tivessem conseguido desenvolver na China o narcotráfico, especialmente o uso da cocaína, da meta-anfetamina, da quetamina e do ecstasy”.

De fato, em 2003, o governo chinês denunciava que o número dos usuários de drogas sintéticas havia aumentado rapidamente, atingindo 740.000 usuários. Dados do Ministério da Segurança Pública da China indicam que nos últimos cinco anos foram presas 235,6 mil pessoas sob a acusação de produzir ou traficar drogas, em um total de 546,9 mil casos. No mesmo período, foram apreendidas 51 toneladas de heroína e 14,7 toneladas de ópio, 54,8 toneladas de cocaína e outras 13 toneladas de diferentes drogas sintéticas. Afinal, as “más-línguas” de Washington não são assim tão más!

Aí vem o “Power of Siberia

Em 2004, após a desastrada experiência institucional de Boris Ieltsin, o governo chinês e o russo começaram a dialogar, conjeturando uma possível negociação sobre a venda de gás e de petróleo, caso os projetos de extração de hidrocarbonetos na Sibéria tivessem confirmado as previsões dos estudos e das prospecções geotécnicas.

Assim, em 2008, quando foram confirmados os sucessos técnicos obtidos pela empresa russa Gazprom na exploração das jazidas siberianas de gás e de petróleo, o histórico gelo que separava Moscou e Pequim começou a derreter-se. Consequentemente, em 2011, foi instituído um canal permanente para finalizar as negociações entre as duas empresas estatais (Gazprom e a CNPC chinesa).

A Casa Branca e as chancelarias européias não deram muita importância às negociações energéticas entre as empresas russas e a estatal chinesa, achando tratar-se de um dos tantos contratos que a CNPC chinesa assinava para garantir o abastecimento das numerosas centrais térmicas que alimentam as fábricas dos distritos industriais.

Na realidade, com esse eixo energético a China resolveu a maior parte de seus problemas na área e tal fato determinou um novo clima político, que influenciou profundamente a visão geoestratégica do governo chinês, visto que o país, agora, é o principal fornecedor mundial de produtos manufaturados, detendo, também, os principais portfólios da dívida estadunidense e de muitos países europeus, onde nos últimos anos os bancos chineses realizaram transações vultosas e adquiriram participação acionária em muitas fábricas.

De fato, em 2013, o novo presidente chinês, Xi Jinping escolheu a Rússia para efetuar sua primeira viagem internacional, durante a qual foi novamente enfatizada a importância dos contratos energéticos entre a empresa petrolífera russa Rosneft e a CNPC chinesa, relativos ao fornecimento de 100 milhões de toneladas de petróleo até 2024 por um valor de 85 bilhões de dólares. Depois disso, em janeiro de 2014, a CNPC chinesa comprou uma cota de 20% do projeto Novatek, que prevê a produção do GNL (gás natural liquefeito), em Yamal no norte da Rússia. Neste projeto, participa também a empresa francesa Total, que detém uma cota de 20%.

Ainda em 2014, o presidente chinês voltou à Rússia para estar ao lado do presidente Putin na cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos de Inverno, em Sochi. Um acontecimento que impressionou muito as “excelências” do Departamento de Estado dos EUA, visto que esta era a primeira vez que um presidente da China ia ao exterior para presenciar e prestigiar um evento esportivo.

Na realidade, em Sochi, Putin e Xi Jinping acertaram os parâmetros dos diferentes projetos de colaboração (energética, econômica e financeira). Assim, no mês de maio, depois de dez anos de negociações, a empresa russa Gazprom e a CNPC chinesa assinaram um contrato recorde no valor de 456 bilhões de dólares, para a venda anual de 38 bilhões de metros cúbicos de gás siberiano por um período de trinta anos. Ao mesmo tempo, as duas empresas se engajaram na construção de um sistema regional de gasodutos integrados (Power of Siberia) que, a partir de 2018, deve interligar os centros de extração siberianos até o litoral do Oceano Pacífico, para depois atingir as redes de distribuição em território chinês.

Não foi por acaso que a assinatura desse megacontrato foi oficializada em Xangai, quando o presidente russo, Vladimir Putin, ao lado do seu homólogo chinês, Xi Jinping, participou do CICA (Conferência para a Construção de Medidas de Paz, Estabilidade e Segurança na Ásia). Foi nesse fórum que a Rússia apoiou o papel preponderante da China, sobretudo em termos de segurança para o continente asiático, um papel que anteriormente era exclusivo dos EUA.

Por isso, diante dos repórteres das TV chinesas e asiáticas o presidente Putin declarou: “Hoje, as trocas comerciais entre os nossos países são da ordem de 90 bilhões de dólares por ano, mas em 2015 serão de 100 bilhões de dólares e em 2020 alcançarão o valor de 200 bilhões de dólares. Isso porque a cooperação entre a China e a Rússia está atingindo níveis de interação estratégica e de parceria global. Por isso, não é errado afirmar que essa parceria alcançou o nível mais alto em termos históricos”.

E para surpreender ainda mais as “excelências” da Casa Branca, bem como os analistas da CIA e do Pentágono, os dois presidentes, no dia 20 de maio, apareceram novamente juntos para inaugurar o início das Terceiras Manobras Navais Conjuntas sino-russas, que durante seis dias se realizaram no Mar Chinês Oriental. Segundo o vice-presidente da Academia de Questões Geopolíticas da Rússia, Konstantin Sokolov, “essas manobras são muito importantes porque os exercícios de interação marítima serão efetuados no mesmo espaço aquático do Mar Chinês Oriental, onde os EUA e a Coreia do Sul realizam exercícios militares em função antichinesa duas ou três vezes por ano. Por outro lado, a grande envergadura dessas manobras militares é realizada em uma região onde a China e a Rússia reivindicam disputas territoriais com o Japão. Em função disso, hoje, a China se tornou o principal parceiro estratégico da Rússia, inclusive em um momento político em que a posição hostil dos EUA e da OTAN é cada vez mais evidente. Aliás, os acontecimentos na Ucrânia quase obrigaram a Rússia a se virar cada vez mais para a região asiática do Pacífico. Por isso, essas manobras militares foram uma resposta da Rússia e da China à expansão dos EUA e do Ocidente”.

Outro elemento de grande importância geoestratégica foi a VI Cúpula dos BRICS (China, Rússia, Brasil, Índia e África do Sul) realizada em Fortaleza, onde a Rússia e a China jogaram um papel fundamental para a criação de um banco internacional, alternativo ao FMI e ao Banco Mundial e com funcionamento de um fundo de ajuda para o desenvolvimento.

Achille Lollo é jornalista italiano, correspondente do Brasil de Fato na Itália, editor do programa TV “Quadrante Informativo” e colunista do “Correio da Cidadania”.

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