Uma vala nos separa
A iniquidade é a marca dos tempos atuais. Os ricos transformaram o planeta em uma terra arrasada, uma terra de ninguém, uma terra apenas deles mesmos.
As riquezas se concentram nas mãos de poucos. Enquanto a imensa maioria da população sobrevive em condições subumanas, isso quando consegue sobreviver – quando não morre por falta de recursos, de remédios, de atendimento médico, de comida, de condições mínimas ou quando não é assassinada, vítima do Estado – uma minoria desfruta de carros importados, helicópteros, iates, mansões, luxo, luxúria. Poder. Exerce o Poder.
Os banqueiros conseguiram ocupar os principais cargos de Economia e Finanças na Europa. Dominam o governo dos Estados Unidos e da maioria dos países da América. Impõem sua vontade na África e tomaram de assalto grande parte das nações asiáticas. É a verdadeira globalização, a globalização da dominação do capital, da exploração do homem pelo homem. É o apartheid socioeconômico a ditar os rumos da humanidade.
Resultado disso é a dupla jornada de trabalho das mulheres, os baixos salários dos trabalhadores, a violência que se acomete sobre os jovens e sua falta de perspectivas, a péssima qualidade da educação e da saúde pública.
Esses são os principais algozes do povo brasileiro, que tem mais de 80 milhões de pessoas em estado de pobreza. Quase metade da população vive em condições precárias. Desta, cerca de 70% enfrentam um dia a dia extenuante, acachapante, massacrante.
Os negros são discriminados indiscriminadamente. Políticas paliativas não vão à raiz dos seus problemas. O racismo ainda predomina nas relações sociais.
As mulheres, vistas apenas como objetos de consumo e de exploração, sofrem com salários ainda menores que os dos homens, com a violência que mata de 10 a 15 por dia, o sustento da maioria das famílias, a assistência médica inadequada, principalmente na juventude, na gravidez e no pós-parto.
As crianças não têm mais espaços seguros e higiênicos para brincar. O tráfico de drogas as assola, o baixo nível de ensino as predestina à subserviência, a escassez de recursos das famílias as frustram diante de uma sociedade que impele ao consumo.
Os índios convivem com escolas da pior infraestrutura em nível nacional, falta de atendimento médico, de respeito à sua cultura, invasões de suas terras, roubo e extorsão de seus recursos naturais.
Os trabalhadores sofrem com baixos salários, assédio moral, sobrecarga de jornada, condições de trabalho das piores, a manutenção do exército de mão de obra de reserva a ameaçá-los e chantegeá-los permanentemente, enquanto estatísticas absurdamente manipuladas apontam baixos índices de desemprego.
Os sem terra lutam em todas as frentes, em todo o país, mas apesar das promessas e da Constituição a reforma agrária não vem. As foices e as enxadas conseguem vitórias a base de muita luta, necessárias diante da frustração que acomete o país.
Os sem teto são tratados como marginais, como invasores da propriedade alheia. Não são tidos como trabalhadores em busca de um direito básico de todo ser humano. São dos mais discriminados na criminalização do movimento social que o governo e as elites promovem.
Nossa terra tem donos. Poucos donos. Pouco preocupados com a alimentação da população, a preservação do meio ambiente, os direitos dos trabalhadores rurais, o emprego, a sobrevivência da fauna e da flora, a exploração consciente dos recursos hídricos e minerais. A maior floresta do mundo é sistematicamente estuprada. Empresas internacionais, madeireiras, ONGs roubam sua riqueza, queimam sua grandeza. Os Povos da Floresta choram! Nossos ancestrais desapareceram, não vêm mais à noite para conversar.
Nossas praias são privadas, descarregam os excrementos dos ricos, cercadas e cerceadas para os pobres. Em muitas delas as línguas predominantes são o inglês e o espanhol. Até nosso falar está se perdendo.
As estradas conduzem os caminhões abarrotados de riquezas que produzimos mas não desfrutamos, o desvio de recursos naturais, a propiciar altos lucros para os donos dos pedágios.
As cidades são uns amontoados. Os transportes públicos inseguros, sujos, lotados, caros. Cerca de 40% da população não tem saneamento básico, a violência, inclusive policial, campeia, não há teatros, cinemas, quadras de esportes. Os pequenos comerciantes são expulsos pelos shoppings e multinacionais, as árvores escasseiam das ruas. A especulação imobiliária expulsa os trabalhadores para bolsões irrespiráveis.
Nossa cultura está vilipendiada, invadida pelo que há de pior na pátria mãe do imperialismo, destituída do brasileirismo, contaminada pelo viés financeiro, distante da nossa realidade, longe dos nossos valores. Até o futebol, antes maior orgulho do povo oprimido, pois eram os seus filhos a brilharem nos campos, resumiu-se a meros 7 x 1.
Enquanto isso…
Os ricos estão cada vez mais ricos. Os banqueiros nadam em lucros exorbitantes, as transnacionais abastecem seus cofres e suas filiais de recursos aqui gerados. Os milionários e os bilionários se refastelam em suas mansões cercadas de grades e seguranças. Dominam os governos, os deputados, os senadores, os vereadores, os meios de comunicação. Dão as cartas em um jogo de cartas marcadas.
Não há mais diálogo. É impossível o escravo conversar com o feitor. Uma fétida e imensa vala nos separa. Uma vala insuperável. Nossas necessidades, nossos interesses, nossos sonhos, nossas vidas não nos permitem conviver com nossos algozes.
Pra vida continuar a viver, o sorriso a sorrir, a floresta a florir, o sol voltar a nascer, isso tem que acabar. Acabar de vez. Acabar porque seu tempo passou. Só acabar!
Não somos estudados nem letrados. Não nos permitiram. Temos a dor em nossa carne a nos ensinar a mais dura das lições: se não fizermos por nós mesmos, ninguém o fará. Não há iluminados, grande pai, ricos bem intencionados. Somente dois lados distintos, antagônicos. Queremos o que produzimos. Eles querem o que é nosso.
A justiça, a verdade, a igualdade e a própria vida estão do nosso lado. Tomêmo-las.
*Jornalista