Uri Avnery: A gangue do Parlamento israelense
Há algumas semanas visitei o Parlamento pela primeira vez nessa legislatura. Quis assistir ao debate de um tema que me diz respeito diretamente: a decisão da Autoridade Palestina, de boicotar produtos produzidos nas colônias exclusivas para judeus, doze anos depois de o Bloco da Paz ter iniciado esse boicote. Passei algumas horas no prédio. E, de hora em hora, minha repulsa só aumentou.
Quando fui eleito para o Parlamento de Israel pela primeira vez, assustei-me com o que vi lá. Com raras exceções, o nível intelectual dos debates aproximava-se de zero.
Era sempre um encadeamento de clichês, ampla variação sobre lugares comuns. Durante a maioria dos debates, o plenário permanecia vazio. A maioria dos deputados falava hebreu coloquial. Ao votar, muitos sequer entendiam sobre o que votavam, a favor ou contra; apenas seguiam a orientação do partido.
Era 1967, e eram deputados, dentre outros, Levy Eshkol e Pinchas Sapir, David Ben-Gurion e Moshe Dayan, Menachem Begin e Yohanan Bader, Meir Yaari e Yaakov Chazan, todos esses, hoje, nomes de ruas, estradas, praças e bairros.
Comparado ao que se vê hoje, aquele Parlamento foi a Academia de Platão.
O que mais me assustava era a rapidez com que o Parlamento aprovava leis irresponsáveis, para garantir sempre mais popularidade, sobretudo em tempos de histeria das massas. Uma de minhas primeiras iniciativas no Parlamento de Israel foi proposta de lei que criaria uma segunda Câmara, uma espécie de Senado, que teria o poder de impedir que novas leis tivessem vigência imediata, obrigando o plenário do Parlamento a reanalisar as leis aprovadas, depois de algum tempo. Com isso, esperava evitar que as leis fossem aprovadas e tornadas vigentes sob atmosfera de excessiva excitação.
Minha proposta nem chegou a ser considerada seriamente, nem pelo Parlamento nem pela opinião pública. Foi rejeitada no Parlamento por quase unanimidade. (Anos depois, vários deputados me disseram que lamentavam ter rejeitado aquela proposta.) Os jornais apelidaram a nova Câmara de “Casa dos Lordes”, para ridicularizá-la. O jornal Haaretz dedicou à proposta uma página inteira de quadrinhos e caricaturas; eu, com peruca de juiz britânico.
Portanto, a coisa continuou. E continuaram a aprovar leis irresponsáveis, muitas delas racistas e antidemocráticas. Hoje, é uma avalanche. Quanto mais o governo vai-se convertendo em assembleia de políticos oportunistas, mais improvável que a avalanche seja contida. O atual governo, o maior, o mais sórdido, o mais desprezado na história de Israel, coopera com os membros do Parlamento que apresentam propostas de lei e em muitos casos, apresenta, o próprio governo, suas propostas de leis.
O único obstáculo que resta a esse desmando é a Suprema Corte. Dado que Israel não tem Constituição escrita, a Suprema Corte assumiu o poder de anular leis absolutamente escandalosas que violam princípios democráticos e direitos humanos. A Suprema Corte só intervém em casos extremos. Mas também a Suprema Corte está tomada por juízes de direita e de ultra direita que trabalham para desmoralizá-la e, portanto, tem idéias muito típicas sobre o que sejam princípios democráticos e direitos humanos.
E assim se criou uma situação paradoxal: o Parlamento, que deveria ser expressão da democracia, é, hoje, a maior ameaça que pesa contra a democracia em Israel.
O homem que, mais que todos, personifica esse fenômeno é o deputado Michael Ben-Ari da facção “União Nacional”, herdeiro de Meir Kahane, cuja organização (“Kach”) foi tornada ilegal há muitos anos, pelo caráter abertamente fascista.
O próprio Kahane só foi eleito ao Parlamento uma vez. A reação dos demais deputados sempre foi clara: cada vez que Kahane levantava-se para falar, a sala praticamente se esvaziava. O rabino discursava para meia dúzia de seus partidários de ultra direita.
Há algumas semanas visitei o Parlamento pela primeira vez nessa legislatura. Quis assistir ao debate de um tema que me diz respeito diretamente: a decisão da Autoridade Palestina, de boicotar produtos produzidos nas colônias exclusivas para judeus, doze anos depois de o Bloco da Paz ter iniciado esse boicote. Passei algumas horas no prédio. E, de hora em hora, minha repulsa só aumentou.
A causa principal foi uma circunstância que eu não percebera de fora: o deputado Ben-Ari, discípulo e admirador de Kahane, é nome respeitado, hoje, no Parlamento de Israel. Não só não está isolado, nem posto à margem da vida parlamentar como seu mentor sempre esteve e foi; ao contrário: Bem-Ari está no centro da vida parlamentar. Vi deputados de praticamente todos os grupos à volta dele no cafezinho, e ouvindo com atenção empolgada os seus discursos no plenário. Não há dúvidas de que o Kahanismo – versão israelense do fascismo – deixou as coxias e ocupa hoje o centro do palco.
Recentemente, Israel ofereceu ao mundo uma cena escandalosa.
Na tribuna do Parlamento estava a deputada Haneen Zoabi, do grupo Balad dos nacionalistas árabes, que tentava explicar por que se reunira à Flotilha da Paz que tentara atracar em Gaza e fora atacada pela Marinha de Israel. A deputada Anastasia Michaeli, do partido de Lieberman, saltou de sua cadeira sobre a tribuna, aos gritos, sacudindo os braços, disposta a arrancar de lá Haneen Zoabi, arrastada. Outros deputados acorreram para ajudar Michaeli. Reuniu-se em torno da tribuna uma gangue ameaçadora de deputados. Só com grande dificuldade a segurança conseguiu salvar Zoabi de ser fisicamente agredida. A deputada agressora gritava, mistura de racismo e sexismo: “Vá para Gaza, aprender o que fazem com uma solteirona de 41 anos!”
Difícil imaginar contraste maior entre as duas deputadas. A família de Haneen Zoabi tem raízes seculares em Nazaré, provavelmente do tempo de Jesus Cristo. Anastasia Michaeli nasceu em Leningrado, quando se chamava Leningrado. Foi eleita “Miss Petersburgo”, tornou-se modelo, casou com cidadão israelense, converteu-se ao judaísmo, emigrou para Israel aos 24 anos, mas nunca desistiu do prenome russo. Teve oito filhos. É perfeita candidata ao título de Sarah Palin (que também foi miss) israelense…
Que eu saiba, nenhum deputado levantou um dedo para defender Zoabi durante o tumulto. No máximo, ouviu-se um débil protesto do presidente do Parlamento, Reuven Rivlin, e de um deputado do partido Meretz, Chaim Oron.
Em 61 anos de existência, jamais o Parlamento de Israel assistira a cena semelhante. Num segundo, uma assembleia democrática soberana converteu-se em gangue de linchadores.
Não é preciso apoiar a ideologia do partido Balad para respeitar a impressionante figura de Haneen Zoabi. Fala fluente e persuasivamente, é diplomada por duas universidades israelenses, luta pelos direitos das mulheres na comunidade árabe-israelense e é a primeira mulher eleita ao Parlamento de Israel por partido árabe. A democracia de Israel deveria orgulhar-se muito dela. É membro de uma vasta família árabe estendida. Um irmão de seu avô foi prefeito de Nazaré. Um de seus tios foi ministro; outro, juiz da Suprema Corte. (De fato, no meu primeiro dia como deputado eleito, propus o nome de outro membro da família Zoabi como candidato a presidente do Parlamento.)
Essa semana, o Parlamento de Israel aprovou, por larga maioria, proposta apresentada por Michael Ben-Ari, apoiada por deputados dos partidos Likud e Kadima, para caçar os direitos parlamentares de Haneen Zoabi. Antes, o ministro do Interior, Eli Yishai, havia pedido ao Advogado Geral que aprovasse seu plano para cassar a cidadania israelense de Zoabi, sob acusação de traição. Outro deputado gritou para ela: “Você não tem direito de estar no Parlamento de Israel! Você não tem direito de usar identidade israelense!”
No mesmo dia, o Parlamento israelense obrou contra o fundador do partido de Zoabi, Azmi Bishara. Em votação preliminar, aprovaram projeto de lei – também dessa vez apoiado por membros dos partidos Likud e Kadima – para cassar a aposentadoria que a que Bishara faz jus, depois de renunciar ao cargo de deputado (vive no exterior, ameaçado de condenação por espionagem se voltar a Israel.)
Os orgulhosos padrinhos dessas iniciativas, que receberam apoio massivo dos partidos Likud, Kadima, do partido de Lieberman e de todos os grupos de judeus religiosos, não escondem a intenção de expulsar todos os árabes do Parlamento, para constituir um Parlamento só de judeus em Israel.
As mais recentes decisões do Parlamento israelense são passos de uma mesma longa campanha, que todas as semanas gera novas iniciativas, por deputados sedentos de publicidade, que sabem que quanto mais racistas e antidemocráticas forem suas leis, mais votos ganham.
Foi o que aconteceu essa semana, nas decisões do Parlamento de Israel, que obrigam todos quantos aspirem à cidadania israelense a jurar fidelidade a “Israel, estado judeu democrático”. É lei que obrigará os árabes (sobretudo as esposas estrangeiras de cidadãos árabes) a subscrever a ideologia sionista. Equivalente dessa lei seria lei do Congresso dos EUA que exigisse que os cidadãos norte-americanos jurassem fidelidade aos EUA definido como “estado anglo-saxão, protestante e branco.”
A irresponsabilidade do Parlamento israelense já não tem limites. Todas as linhas da decência já foram derrotadas há muito tempo. E não se trata de deputados que representam 20% dos cidadãos. Há tendência crescente no sentido de privar da cidadania israelense todos os cidadãos árabes-israelenses.
Essa tendência relaciona-se ao cada dia mais violento ataque ao estatuto legal dos árabes que vivem em Jerusalém Leste.
Essa semana, assisti à audiência, na corte de magistrados de Jerusalém, sobre a prisão de Muhammed Abu Ter, um dos quatro deputados do Hamás no parlamento palestino em Jerusalém. A audiência foi realizada numa saleta diminuta, com espaço apenas para 12 pessoas. Só consegui entrar com muita dificuldade.
Eleitos em eleições democráticas, e como é obrigação clara de Israel nos termos do acordo de Oslo, esses deputados árabes foram empossados e admitidos como parte do governo em Jerusalém Leste. De repente, o governo de Israel anunciou que revogara o direito dos mesmos deputados à identidade de “residentes permanentes”.
O que significa isso? Quando Israel “anexou” Jerusalém Leste em 1967, o governo não imaginava conferir cidadania aos habitantes da cidade. Sem esses votos, diminuiu muito o número de eleitores árabes em Israel. Tampouco inventaram algum novo status para os árabes. Sem alternativas, os habitantes árabes de Jerusalém tornaram-se “residentes permanentes” – o mesmo status que Israel oferece a estrangeiros que queiram permanecer em Israel. O ministro do Interior tem o direito de revogar o visto dos “residentes permanentes” e pode deportar essas pessoas para seus países de origem.
Muito evidentemente, a definição de “residentes permanentes” não se aplica aos habitantes de Jerusalém Leste. Eles e seus ancestrais nasceram ali, não têm e jamais tiveram qualquer outra cidadania ou local de residência. Revogar o visto converte-os em politicamente ‘sem-teto’, pessoas sem qualquer proteção de qualquer tipo.
Na corte, os advogados do Estado de Israel argumentaram que, dado que seu visto de “residente permanente” fora cancelado, Abu Ter ter-se-ia tornado “pessoa ilegal”, depois que se recusara a abandonar a cidade. Por esses crimes, mereceria prisão por tempo ilimitado.
(Poucas horas antes, a Suprema Corte julgara pedido nosso, de investigação independente para o incidente da Flotilha da Paz em Gaza. Obtivemos vitória parcial, mas significativa: pela primeira vez em sua história, a Corte Suprema de Israel votou tema relacionado a comissões de inquérito. A Corte decidiu que os militares envolvidos no ataque à Flotilha da Paz devem ser interrogados e que, caso o governo tente evitar esses depoimentos, a Corte novamente interferirá.)
Se ainda há quem se iluda e creia que a gangue do Parlamento em Israel só atingirá “os árabes”, estão perigosamente errados. A única pergunta que resta é: quem será a próxima vítima?
Essa semana, o Parlamento analisou em primeira sessão de leitura, proposta de lei para impor pesadas penas a qualquer cidadão israelense que pregue boicote contra Israel em geral, e, em especial, contra empresas, universidades ou outras instituições do Estado, inclusive contra as colônias exclusivas para judeus. Qualquer dessas instituições passa a poder exigir indenização de 5.000 dólares, da organização que pregue o boicote, ‘por cabeça’ dos signatários de manifestos ou ‘apoiadores’ a qualquer título, de qualquer tipo de boicote.
Pregar boicotes é meio democrático de manifestação. Sempre fui contra boicote ‘genérico’ contra Israel, mas (aprendi de Voltaire) sempre defenderei o direito de qualquer cidadão que decida boicotar Israel. O real objetivo da proposta de lei que começa a ser votada é, claro, proteger as colônias exclusivas para judeus: visa a impedir a manifestação dos que pregam que se boicotem os produtos vendidos pelas colônias que produzem em território ocupado, ilegal, à margem do Estado. Tenho muitos amigos ameaçados. Eu também estou sendo ameaçado.
Desde a fundação, Israel jamais deixou de vangloriar-se de ser a “Única Democracia do Oriente Médio”. Esse mote é a jóia da coroa da propaganda israelense. E o Parlamento deveria ser símbolo dessa democracia.
Hoje, a gangue que assumiu o comando do Parlamento está determinada a destruir essa imagem de democracia, de uma vez por todas. Israel terá de conformar-se com ser conhecida como democracia igual a tantas, como a Líbia, o Iêmen, a Arábia Saudita.
Fonte: http://www.planetarymovement.org/go/newsflash/a-parliamentary-mob-by-uri-avnery/