Grécia: Nem soberania, nem sequer migalhas sociais são possíveis na União Europeia
1° de março de 2015
“O risco de que, depois da decepção popular ante a impotência do Syriza, surjam derivações e alternativas de corte fascista é mais que provável, tanto na Grécia como no Estado espanhol”
Vivemos tempos de urgência (e de atraso) na hora de enfrentar a gravíssima e persistente emergência social sofrida por povos como o nosso – praticamente a mesma tragédia que o grego –, onde a profunda crise estrutural capitalista aumenta a partir do objetivo imperial da Alemanha e de seu “núcleo duro” de submeter criminosamente a periferia da UE. Vivemos tempos de guerra social, onde não cabe o eleitoralismo paralisante (tampouco as esperas pelos “primeiros cem dias de governo recém-eleito”) para tirarmos ensinamentos que, na realidade, urgem por mais que possam dar a impressão de serem precipitados. São os acontecimentos que não param de nos ameaçar com precipitações ao vazio. Por isso, com um grande sentido de responsabilidade em razão dos tempos convulsos e confusos que vivemos, a Red Roja apresenta estas reflexões acerca do acordo entre o Syriza e a Troika sem prejuízo de que mais adiante seja esclarecido e ampliado, e muito consciente de que suas repercussões afetam muitos mais além do cenário grego.
Na verdade, a única surpresa das negociações entre o governo do Syriza e a Troika foi a rapidez com que ficou claro quem manda na Grécia. O documento que contém as propostas gregas foi aceito em um tempo recorde por Bruxelas com o objetivo de cancelar o risco da desestabilização política e econômica – e, sobretudo, de contágio – que pudesse acarretar dúvidas sobre sua permanência no Euro. Apesar deste contexto de pressão política que deixava entrever fragilidades por parte da UE, e apesar das necessidades prementes da Grécia, o BCE não desembolsará nem um euro até o mês de maio e isso se o Governo cumprir todos os compromissos assumidos.
A realidade, nua e crua, é que o acordo não recua em nenhuma das medidas já impostas pelos anteriores memorandos, nem permite que as necessidades sociais dos setores da população mais desesperada alterem uma vírgula do cumprimento dos objetivos de déficit. A Troika não aceita nem anistia parcial da Dívida, nem períodos de carência, nem muitos menos prorrogar o pagamento até que se gere crescimento econômico. Só faz uma vaga promessa de alívio dos interesses da Dívida e de alargamento dos prazos de devolução, sempre que existam superávits fiscais; ou seja, quando as receitas públicas forem maiores que os gastos.
O problema dos amplos setores operários e populares foi ter acreditado nas apelações verbais à soberania do povo grego e à democracia, agitadas pelo Syriza como armas válidas ante a ditadura da UE. A realidade, apesar de tanta manifestação teatral ante a imprensa, é que a dignidade do povo grego, aquela contra a qual o Presidente da Comissão Europeia admite ter atentado, continua sendo ultrajada e atropelada e sua soberania sob intervenção. Porém, o que se poderia esperar das instituições europeias que, nos mesmos dias de negociações com o governo grego, pressionam o governo “amigo espanhol” para que continuem com as reformas, ou seja, com os cortes? Como acreditar que estejam dispostos inclusive a concessões cosméticas lá se não param de pressionar, por exemplo, aqui, que se está em ano eleitoral?
Imediatamente depois de ganhar as eleições, o Syriza renunciava a uma proposta estritamente política “sem custo fiscal”: convocar uma conferência internacional para tratar da reestruturação da Dívida dos países do sul da Europa. Esta medida, que permitia abrir um cenário internacional para que os diferentes países pudessem tratar conjuntamente problemas que possuem as mesmas origens e que reclamam soluções coordenadas, está longe da imprescindível saída do euro e da UE, porém poderia supor um bom começo, se, no curto prazo, significasse o fim da política de austeridade.
O abandono dessa proposta representa a desistência da perspectiva de alcançar o principal instrumento de força que possam ter os países subjugados pela UE: sua atuação articulada para espaços socioeconômicos integrados, como bem assinalava, em um exercício de honestidade, o recém-eleito deputado do Syriza, Costas Lapavitsas no texto “Grécia: cinco perguntas que precisam de resposta”, escrito depois de assinado o acordo n° 1.
O essencial do acordo com a Troika (as mudanças na liguagem para chamar de “três instituições”) afeta os dois eixos principais do programa eleitoral do Syriza: a reversão das privatizações e o programa social; aspectos que, na realidade, longe de constituir algum projeto revolucionário, pretendiam restaurar um mínimo da dignidade nacional vendida e enfrentar as emergências sociais mais graves.
A alienação massiva do patrimônio artístico e do território grego realizada pelos governos anteriores e exigida pelos memorandos é um dos símbolos mais dolorosos do atropelo da soberania e da dominação impiedosa exercida pela UE. Antes de se iniciarem as negociações com a Troika, em 10 de fevereiro, o novo Governo já anunciou que – contradizendo suas promessas – continuaria com a privatização do emblemático porto do Pireu, em Atenas. Agora, o Syriza se compromete a não reverter para as mãos públicas nenhuma das privatizações realizadas e a não paralisar nenhuma daquelas que ainda não foram consumadas.
O adiamento sine die ou o abandono de promessas eleitorais em matéria social evidenciam a magnitude das cadeias que a Troika impõe à Grécia e que o governo do Syriza aceitou:
– Postergação, sem data, da elevação do salário mínimo a 571 euros, que, em qualquer caso teria que ser negociada previamente com a UE “para não prejudicar a competitividade”.
– Modificar as leis trabalhaistas para aumentar a contratação temporária.
– Não anistiar as dívidas dos setores mais pobres com a seguridade social, o fisco ou os bancos.
– Eliminar exceções e descontos no pagamento do IVA2; ou seja, aumentá-lo.
– Subordinar o programa social de emergência de 1.800 milhões de euros a que não aumente o teto do déficit comprometido.
– Anular sua proposta de aumentar em 60 euros adicionais as pensões daqueles estão abaixo do limite da pobreza.
Em resumo, da forma mais cínica imaginável em um país que tem milhões de pessoas vivendo situações desesperadoras, só podem ser adotadas medidas sociais se as mesmas não possuírem repercussões no aumento do gasto e na observância férrea dos limites de déficit.
Os hipotéticos aumentos de receitas fiscais das grandes fortunas que o Syriza preconizava também se desvanecem em velocidade vertiginosa. Antes de ter empreendido alguma reforma fiscal, a qual se alude de forma imprecisa no acordo, o Ministro das Finanças (que tanta poeira midiática levantou e que tão rapidamente se submeteu) já está assinalando que será muito difícil fazer com que tributem as fabulosas rendas dos armadores gregos e da toda poderosa igreja ortodoxa, que apesar de ser a maior proprietária do país (só está atrás do Estado) não paga absolutamente nada.
Nada disso nos surpreende. O editorial “Suas eleições e a nossa”, publicado no último número de nossa revista dizia: “Não ocorreu uma eleição que nos valesse para acabar com a política de anticortes, que nos inserisse ao objetivo estratégico de escapar da escravidão da UE, começando por sua dívida odiosa”. Como a Red Roja veio demonstrando, os objetivos impostos pela UE aos Estados da Zona do Euro pelo Tratado de Estabilidade (e das leis que o desenvolvem) de rebaixar o déficit e a dívida, estão relacionados a um cenário de queda geral da renda das Administrações Públicas pelo descenso da atividade econômica, à negação flagrante de qualquer soberania política e, em definitivo, ao fim dos serviços públicos.
É indispensável que analisemos com rigor e sentido crítico a realidade de um país como a Grécia que compartilhe nossa sorte de periferia europeia empobrecida pela oligarquia financeira, sobretudo alemã. Ainda mais quando tantas esperanças estão sendo depositadas em uma possível vitória do Podemos nas próximas eleições. No marco de uma crise geral do capitalismo sem que as classes dominantes prevejam outra saída que não seja aumentar brutalmente a depredação e a exploração da classe trabalhadora e setores populares, que já vivem situações de miséria muito graves, é vital não errar no diagnóstico e, sobretudo, no tratamento.
Limitar-se a depositar todas as energias na aposta eleitoral e fazê-lo na aventura de uma força política que não planeja com clareza a necessidade imperiosa de acabar com o pagamento da dívida e sair do Euro e da UE, pode ser muito perigoso. Porque como de fato já se está materializando no caso grego, com a ambiguidade presidindo o discurso político antes das eleições, o mais provável não é que estejamos ante uma tática que surpreenderá o poder real após ganhar o governo, mas que essa ambiguidade agora seja a antessala do desmoronamento de qualquer resistência ante as pressões desse poder real depois da “vitória eleitoral”. Além disso, terá que esperar que isso aconteça, precisamente porque não se conta com um povo com clara consciência das decisões de ruptura política que precisam ser adotadas e que esteja preparado com suficiente organização e força para disputar os interesses do capital, ao qual não será a papeleta com que se emitem os votos que atribuirá mais respeito (temor).
Além do mais, as miragens em épocas de bonança – como foi o discurso do “Estado de Bem-Estar”, a custa da periferia do sistema – conduzem a confusões graves. Em momentos como os atuais devem ser evitados a todo custo, porque seus efeitos seriam irreparáveis.
O risco de que, depois da decepção popular ante a impotência do Syriza, surjam derivações e alternativas de corte fascista é mais que provável, tanto na Grécia como no Estado espanhol. Frente a isso, a atitude necessária não é a de justificar contra todas as possibilidades de submissão (quando, como agora, começa a ser impossível negá-la) enquanto os problemas vitais do povo continuam sem serem resolvidos. Muito pelo contrário, essa será a melhor maneira de semear decepções de massas que facilitem a estratégia fascista e de divisão no seio do povo.
Nessa direção se pronunciou o Partido Comunista da Grécia (KKE), depois de propor um programa para atender as necessidades mais prementes das clases populares que, inevitavelmente, rompe com os objetivos de austeridade da Troika: “A classe operária e o povo podem conquistar tudo isso mediante a organização, a luta e a unidade. Deve ser o combate por um caminho de desenvolvimento diferente que sirva às necessidades populares imediatas e que deve levar à retirada da União Europeia, ao cancelamento unilateral da dívida, à socialização dos monopólios e ao poder do povo”.
Efetivamente, é preciso romper com a UE e com o euro. E a única coisa que deve ser discutida é como acumular força para isso e não negar esse objetivo primordial porque parece difícil obtê-lo. O impossível é garantir um mínimo de saúde para o povo permanecendo nessas amarras imperiais. A Venezuela sabia muito bem disso (que agora muitos, mais dependentes dos cálculos eleitoreiros que de coisas como o anti-imperialismo, renegam) quando decidiu romper com a ALCA e criar a ALBA para conquistar o mínimo de soberania necessária para iniciar qualquer processo de mudança.
Concluímos com as firmes palavras do eurodeputado Manolis Glezos – herói emblemático da luta antifascista durante a II Guerra Mundial – pronunciadas apenas aos que conheceram as condições do acordo do novo Governo com a Troika. Ditas palavras mostram o caminho com a força e a clarividência da memória frente àqueles que parecem acreditar que partimos do zero ou que a história das promessas e decepções eleitorais começaram este ano. “Peço perdão ao povo grego porque eu também participei desta ilusão. Agora, antes que seja tarde demais, devemos reagir”, disse, dirigindo-se aos militantes e simpatizantes do Syriza. “Devemos nos mobilizar em todos os níveis organizativos para decidir se aceitamos ou não o que está ocorrendo”.
Como agora expressa Manolis Glezos, na Red Roja temos muito claro quais são suas escolhas e qual deve ser a nossa.
Fonte: http://www.resumenlatinoamericano.org/2015/03/02/grecia-ni-soberania-ni-siquiera-migajas-sociales-son-posibles-en-la-union-europea/
Tradução: Partido Comunista Brasileiro (PCB)