Conflitos no campo: o rastro da violência e da política
Os 371 ruralistas do Congresso possuem quase 1 milhão de hectares. É esta máquina poderosa que tenta barrar o crescimento da agricultura familiar.
Najar Tubino
A Comissão Pastoral da Terra divulgou o relatório sobre os conflitos ocorridos no Brasil em 2014, envolvendo a posse da terra, água, questões trabalhistas, condições análogas à escravidão e violência – assassinatos ou ameaças – que atingiram, 817.102 pessoas e 8,13 milhões de hectares. A CPT, que está completando 40 anos em 2015, faz o registro dos dados desde 1985. Paralelo aos números desse ano, também divulgaram informações sobre os últimos 30 anos de conflitos no campo no país. Os números são impressionantes; foram 28.805 conflitos, com destaque para a região Nordeste com 10.488 (36%) e a região Norte com 7.770 (27%) e mais de 19 milhões de pessoas envolvidas.
Como os conflitos não ocorrem de forma pacífica, mas são historicamente violentos e, em casos extremos, com muitos feridos ou mortos. No Nordeste foram 9.736 pessoas feridas – com registro maior nos estados da Bahia, Maranhão e Paraíba – e 474 vítimas de assassinatos. O primeiro lugar, nesta questão, está à região Norte com 775 vítimas (40%) dos assassinatos no país. Consequência da criminalidade no garimpo, invasão de terras indígenas e de comunidades ribeirinhas. No caso do Nordeste existem muitos casos relacionados às secas e invasões nas décadas de 1980 e 1990. Muitas famílias também tiveram plantações queimadas por parte de latifundiários e policiais, destruição de casas, além da violência física e das mortes.
O país da pistolagem
Em 1985 ocorreram 125 assassinatos de camponeses no Brasil, líderes de comunidades e presidentes de sindicatos e associações. Em 2014, a CPT computou 17.695 ocorrências de pistolagem em todo o país, sendo quase a metade na região Norte – Pará com 27% -, com uso de jagunços, matadores profissionais ou milícias – empresas de segurança. As ocorrências significativas, com maior número de pessoas, localizada em estados onde está em jogo a permanência na terra de comunidades tradicionais, que ali moram há muito tempo. Isso inclui áreas indígenas e até mesmo de assentados da reforma agrária. No caso do Nordeste o destaque é o Maranhão. Os números de 2014 destacam ainda 12.186 famílias despejadas por ordem judicial e 23.061 expulsas – Nordeste e Norte lideram com 35,6% e 34%, respectivamente.
Nos últimos 10 anos também cresceram os conflitos relacionados à água, ou seja, construção de barragens e açudes, uso e preservação e apropriação particular atingindo 322.508 famílias. Em 2014 houve um aumento com registro de 127 casos e 42.815 famílias envolvidas. Maior evidência é o Pará, em função da construção de Belo Monte, que atinge 5.241 famílias. Em 10 anos 177.999 famílias foram atingidas pelas construções de barragens e açudes. Isso inclui estados do Sudeste, como Minas e Rio de Janeiro. No caso do Rio no período 2005-2014 foram 66.607 famílias, com destaque para o conflito com a Companhia Siderúrgica do Atlântico, empreendimento da Thyssen Krupp em parceria com a Vale, que atingiu oito mil famílias. Minas Gerais está em terceiro lugar com 26.179 famílias e 108 ocorrências nos últimos 10 anos.
A vida próspera do senador Eunício Oliveira
Na questão do trabalho escravo foram 1.752 pessoas encontradas em situação análoga à escravidão e 263 estabelecimentos fiscalizados. As atividades agrícolas lideram o número de casos (120). Os números são inferiores aos últimos anos, porém, o resultado está muito mais ligado à falta de fiscais, interferência negativa das chefias e por deixar de ser uma prioridade. Sem contar a pressão política do Congresso Nacional que está tentando mudar a definição de “condições análogas à escravidão”.
Outro tema avaliado pela CPT são as mobilizações pela reforma agrária que ocorrem no país. Certamente o maior destaque foi a invasão da Fazenda Santa Mônica, localizada nos municípios de Corumbá de Goiás e Alexania, a 110 km de Goiânia e 130 km de Brasília, cujo proprietário é o senador Eunício Lopes de Oliveira. A fazenda tem 21 mil hectares e foi invadida por três mil famílias, que ocuparam uma área de 100 hectares, onde plantaram verduras, legumes e outras culturas. No dia 4 de março de 2015 dois mil policiais efetuaram o despejo. Logo em seguida, um lote de bois da Santa Mônica comeu o que iria ser colhido.
O sogro era o cacique do PMDB
O senador Eunício de Oliveira, do PMDB, foi para Brasília com 23 anos, na época já atuava no ramo de Transporte e Segurança de Valores. Era executivo do empresário Clodomir Girão no Ceará, que já atuava nessa área. Eunício é natural de Lavras de Mangabeira (CE), município onde a irmã foi prefeita recentemente. Cresceu rápido na política, certamente em decorrência do parentesco, porque o sogro era o cacique do PMDB nacional, Paes de Andrade. Do Grupo Ultra, na área de segurança e transporte de valores foi para a Confederal Vigilância e Transporte, empresa que fazia a segurança do Ministério da Fazenda, e também a limpeza da Câmara e de diversos ministérios. Consta em sua declaração ao TRE em 2014, que ainda tem R$2,5 milhões para receber da empresa. Uma ninharia, já que o patrimônio declarado do senador é de R$100 milhões. Em 2010, ele declarou à justiça eleitoral 72 imóveis rurais. Quatro anos depois foram 88, comprou 16 em quatro anos.
Ele se elegeu deputado federal em 1999, mas já em 2003 mostrava sua aptidão para a agropecuária, pois abatia 10 mil bovinos naquele ano em Goiás. Logo embarcou no novo governo e acabou Ministro das Comunicações. Ele também foi presidente da Federação das Empresas de Segurança e Transporte de Valores (FENAVIST). Trata-se de um ramo promissor, pois os líderes do acampamento Dom Tomás Balduíno, na Santa Mônica, disseram que a fazenda é improdutiva e tem áreas arrendadas para terceiros. O senador chegou a comentar, antes do despejo, que poderia vender a propriedade para o INCRA por R$400 milhões.
Políticos do agronegócio
É claro que o senador Eunício é um dos líderes da chamada Bancada Ruralista, que na verdade nem pode ser chamada de propriamente uma bancada. Segundo o trabalho de pesquisa de Sandra Gonçalves Costa, da USP – A questão agrária e a bancada ruralista no Congresso Nacional – dos 513 parlamentares, nada menos do que 374 votam a favor das propostas destes ilustres senhores e senhoras. Ela desmembrou este número: 118 se declaram como agricultor, produtor rural, fazendeiro, pecuarista, avicultor, cafeicultor, empresário rural, agrônomo, veterinário, ou agropecuarista, como o próprio senador Eunício. Eles não são os representantes do agronegócio, eles são o próprio agronegócio. Muito importante ressaltar: 54 deles foram filiados diretamente à ARENA, o partido de sustentação da ditadura.
Existem muitos grupos empresariais, gerações que se sucedem na política, como o caso do senador Ronaldo Caiado, tataraneto do coronel Antônio José Caiado, que foi comandante superior da Guarda Nacional e vice-presidente da Província de Goiás nos anos 1800. Caiado é proprietário de quase seis mil hectares de terra. Já a senadora Kátia Abreu se tornou proprietária com uma dádiva governamental, o projeto chamado Campos Lindos, do governo do Tocantins, na época de Siqueira Campos, a família que sempre administrou o estado como uma capitania hereditária. O projeto, criado em 1989, distribuiu lotes para interessados na produção de grãos ou de frutas. A senadora recebeu dois lotes somando 1.265 hectares depois mais outro, totalizando 2.485 hectares.
Projeto exportador das multinacionais
O governo tocantinense desapropriou 105 mil hectares e dizia no lançamento do projeto que beneficiaria os posseiros que ali moravam há várias décadas. Na verdade doou os lotes para políticos e figuras conhecidas, inclusive para o irmão da senadora, Luiz Alfredo de Abreu. Em 2005, um hectare de terra valia R$5.200 no município de Campos Lindos, hoje vale mais de R$10 mil. Entre os anos de 2000-2010, das 129 denúncias de trabalho escravo no estado, 123 eram de Campos Lindos. Em 2015, a delegacia do trabalho do Tocantins já anunciou que não fará nenhuma fiscalização em propriedades para verificar a situação dos trabalhadores. O motivo: são sete fiscais para todo o estado.
O Tocantins virou um modelo de agronegócio exportador comandado pelas transnacionais, como Bunge, que tem plantação de cana e uma usina em Pedro Afonso, a Cargill, com três unidades, a Ceagro, a Multigrain, e por último chegaram ADM e o grupo Amaggi. É preciso acrescentar os japoneses que participam desde a criação do estado do projeto chamado PRODECER, de irrigação nos municípios de Lagoa da Confusão e Formoso do Araguaia – investiram no plantio de arroz e soja irrigados.
Como diz a pesquisadora Sandra Helena Costa, os deputados federais e senadores de tradição consolidada na política possuem um enorme patrimônio fundiário, capital e poder. E quase um milhão de hectares somando as terras declaradas 371 deles. Óbvio que no cálculo não estão as terras em nome de familiares, muito menos as terras ilegais. É esta máquina poderosa que tenta de todas as formas barrar o crescimento da agricultura familiar, da agroecologia e a organização dos trabalhadores, posseiros, extrativistas, ribeirinhos e indígenas. No Brasil, além da conjuntura desfavorável, as comunidades tradicionais, os grupos independentes, àqueles que pensam e produzem e querem avançar noutra direção, combatendo o agronegócio econômico e político, lutam contra um passado trágico. Mas foi nesta época que as famílias oligarcas começaram a estabelecer o seu poder.
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