Cunhal e o anti-imperialismo: a propósito da Grécia
Rumo à Vitória, Cunhal escrevia que “há antifascistas que defendem que o movimento democrático português jogue já hoje na carta do Mercado Comum, prometendo aos monopólios alemães, franceses, e italianos, todas as facilidades e vantagens após o derrubamento da ditadura fascista” . A precisão milimétrica com que este plano se cumpriu nos anos que se seguiram ao 25 de Abril, quando estes tais “antifascistas” se transformaram no PS e no PPD, é assombrosa. Como assombrosa é a afirmação, que veio a fazer dois anos mais tarde, de que “a admitir-se a sobrevivência no essencial do aparelho de Estado fascista, as liberdades estariam desde o início ameaçadas, e não deixariam de ser violadas e suprimidas pelo mesmo aparelho de Estado, no dia em que as classes que efectivamente continuariam a dominar esse aparelho sentissem ameaçados os seus interesses” .
Estes dois ensinamentos de Cunhal têm uma aplicação evidente ao caso grego. São os dois elementos fundamentais que constituem o caso grego, sem os quais nada do que na Grécia se passa seria minimamente legível para quem observa o desenrolar dos acontecimentos. Por um lado, as “facilidades e vantagens” dadas pela burguesia grega aos monopólios alemães dentro do seu país, e a fusão operada entre os interesses da burguesia grega e os do imperialismo, que reservaram à primeira um estatuto de sócia menor e a absoluta – e definitiva – ausência de um papel histórico a cumprir. A Grécia vive hoje num estatuto em que “cada dólar, cada libra, cada marco [e hoje em dia, sobretudo, cada euro] investido no país é mais uma vergonhosa corrente amarrada à independência” nacional e em que a burguesia grega e o imperialismo alemão, os tais “gémeos siameses unidos não pelas costas mas pela barriga” , na divertida e esclarecedora metáfora de Cunhal, agem concertadamente para explorar e oprimir os trabalhadores da Grécia. Sendo que o fazem – e aqui estamos no segundo e crucial ponto – porque dispõem de uma organização política, económica, diplomática, e quando for preciso policial e militar, para vibrar sobre os trabalhadores gregos as mais violentas agressões. Ainda no Cunhal não podia ser mais esclarecedor sobre este ponto: “o domínio imperialista estrangeiro (…) cria uma dificuldade suplementar para a libertação do povo português: é a força económica, diplomática, e militar, que está por detrás dos monopólios estrangeiros” .
Com essa força económica, diplomática e militar, o diálogo é de tal modo impossível que a sua proposta é já ridícula. Não se negoceia com o imperialismo. Não se conversa com o imperialismo. Não se leva o imperialismo pela mão, com bons modos e palavras doces, a moderar-se e a portar-se bem. A mera enunciação desta proposta é já um disparate que seria cómico, não fosse arrastar atrás de si o drama e o sofrimento de milhões de pessoas: “Lenine alertava contra quaisquer ilusões que pudessem existir acerca da possibilidade de realizar a revolução socialista se o proletariado e as classes oprimidas se limitasse a tomar conta do aparelho de Estado, cuidando poder utilizá-lo contra a burguesia. Em conformidade com tal conclusão, indicava ao proletariado russo e ao seu partido uma tarefa capital para a conquista do poder pelos trabalhadores: a destruição do Estado burguês e a construção de um novo Estado, dum Estado dos operários e camponeses que, sob a direcção da classe operária, quebrasse a resistência decerto encarniçada da burguesia, suprimisse a exploração do homem pelo homem, pusesse termo à divisão da sociedade em classes, assegurasse a transformação revolucionária da sociedade capitalista em sociedade socialista. Tal é a essência da ditadura do proletariado” . A que distância longínqua de compreender esta evidência, que é válida por maioria de razão para as instituições internacionais de Estados burgueses tanto como para os Estados nacionais individualmente consideradas, se encontra o Syriza e o seu Governo!
É de uma evidência que se mete pelos olhos adentro que a incompreensão destes dois fenómenos, a natureza de classe da União Europeia e a necessidade premente da libertação da Grécia do domínio imperialista, são a base fundamental da traição do Syriza. Proponente de um programa político pequeno-burguês, reformista, de UE sim mas menos bruta na agressão do povo, programa ridículo e materialmente inexequível, Tsipras e o Syriza (tirando certas fracções do Syriza que começam a rebelar-se) mostrou precisar, com urgência, de revisitar estes textos de Álvaro Cunhal. Muito teria a aprender com eles e ainda com um outro, onde é dito que “esta corrente ideológica do radicalismo pequeno-burguês manifesta-se, por um lado, na criação de grupos ou partidos pequeno-burgueses de “opção socialista” e de verbalismo esquerdista; por outro, ” . O sublinhado é meu, por esta frase captar como nenhuma outra a consequência nefasta da influência do Syriza no seio do proletariado grego: o semear de ilusões reformistas, a revisão dos princípios centrais da ideologia do proletariado, o desarmamento ideológico da classe, o seu encaminhar para a derrota. Cunhal seria um precioso auxílio para os trabalhadores gregos se libertarem da escória revisionista que o encaminha para becos sem saída. Que o seus ensinamentos sejam colhidos, na prática da luta, por esses trabalhadores.
(1) Cunhal, Álvaro – . 2ª edição, Lisboa: Edições Avante, 1979, p. 93.
(2) Cunhal, Álvaro – . Lisboa: Edições Avante, 1977, p. 26. Escrito em 1967, este texto não consta das Obras Escolhidas do autor relativas ao período de 1967-74.
(3) Rumo à Vitória, p. 93.
(4) Rumo à Vitória, p. 87.
(5) Rumo à Vitória, p. 86.
(6) A Questão do Estado…, p. 12.
(7) Cunhal, Álvaro – . In Obras Escolhidas, vol. IV, Lisboa: Edições Avante, 2013, p. 462. O original encontra-se em Este artigo encontra-se em .