Pacote do austericídio: mais do mesmo
Ao invés de atacar a gastança com a dívida pública e a sonegação de impostos dos super-ricos, o governo volta a repetir as surradas fórmulas do passado.
Paulo Kliass*
O anúncio da nova etapa do pacote do austericídio deixava no ar um sentimento um pouco confuso. Para quem buscava se fixar na lembrança da imagem da candidata do “coração valente”, a entrevista coletiva concedida por dois de seus principais ministros transmitia apenas uma cena bastante difusa. Algo meio trágico, muito triste, bastante patético.
Impressionava assistir aquelas declarações emitidas por responsáveis de um governo eleito por um partido que se diz representante dos trabalhadores. Repetiu-se, mais uma vez, aquela mesma lengalenga de sempre. A gravidade do momento. A emergência da crise. A responsabilidade do governo em fazer a sua parte. A necessidade de compartilhar o esforço por todos os setores da sociedade. Mas a crueldade permanece direcionada para os menos protegidos. Mais uma vez, trabalhadores, servidores públicos, aposentados e a grande maioria da população que depende dos serviços públicos serão os grandes prejudicados.
Ocorre que a lógica do pacote fiscal divulgado na tarde de segunda-feira não alterou em nada a percepção equivocada a respeito das origens das dificuldades que o Brasil enfrenta. Tampouco a racionalidade subjacente ao pacote mudou no que se refere às soluções sugeridas na esfera do financismo. Basta verificar as opiniões e as sugestões que vem sendo apresentadas pelos tubarões da banca e de suas empresas de consultoria financeira. Está quase tudo ali na lista apresentada por Barbosa e Levy.
A insistência com o superávit primário.
Talvez um dos elementos mais perturbadores seja a insistência do governo em continuar operando com a necessidade de gerar “superávit primário”. Esse é o primeiro grande nó, aquele que amarra toda e qualquer busca de caminhos para a superação da crise de uma perspectiva desenvolvimentista. Integrante do famoso “tripé de política macroeconômica” em operação desde o Plano Real em 1994, o golpe do “primário” impressiona por sua longevidade.
Afinal, quem disse que o reequilíbrio necessário nas contas públicas deva passar necessariamente pela aceitação passiva dessa armadilha imposta aos implementadores de política econômica pelos representantes do capital financeiro internacional? Nunca é demais relembrar que o adjetivo “primário”, que passou a ser adicionado ao conceito de superávit fiscal, reflete apenas uma grande malandragem patrocinada por aqueles que ganham muito dinheiro com essa conhecida atividade parasita e especulativa.
Quando se introduz o “superávit primário” na conversa, tudo muda de figura. Isso porque se deixa de lado o debate a respeito da necessidade de se promover um reequilíbrio efetivo na estrutura entre receitas e despesas públicas. Afinal, com a noção de “orçamento primário”, tornam-se imexíveis os gastos classificados como de natureza financeira. Bingo! Assim, se o governo deve realizar um enorme esforço de contenção de seus dispêndios e blá-blá-blá, nada dessa voracidade pelos cortes se aplica ao mastodôntico volume de recursos que são subtraídos do orçamento para o pagamento de juros da dívida pública.
A sanha do financismo.
A violência da faca no pescoço se fecha com as ameaças promovidas pelas empresas de rating e a perda do tal “grau de investimento”. Simples assim: ou o Brasil promove cortes drásticos na área social ou não participamos mais do jogo. Recado: “se o governo não terminar com esse sonho de uma noite de verão que foi o modelo irresponsável adotado pela Constituição em 1988, os investidores internacionais não mais aplicarão aqui seus recursos”. Ora, estamos mais do que acostumados a ver esse tipo de ameaça. Perderemos uma pequena parcela dos especuladores internacionais e do capital externo volátil? Paciência, mas o nosso tímido modelo de Estado de Bem Estar Social não está disponível para negociata.
A lógica tecnocrática observa o Orçamento da União pela voracidade da tesoura e tenciona ir para cima das rubricas mais volumosas, pois a lição de casa é cortar algumas dezenas de bilhões de reais, para evitar o déficit. E ali estão contas bem visíveis, tais como a previdência social, a saúde, a educação, o pagamento de servidores. No entanto, ao contrário do que alardeia a turma saudosa dos tempos do Estado-mínimo, a maior parte desses recursos é destinada a despesas de caráter obrigatório. Ou seja, não poderiam – e nem deveriam – ser objeto de redução.
Porém, nenhum dos meios de comunicação coloca em manchete aquele que deveria ser o verdadeiro foco de preocupações dos analistas financeiros. A conta que apresenta o maior déficit estrutural é a conta de juros da dívida pública. De acordo com o Boletim de Política Fiscal elaborado pelo Banco Central, apenas entre agosto de 2014 e julho de 2015, foram gastos R$ 452 bilhões nessa rubrica. Esse sim é um verdadeiro gasto perdulário, aquele que deveria ser objeto de atenção e redução por parte das autoridades econômicas. Bastaria reduzir a SELIC em apenas um único ponto percentual, dos atuais 14,25%, para obter uma economia anual de R$ 20 bilhões nos gastos do governo federal.
Ao invés de atacar de frente essa gastança irresponsável, o governo volta a repetir as surradas fórmulas do passado, tão caras aos representantes da ortodoxia neoliberal e do conservadorismo político. E ressurgem as propostas de cortes de ministérios, cortes salariais, redução de direitos, congelamento de novos concursos e contingenciamento generalizado das contas orçamentárias de natureza social. Tudo isso com que objetivo? Assegurar caixa no Tesouro Nacional para cumprir religiosamente os compromissos assumidos com o pagamento de juros ao sistema financeiro. Uma completa inversão de valores e de prioridades. Uma loucura!
Falta de ousadia e rendição.
Pelo lado da arrecadação de receitas, a timidez e a falta de coragem política são espantosas. A lista de alternativas para recuperar a capacidade fiscal é muito longa. A começar pela sonegação pura simples, que campeia generalizada, inclusive com a certeza dos maus pagadores de que ali na frente o governo vai editar uma enésima versão dos generosos programas de refinanciamento do débito como fisco, os conhecidos REFIS da vida. As estimativas do “sonegômetro” apontam para um valor anual de R$ 500 bilhões, que poderiam ser recuperados apenas com o aperfeiçoamento da fiscalização. Mas o discurso oficial teima em responsabilizar os aposentados e pensionistas do INSS – que recebem a fortuna de um salário mínimo mensal – pelo rombo fiscal.
Por outro lado, vale sempre recordar os tributos existentes e pouco ou mal utilizados. O Imposto Territorial Rural é de competência da União e arrecada menos de R$ 1 bilhão ao ano. Para um país de uma superfície continental como o nosso, com a pujança atual do agronegócio, esse valor é 7 vezes menor que a receita de IPTU arrecadado apenas pelo município de São Paulo. A mesma lógica vale para os produtos primários para exportação, como minério de ferro, soja e outros. Bastaria aplicar uma alíquota reduzida e os valores arrecadados seriam da ordem de dezenas de bilhões de reais.
Também existe o potencial de arrecadação de outros tributos, em uma estratégia mais ampla de redução da extrema regressividade, que tão bem caracteriza a nossa carga tributária. Esse seria o caso do Imposto sobre Grandes Fortunas, do Imposto sobre Heranças, do imposto sobre aeronaves e embarcações, do fim das isenções injustificáveis para o Imposto de Renda sobre ganhos de capital, entre tantos outros exemplos. Ao apostar todas as suas fichas apenas na reedição (muito necessária, diga-se de passagem) da CPMF, o governo corre o risco de não contar com alternativas arrecadatórias, caso a medida não encontre facilidade de tramitação no Congresso Nacional. Isso porque a via escolhida da Emenda Constitucional exige uma votação apertada de maioria de 60%, em 2 turnos de aprovação em cada uma das casas legislativas.
Em resumo, a expectativa toda criada em torno do pacote do austericídio só fez aumentar as resistências no interior da base social e política do governo. Ao optar por um plano que deve fazer muita inveja a qualquer tucano da oposição, Dilma reinventa a roda e pratica mais do mesmo. A exemplo de todos os outros que o precederam, esse ajuste conservador preserva os poderosos e as elites, fazendo o povo pagar a conta do sacrifício solicitado.
*Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.