Mulher brasileira, crime previsto em lei
Mariângela Marques*
Na surdina do parlamento as manifestações conservadoras vão tomando ares de normalidade. Mas talvez seja normal, afinal, quem disse que o Brasil é progressista, quase socialista, foi quem se iludiu com um governo federal encabeçado por uma sigla possuidora de Trabalhadores em seu nome, coligada ao pior Movimento Democrático que o país conseguiu forjar nos anos da ditadura empresarial-militar e responsável pelo novo, mas nem tão novo assim, modelo de administração socializada do capital.
Essas manifestações conservadoras, que refletem a vontade de um grupo específico do país, destacam-se porque, em meio à crise econômica que não é de hoje e, muito menos, induzida unilateralmente pelo Brasil, surgem as soluções imediatas violentamente retrógradas que, paradoxalmente, se apresentam como soluções para os males sociais geradores da violência.
Iniciamos, então, o ciclo da crise política.
Obviamente, uma crise política não se restringe à reorganização social – temporária e ideal – da vida com vistas ao equilíbrio da balança comercial, expectativa fim de uma economia liberal. A crise política se vê na sobretaxação de mercadorias de consumo necessárias para a sobrevivência humana sem um centavo de aumento do salário, na redução das já reduzidas garantias trabalhistas, no aumento dos valores das passagens de transporte urbano, intermunicipal e interestadual, no sucateamento das escolas, universidades e hospitais públicos, no fechamento de escolas rurais, na negação de assistência social às pessoas pobres ainda mais pauperizadas, no endividamento incentivado de trabalhadoras/es para que o país aumentasse sua porcentagem de classe média baixa. E, inclusive, na criminalização da mulher em todos os sentidos de sua vida.
Desde 2013, um projeto de lei busca maturação coletiva para ser aprovado na câmara dos deputados. Nele, a família é o tema, sendo que esta família deve ser, obrigatoriamente, heteronormativa. O PL 6583/2013, de autoria do Sr. Anderson Ferreira(i) , deputado pernambucano do Partido Republicano (PR), base aliada do governo Dilma desde seu primeiro mandato, visa normatizar para o Estado Federativo Brasileiro que família é, obrigatoriamente, formada por […] um homem e uma mulher, por meio de casamento ou união estável, ou ainda por comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes(ii) . Entendendo que qualquer dos pais significa pai, sexo masculino, e mãe, sexo feminino.
Partindo deste pressuposto, Estado, sociedade e Poder Público serão obrigados a […] assegurar à entidade familiar a efetivação do direito à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania e à convivência comunitária(iii) . Não bastasse a limitação de um direito humano, o da vida, à condição de família nuclear burguesa, qualquer fato ou ação que ameace tal organização econômica da sociedade capitalista em crise deverá ser priorizada […] na tramitação dos processos e procedimentos e na execução dos atos e diligências judiciais, em qualquer instância, em que o interesse versado constitua risco à preservação e sobrevivência da [tal] entidade(iv) .
Dando sequência à esta doutrina, o PL também quer garantir que os currículos do ensino fundamental e médio tenham como componente nacional a disciplina “Educação para família”, a […] ser especificada, em cada sistema de ensino e estabelecimento escolar, de acordo com as características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e da clientela(v) , algo compreensível, afinal, o problema nacional, quiçá mundial, reside na falta de moralidade social, o que, consequentemente, leva às cíclicas e infindáveis crises econômicas.
Sendo assim, o dia 21 de outubro deverá ser comemorado anualmente na escolas, já que é o Dia Nacional de Valorização da Família(vi) , conforme lei no 12.647 sancionada pela presidenta no dia 16 de maio de 2012, depois que o PL 3905/2008, de autoria do Sr. Leandro Sampaio (PPS-RJ), foi aprovado por dezesseis comissões da Câmara, cinco distintas coordenações e outras tantas mesas diretoras(vii) .
O que justifica o Estatuto da Família? O fato de a família ser considerada
[…] o primeiro grupo humano organizado num sistema social, funcionando como uma espécie de unidade-base da sociedade. Daí porque devemos conferir grande importância à família e às mudanças que têm alterado a sua estrutura no decorrer do tempo.
Conquanto a própria carta magna tenha previsto que o Estado deve proteger a família, o fato é que não há políticas públicas efetivas voltadas especialmente à valorização da família e ao enfrentamento das questões complexas a que estão submetidas às famílias num contexto contemporâneo.
São diversas essas questões. Desde a grave epidemia das drogas, que dilacera os laços e a harmonia do ambiente familiar, à violência doméstica, à gravidez na adolescência, até mesmo à desconstrução do conceito de família, aspecto que aflige as famílias e repercute na dinâmica psicossocial do indivíduo.
[Porque] uma família equilibrada, de autoestima valorizada e assistida pelo Estado é sinônimo de uma sociedade mais fraterna e também mais feliz.
Sabendo, enfim, o que justifica uma família normatizada pelo atual Estado, concluímos que:
- […] o projeto propõe ainda […] que o Estado preste apoio efetivo às adolescentes grávidas prematuramente(viii) , o que significa dizer que, nesta ignóbil sociedade brasileira, capaz de retroceder um século de duras lutas de mulheres em menos de dois mandatos presidenciais de uma mulher, uma gravidez geralmente indesejada na idade adolescente, assim como geralmente resultante de um estupro cometido pelo pai, padrasto ou outro ente do sexo masculino, seja tratada como consequência do descuido da mulher ou, talvez, da criança;
- Seja priorizada […] a tramitação de processos judiciais e administrativos em demandas que ponham em risco a preservação e sobrevivência da entidade familiar(ix) , ou seja, a mulher corre o risco de ser responsabilizada, não só pelo futuro ex-marido/companheiro, mas também por toda sua família, incluindo filhas e filhos, pelo fracasso na criação de seres humanos mais humanizados, propensos aos excessos, próximos ao fracasso social graças ao consumo de drogas, álcool e cigarros, pois não podemos esquecer que tal projeto também se justifica para […] que a família receba assistência especializada para o enfrentamento do problema da droga e do álcool.
Claramente o projeto aponta para o fim da violência doméstica, mas resta saber o que se considera, neste ambiente social no qual se forja o formato ideal de família, o que é violência doméstica, afinal, sexo não consentido entre marido e mulher ainda não é considerado estupro para muitas mulheres; xingamentos proferidos pelo homem da casa não são percebidos como violência doméstica, visto que à mulher cabe a responsabilidade de adequar-se ao lar, normalmente chefiado pela figura masculina. E exemplos não faltarão, justamente porque não se trata de uma análise maniqueísta do momento, mas de uma recente coleção de fatos.
Vinte e um de setembro de 2015
“Ainda choro”, diz mulher que teve mão decepada em tentativa de estupro. “Eu senti medo, muito. Até agora estou chorando”. Grávida de 3 meses, mulher teve a mão esquerda e um dedo da mão direita decepados e o cabelo arrancado em tentativa de estupro. Os três principais suspeitos pelo crime estão presos e, esta semana, foram agredidos por outros detentos(x) .
Vinte de setembro de 2015
Câmara pode impedir prevenção de gravidez consequente de estupro. Projeto em tramitação na CCJ impede acesso das mulheres à pilula do dia seguinte e proíbe que profissionais de saúde às orientem quanto ao aborto legal(xi) .
A Comissão de Constituição e Justiça pode aprovar o PL 5.069/2013, de autoria de Eduardo Cunha, que acrescenta o art. 127-A ao Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, a detenção de quatro a oito anos daqueles que praticam aborto, bem como prisão de cinco até dez anos se o agente for funcionário da saúde pública, podendo aumentar em um terço se a gestante for menor de idade.
Sua justificativa não poderia ser mais esclarecedora.
A legalização do aborto vem sendo imposta a todo o mundo por organizações internacionais inspiradas por uma ideologia neo-maltusiana de controle populacional, e financiadas por fundações norte-americanas ligadas a interesses supercapitalistas.
A pressão internacional financiada pelas grandes fundações se iniciou em 1952 quando o Population Council, instituído pela família Rockefeller, decidiu iniciar um trabalho de longo prazo com o objetivo de obter o controle demográfico dos países considerados subdesenvolvidos. Paulatinamente, sob a coordenação intelectual do Population Council, outras importantes entidades, como a Rockefeller Foundation, a Ford Foundation, o Population Crisis Comitee, a Universidade John Hopkins, o Milbank Memorial Fund, a Mellon Foundation, a Hewlett Foundation, e depois destas muitas outras, foram se somando ao ambicioso projeto.
Inicialmente, a tática era desenvolver um intenso lobby junto ao governo dos Estados Unidos para que este reconhecesse a assim chamada explosão demográfica como um problema de segurança nacional, a ser resolvido pelo próprio governo norte-americano.
Vinte anos mais tarde, os frutos deste lobby começaram a aparecer, quando, sob a presidência de Nixon, o crescimento populacional dos países considerados subdesenvolvidos tornou-se uma verdadeira paranóia para o governo norteamericano xii) .
Vinte e quatro de agosto de 2015
Meninas de Guarus e a ponta do Iceberg . Em 2009, o homicídio de duas das meninas vitimadas pela rede de pedofilia e exploração sexual no bairro de Guarus foi o fim do silêncio para a situação já conhecida dos moradores da região, o ponto de partida para a abertura de inquérito policial.
Quatro anos depois, em 2013, o caso não resolvido levou à abertura da CPI da Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, na Câmara dos Deputados, em Brasília, tendo havido duas audiências na Câmara Municipal de Campos. Convocados para tratar do crime em audiência pública, o Ministério Público Estadual não compareceu e a Polícia Civil, representada por três delegados, não esclareceu muita coisa sob a alegação de não ter em mãos o inquérito, retido pelo MP/RJ xiii) .
Oito de Junho de 2015
Para Dilma, Estado não deve entrar na questão do aborto. Em entrevista exclusiva ao canal francês France24 – TV do grupo de comunicação da RFI – a presidente Dilma Rousseff disse que o Estado não deve entrar na questão do aborto. Questionada se o país precisaria rever a lei que criminaliza a prática, a presidente disse que “o Brasil ainda vai ter um processo longo para evoluir nesta área”.
Vinte e sete de maio de 2015
Estupro coletivo choca o Piauí, uma das vítimas teve o mamilo arrancado.
Foram quatro meninas, uma delas morreu. Foram adolescentes condenados pelo crime, todos eles drogados, estupraram as meninas à mando de um policial militar. Se buscarmos matérias de jornais que abordem a condição das meninas estupradas, suas recuperações, quase não encontramos informações, mas se buscarmos a notícia Estupro Coletivo em Castelo do Piauí , serão oito páginas alertando diversas matérias jornalísticas falando que um dos estupradores morreu. E as meninas?
Vinte e sete de fevereiro de 2015Vinte
Bolsonaro defende salário menor das mulheres por risco de gravidez.
E se a violência diária contra as mulheres no Brasil não for uma verdadeira crise social e, consequentemente, política, então confirmamos que ser mulher, no Brasil, é um crime.
i. Disponível em http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=597005. Acesso em 09 de setembro de 2015, às 15h e 47min.
ii. PL 6583/2013, art. 2o Disponível em http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1159761&filename=PL+6583/2013. Acesso em 23 de setembro de 2015, as 14 e 42min.
iii. Idem, art. 3o
iv. Idem, art. 9o
v. Idem, art. 10.
vi. Idem, art. 13.
vii. Disponível em http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=407841. Acesso em 09 de setembro de 2015, às 15h e 11min.
viii. PL 6583/2013.
ixIdem.
x. Disponível em http://www.pragmatismopolitico.com.br/2015/09/ainda-choro-diz-mulher-que-teve-a-mao-decepada-em-tentativa-de-estupro.html. Acesso em 22 de setembro de 2015, às 17h.
xi. Disponível em http://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2015/09/camara-pode-impedir-prevencao-de-gravidez-consequente-de-estupro-4449.html. Acesso em 23 de setembro de 2015, às 16 e 28min.
xii. Disponível em http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=19B277BA45D7F99C18EDB946A5D8FB92.node1?codteor=1072442&filename=Avulso+-PL+5069/2013. Acesso em 23 de setembro de 2015, as 16 e 43min.
xiii. Disponível em https://feminagemblog.wordpress.com/2015/08/24/meninas-de-guarus-e-a-ponta-do-iceberg/. Acesso em 23 de setembro de 2015, as 16h e 50min.
(*) Mariângela Marques é membro do Comitê Central do PCB