A polícia que quer uma nova polícia

imagemNa contramão do discurso que predomina nas corporações, grupos progressistas de policiais militares e civis, guardas municipais e agentes dialogam pelas redes sociais e tentam repensar a segurança pública

Manuela Azenha

O caso Amarildo transformou o de­le­gado Orlando Zaccone em um “policial que incomoda”, como ele mesmo se define. O carioca da Tijuca já defendia publicamente questões controversas, ainda mais nesse meio, como a legalização de todas as drogas e a desmilitarização do modelo de segurança. Além disso, o delegado tem uma trajetória incomum: antes de entrar para a polícia, foi repórter do jornal O Globo durante um ano, ainda na juventude, desistiu e virou monge hare krishna, “estava com alguns questionamentos existenciais”, e depois foi cursar Direito.

Mas nada disso o estigmatizou tanto quanto o papel que desempenhou ao rejeitar a tese de que o assistente de pedreiro, levado à interrogatório na Unidade da Polícia Pacificadora na Favela da Rocinha, Rio de Janeiro, e desaparecido desde então, tinha ligações com o tráfico: “Fui obrigado a realizar na prática aquilo que sempre defendi. Não podia deixar que se construísse a imagem de Amarildo e de sua mulher como traficantes pelo simples fato de morarem na favela do lado da boca de fumo. No Brasil, o que está em jogo não é a violência policial, mas contra quem essa violência é exercida. Se o Estado não consegue transformar o pedreiro em traficante, o policial vai preso. Se consegue, ganha medalha”.

Após seis meses de buscas pelo corpo do pedreiro, a Justiça decretou a morte presumida de Amarildo. Em fevereiro deste ano, 12 dos 25 policiais militares denunciados pelo desaparecimento e morte de Amarildo, crime ocorrido em julho de 2013, foram condenados por tortura seguida de morte, ocultação de cadáver e fraude processual.

Depois do caso célebre, Zaccone saiu dos holofotes. Foi afastado da titularidade e transferido para uma delegacia de acervo de cartório, no qual trabalhava com inquéritos antigos, sem fazer atendimento ao público nem investigações.

Ainda que minoritário, é crescente o número de policiais adeptos ao discurso crítico com relação à segurança pública, que dialogam nacionalmente pela internet e se dedicam cada vez mais a formações acadêmicas.

Secretário-geral da Leap Brasil (Associação dos Agentes da Lei contra a Proibição), mestre em Ciências Penais e doutor em Ciência Política, Zaccone é um dos 2.288 membros da página de Facebook “Policiais Antifascismo”. “Na contramão do pensamento hegemônico de uma polícia a serviço do Estado brasileiro, policiais civis, militares e guardas municipais se reúnem para construir uma polícia mais próxima do povo”, diz o texto de apresentação do grupo.

A segurança militarizada, segundo Zaccone, é antidemocrática porque constrói a figura de um inimigo dentro do Estado e o despe de todos os direitos de cidadania. “Isso começa com o traficante, mas pode ser o black block, o manifestante do MST. Temos duas questões: uma é a existência de uma força policial militar, com um regimento militar e os trabalhadores que são construídos não como trabalhadores, mas como soldados. A atuação militarizada da segurança pública é outra questão. O fim da PM não resolve esse problema”, diz o delegado.

Para Zaccone, a discussão sobre um novo modelo de segurança pública precisa passar por uma guinada e começar a envolver policiais: “Tem que falar com praça, com escrivão. Se perguntar para oficial e delegado, eles vão dizer que está tudo ótimo. Esses modelos de segurança são pensados para garantir privilégios. Deixar com que policiais participem disso pode ser um problema. Um policial que se identifica como trabalhador pode não querer jogar bomba e cassetete contra professor, porque a luta é a mesma. Eles querem o policial como cão de guarda”.

É também o que defende o tenente Anderson Duarte, da Polícia Militar do Ceará, criador da página de Facebook “Policial Pensador”, com 3.813 membros. “Criei a página em 2014, quando percebi a falta de vozes dissonantes no debate da segurança pública. Ou se fazia um debate conservador, militarista, de reforço à guerra, ou, por outro lado, um debate ‘de esquerda’ que não se preocupava em ouvir policiais progressistas, que via na polícia algo apenas ruim e não buscava compreender o policial como um trabalhador”.

O antropólogo Luiz Eduardo Soares, estudioso de segurança pública há 20 anos e um dos autores da PEC 51, que propõe uma reforma na arquitetura institucional, diz que os policiais foram excluídos do debate por uma soma de fatores: repressão política, proibição de sindicalização de policiais militares e um discurso da categoria em sua maior parte exclusivamente corporativista, que não mobiliza o resto da sociedade por não discutir uma política mais ampla de segurança pública. “Esta reportagem não poderia ser escrita há dez anos. É algo absolutamente novo essa intelectualidade orgânica na polícia e nos dá muita esperança porque as mudanças só acontecerão se os policiais fizerem parte. Eles são os protagonistas”, diz Soares.

Na época estudante universitário de Geografia, Duarte entrou para a polícia “sem a menor noção” dos problemas da segurança pública brasileira – segundo ele, um modelo falido. A oportunidade de se aprofundar no assunto aconteceu especialmente em cursos de pós-graduação. Durante o governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, foi criada a Renaesp (Rede Nacional de Altos Estudos em Segurança Pública), programa nacional de estudo gratuito para agentes de segurança pública.

“Os mais de 50 mil homicídios ao ano, junto à crescente taxa de encarceramento, demonstram como nosso sistema é falido. Nossos policiais são mal remunerados, desvalorizados, matam e morrem muito, inclusive há altas taxas de suicídio. A democracia ainda não chegou plenamente aos quartéis, como mostram as prisões disciplinares, que colocam os policiais militares em condições de cidadãos de segunda categoria. Isso só se explica numa situação de guerra, de exceção. A guerra que temos é a ‘guerra às drogas’, que subverte o trabalho da polícia, fazendo com que ela deixe o seu papel de mediação de conflitos, fundamental para qualquer democracia, e se dedique majoritariamente à apreensão de drogas, que não é um problema de polícia, mas de saúde pública e de economia, já que há uma demanda e uma oferta que precisam ser regulamentadas. Como resultado do abandono do Estado nesse campo, mortes e prisões dos mais pobres, sem qualquer diminuição da sensação de insegurança da população. É preciso desmilitarizar a política”, diz Duarte.

Dados do 10º Anuário de Segurança Pública mostram que nove pessoas são mortas por policiais por dia no Brasil e ao menos um policial é morto, em sua maioria em horário de folga. De 2014 a 2015, houve uma estabilização do número de mortes violentas no País, mas as decorrentes de ações policiais cresceram 6,3%, chegando a 3.345. O número de policiais mortos caiu 3,9%, para 393.

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Apesar de seu ativismo, Duarte nunca foi preso administrativamente. Segundo ele, no entanto, há formas de punição veladas, como transferências não motivadas e a não promoção. Em 2015, Duarte foi selecionado pela Secretaria Nacional de Segurança Pública para compor uma equipe de cinco policiais que trabalhariam no Pacto Nacional pela Redução de Homicídios. A Secretaria de Segurança Pública do Ceará, no entanto, não o liberou para ir.

Abusos cometidos pela polícia não são um desvio de função da corporação – pelo contrário. Desde sua origem, o sistema de segurança pública no Brasil existe para servir ao Estado e à elite, e não à sociedade como um todo. É o que diz Elisandro Lotin, cabo da Polícia Militar de Santa Catarina: “Nós temos um Estado altamente concentrador e idealizado a partir de uma lógica econômica excludente e elitista. A polícia tem por função manter o controle social de 95% da população, que está fora de qualquer discussão político-econômica, quando necessário, com a utilização da violência. A grande questão é que o policial não se dá conta de que faz parte desses 95% de excluídos”.

Em outubro, a Justiça de São Paulo havia determinado, com base em Ação Pública Civil movida pela Defensoria Pública, que o Estado pagasse R$ 8 milhões de indenização por danos morais coletivos em função da violência policial ocorrida nas manifestações de 2013, que a PM elaborasse um protocolo de uso da força em protestos no prazo de 30 dias e cada soldado que atuasse nesse tipo de evento portasse identificação visível com o nome e o posto na hierarquia. A sentença dizia também que armas menos letais, como balas de borracha, bombas de efeito moral e gás lacrimogêneo, só poderiam ser usadas em “situação excepcionalíssima”, cabendo à PM, em caso do emprego do armamento, “informar ao público em geral que circunstâncias justificaram sua ação e qual o nome do policial militar que determinou a repressão”. Menos de um mês depois da decisão em primeira instância, o Tribunal de Justiça suspendeu, em 7 de novembro, a liminar que limitava a atuação da PM em manifestações.

A violência contra manifestantes se repetiu nos diversos protestos contra o governo de Michel Temer neste ano. No primeiro dia de Presidência definitiva do peemedebista, uma jovem perdeu a visão de um olho ao ser atingida por uma bala de borracha durante um ato em São Paulo. Profissionais da imprensa, ainda que identificados, também foram vítimas de agressões da polícia enquanto cobriam manifestações. Caso da repórter fotográfica Marlene Bergamo, da Folha de S.Paulo, que foi atingida por uma bala de borracha no dia 2 de novembro, durante a desocupação de um prédio na região central de São Paulo.

Lotin é presidente da Anaspra (Associação Nacional dos Praças), membro da diretoria da Aprasc (Associação dos Praças de Santa Catarina), do Conasp (Conselho Nacional de Segurança Pública) e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Foi também candidato a deputado estadual pelo PSOL em 2014.  Pelo Código Penal Militar e pelos regulamentos vigentes, ele não poderia sequer conceder esta entrevista: “Fui punido várias vezes, inclusive com prisão administrativa. Você consegue imaginar um médico que não possa falar de saúde? Pois é, os policiais da base não podem falar sobre segurança pública. Mas, cada vez mais, nosso pessoal questiona e se mobiliza contra isso”.
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A Anaspra defende a desmilitarização da polícia como forma de desvincular a corporação do Exército, inserir esses profissionais no âmbito dos direitos trabalhistas e humanizar as relações dentro dos quartéis. Para Lotin, defender os direitos dos policiais é o primeiro passo para combater a violência cometida pelo Estado brasileiro, uma das mais altas do mundo, e repensar um novo modelo de segurança pública: “Se o policial é aviltado em seus direitos mais básicos enquanto trabalhador e cidadão, ele vai respeitar os direitos dos outros?”.

Segundo o cabo, o número de denúncias de tortura e maus-tratos nos quartéis é crescente, o que não significa necessariamente aumento dos casos de abuso, mas das denúncias em si. Para ele, isso se deve principalmente ao uso das redes sociais. “Essa é a minha percepção. Não tem nenhum levantamento das denúncias, nem dos órgãos de segurança, que tentam esconder, nem dos órgãos de pesquisa, que não têm acesso a esses dados.”

Soares conta que a promotora Glaucia Santana, do Rio de Janeiro, apresentou um termo de ajuste de conduta ao Estado em dezembro de 2015, após receber denúncias anônimas de policiais de UPPs: “Originalmente, o relatório dela começava assim: ‘Eu encontrei os policiais trabalhando em condições análogas à da escravidão’. Fizemos reuniões com três coronéis da PM para apresentar esse documento. Os três disseram, de forma unânime, que isso acontece porque os policiais são militares. Se eles reclamarem, denunciarem, se recusarem a cumprir essas jornadas, eles são presos administrativamente e correm o risco de perder as suas carreiras. Eles não têm direito à manifestação, desobediência, sindicatos. Isso é muito útil para os governos, que podem exigir que eles trabalhem em turnos dobrados, submetidos a todo tipo de pressão. É evidente que a luta corporativa necessária e legítima se encontra naturalmente com uma luta política muito maior, que é a desmilitarização. Outra bandeira coincidente é pela carreira única, acabando com essa fronteira que faz com que praças nunca cheguem a oficiais, os não delegados jamais virem delegados”.

Treinamento

O índice de assédios moral e sexual de mulheres nos órgãos de segurança pública chega a quase 40%, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. “Tem imagens na internet, qualquer um pode ver, de policial em treinamento e comendo a mesma comida que um cachorro, na mesma gamela. Tortura psicológica, isso é regra. As ameaças. Tivemos casos de policiais fazendo flexão no asfalto quente às 15h, num sol de 40 graus. O filme Tropa de Elite mostra aquela cena dos caras comendo comida no chão. Aquilo acontece”, diz Lotin. Em 2013, um policial militar teve morte cerebral dias após passar mal durante um treinamento no qual fazia exercícios no chão quente.

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HUMILHAÇÃO – Cena do filme “Tropa de Elite” – No treinamento, policiais comem comida no chão. Foto: Reprodução

A primeira dificuldade de mobilização acontece entre os próprios PMs, segundo Lotin: “Para começar, a Constituição nos proíbe de ter sindicato, temos uma associação. Primeiro você tem que vencer barreiras internas, nosso próprio pessoal tem dificuldade em aceitar que tem direitos pelos quais deve lutar. Quando ouve falar em manifestação, o cara fica com um ponto de interrogação: não sabe se é trabalhador, policial ou militar, se é cidadão, se não é. Ele é condicionado ao longo da sua vida para não pensar nisso”. Lotin diz que não existe um movimento organizado desses policiais, tampouco uma agenda de mobilização em comum. Segundo ele, foi algo que surgiu “espontaneamente” em diversos lugares do Brasil.

Em setembro deste ano, a Anaspra se reuniu com o secretário Nacional de Segurança Pública, Celso Perioli, e com o ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, para discutir as demandas da categoria, como o fim das prisões administrativas, a rearticulação de um grupo de discussão sobre assédio moral e sexual dentro dos quartéis e a questão previdenciária.
O projeto de lei 148, que extingue as prisões administrativas, foi aprovado na Câmara em agosto e agora tramita no Senado. “Essa prisão é discricionária, ou seja, depende de o comandante ir com a sua cara ou não. Não tem um regulamento claro e que esteja de acordo com os ditames da Constituição. Se eu me envolver em uma ocorrência e acabar tirando a vida de alguém, é bem provável que eu responda em liberdade. Mas se tiver sem chapéu, posso ir preso”, diz Lotin. A prisão administrativa segue um rito mais rápido do que a comum e é determinada por um comandante, via de regra por questões internas, como vestir uma bota suja, chegar atrasado ou dar uma declaração para a imprensa.

O sargento Luciano Galesco, da Polícia Militar de São Paulo, ficou preso administrativamente por dois dias após reclamar em sua página de Facebook do lanche oferecido no quartel. Segundo seu advogado, Raul Marcolino, o deputado estadual Coronel Telhada (PSDB-SP) alegou ter se sentido ofendido com a publicação e comunicou o fato ao comandante-geral da PM, que determinou a prisão.

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Marcolino foi policial militar por 12 anos, período no qual se formou em Direito. Em 2014, pediu exoneração para ser advogado e defender policiais vítimas de abuso: “Presenciei casos e fui vítima de outros. Fui preso injustamente diversas vezes, processado administrativamente e sempre consegui me defender, por isso fui ser advogado. Sendo policial, não conseguia ajudar ninguém, agora posso ajudar policiais”.

Marcolino recorrentemente recebe ameaças veladas por causa de sua atuação profissional e diz que precisa andar de carro blindado. O advogado conta que seus clientes costumam sofrer repressões no quartel depois de serem defendidos por ele. Ainda assim, é cada vez maior o número de policiais que o procuram.

Lotin defende que o fortalecimento do movimento de policiais questionadores acompanhou a criação do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que completa dez anos: “Essas pesquisas referendaram aquilo que a gente sabia empiricamente. Saber que 74% dos policiais militares entrevistados defendem a desmilitarização como forma de humanização da segurança pública nos dá um sentido maior e nos diz que temos que mudar o modelo”.

Ainda assim, as ideologias de direita e extrema-direita predominam dentro das instituições de segurança. Em um encontro de policiais trabalhando nos Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro, o deputado federal Jair Bolsonaro (PSC-RJ), conhecido por defender a pena de morte e ações violentas da polícia contra criminosos, foi ovacionado e recebido com flexões. “Bolsonaro é uma espécie de ícone entre os policiais, e é estranho isso porque ele nunca defendeu a categoria. Aliás, recentemente, votou a favor da PEC 241, que poderá congelar salários e até promoções. Acho que o pessoal está começando a acordar para a demagogia do mito”, diz Lotin.

Zaccone enxerga a atual crise econômica como oportunidade de conscientização: “Do ponto de vista político, é um momento maravilhoso porque os policiais estão vendo que todo o exercício do modelo que interessa ao poder político e jurídico não traz nenhum retorno para eles enquanto trabalhadores. Com a crise financeira dos estados, os policiais estão sem salário. Nesse momento cai a ficha de que são trabalhadores”.

Ilustração: ALINHAMENTO – Policiais militares em solenidade de formatura no Rio de Janeiro – Foto: Clarice Castro/Fotos Públicas

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