O “chicote com mil pontas” da dívida pública brasileira: hostilidades, ilegalidades e ilegitimidades

imagemRodrigo Meira Martoni*

“Eu sou o Capital, o rei do mundo […] Enriqueço o celerado não obstante a sua loucura; empobreço o justo não obstante a sua justiça […]; Dou-me aos capitalistas e partilho-me entre eles; Sirvo-me deles como de um chicote com mil pontas […]. Todo o ato que lesa os [meus] interesses é crime e será punido”.

Se Paul Lafargue assim se referiu ao capital no panfleto “O Direito à Preguiça”, é preciso refletir um pouco acerca de sua forma financeirizada, afinal, trata-se de uma entidade que se entrecruza conosco da maternidade à sepultura.

De antemão é preciso evidenciar que a riqueza somente pode ser chamada de capital se dinamizada por relações socioprodutivas voltadas à geração de excedentes para terceiros. A isso Marx denomina “mais valor”, ou trabalho não pago, um fato histórico que rege as interações laborativas engendrando não somente o lucro, a competitividade, a filantropia e coisas belas para alguns, mas o domínio, a desigualdade, a corrupção e a violência. Se o capital produtivo é a base pela qual e para a qual são redimensionadas e/ou criadas outras formas especializadas de capital, como o mercantil, o portador de juros e o financeiro, ele não mais representa o único campo de acumulação ou que atende aos diversos mercados capitalistas. Toma vulto a partir da década de 1970 o capital financeiro (com a diminuição da taxa de lucros nos EUA e o Euromercado de moedas), o qual pode ser compreendido, genericamente, como aquele que espera a realização de um mais valor futuro por meio de produtos financeiros diversos, tais como títulos públicos, debêntures, derivativos, swaps.

Mesmo tendo como referência os setores primário, secundário e terciário (o capital produtivo) e o fundo público (o qual é composto em parte pelo trabalho excedente – o mais valor – e em parte pelo trabalho necessário – salários), o capital financeiro nada produz, restringindo-se à dilatação ou retração de preços de ativos pelas jogatinas especulativas do mercado. Atrelado, portanto, a uma espécie de capital ilusório, possui proporção quase quatro vezes maior que economia real e, se os excedentes não se realizam ou todos os investidores não têm do que se apropriar, sobrevêm as segundas, terças, quintas-feiras negras.

Diante dessa realidade parasitária e potencialmente devastadora, verifica-se que não é possível compreender o capitalismo em seu feitio atual somente pela concentração e centralização do capital na forma mais acabada dos monopólios, mas, essencialmente, pela atuação, em território mundial, de corporações financeirizadas, agentes financeiros e seus embaixadores como o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial, o Federal Reserve, as agências de classificação de riscos, entre outros. Estes se nutrem das esferas ou formas especializadas do capital e se fortalecem impondo suas regras nos encaminhamentos das políticas públicas – fiscais, monetárias, sociais – ao seu bel prazer, fato que se traduz em grande influência de uma casta corporativa-financeira também em relação às empresas menores, ao mundo do trabalho e ao patrimônio público, criando uma espécie de círculo vicioso, onde grupos específicos com poderes extremados permeiam ainda mais o Estado e são por ele salvaguardados: nas eleições de 2014, somente para citar alguns poucos exemplos, as doações declaradas pela J&F Holding somaram R$ 61,2 milhões para 162 deputados federais eleitos, a Vale elegeu 85 com R$ 17,7 milhões, a Construtora OAS, R$ 13 milhões e 79 deputados, e o Bradesco conta com 113 deputados e investimentos de R$ 20,3 milhões (ESTADÃO, 2014).

Isso se expressa em um país não somente com carga tributária alta, mas, sobretudo, regressiva, incidindo fortemente sobre bens, serviços e ganhos dos trabalhadores, ao mesmo tempo em que é graciosa quanto à renda e ao patrimônio – a tabela do Imposto de Renda conta com uma defasagem acumulada de mais de 83% de 1996 a 2016, o que significa pagamento de tributo cada vez maior sobre a renda sem as devidas correções quanto às perdas inflacionárias há mais de 20 anos. Além disso, desde a Lei 9.249/95, não há mais cobrança de imposto de renda de pessoa física sobre lucros e dividendos de donos e sócios de empresas, de forma que um trabalhador ganhando R$ 4.700,00 mensais tem desconto de 27,5%, mas um empresário que recebe R$ 400.000,00 por mês em dividendos, nada paga sobre este montante. E, caso esse sujeito possua um helicóptero e/ou avião, não há incidência de IPVA sobre tais modais de transporte.

Mesmo se considerarmos tais distorções – que são altamente colaborativas com uma realidade cada vez mais desigual, somadas ao fato de que, passados quase 30 anos, o inciso VII do Artigo nº 153 da Constituição Federal não foi regulamentado justamente por prever o IGF (Imposto sobre Grandes Fortunas) – quando atentamos especificamente à Dívida Pública constatamos, de forma ainda mais clara, o significado de perversidade com aqueles que pagam proporcionalmente muito mais tributos do que os ricos e dependem de um Estado cada vez mais débil em políticas sociais.

Do orçamento federal executado em 2015, mais de 42% foi para pagamento de juros e amortizações da dívida pública, enquanto a educação ficou com 3,91% e a saúde com 4,14%, somente a título comparativo. Se tais proporções expressam desdém com direitos básicos e apontam um horizonte de maior degradação, Fattorelli (2013, p.13) explica que isso advém do chamado “sistema da dívida pública” [que consiste em] um modo de acumulação […] com a utilização do instrumento de endividamento público às avessas – retirando recursos em vez de os aportar”. Ou seja, a dívida brasileira não é mais um mecanismo de complementação orçamentária para o desenvolvimento e garantidor de infraestrutura e serviços, mas um “sistema” de privilégios financeiros que opera e se justifica tão somente para remunerar os credores do Estado, beneficiando assombrosamente bancos nacionais e internacionais (com 55% do títulos), fundos de pensão (16%), fundos de investimento (21%) e empresas não financeiras (8%) (ACD, 2012 – dados de abril de 2010). Nas palavras de Costa-Gavras, tais entidades agem como um Robin Hood às avessas: “retira dos pobres para dar aos ricos”. Partindo do pressuposto que um devedor deve pagar seu credor, isso deve ser relativizado quando há ilegalidades e ilegitimidades na contratação de dívidas. Fattorelli (2003) aponta algumas:

– Assunção de obrigações privadas pelo Estado (a exemplo do Proer – Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional e do Proes – Programa de Incentivo à Redução do Setor Público Estadual da Atividade Bancária, ambos do governo Fernando Henrique Cardoso), com a injeção de dinheiro público em bancos privados e responsabilização de passivos dos bancos estaduais pelos estados visando à privatização de seus ativos – o Banco do Estado de Minas Gerais foi saneado com recursos públicos na ordem de R$1,5 bi para, depois, ser vendido ao Itaú por R$ 500 milhões);

– Juros exorbitantes definidos pelo Comitê de Política Monetária – Copom (o qual é integrado por representantes do mercado financeiro em sua maioria e presidido pelo ex-economista-chefe e sócio do Banco Itaú-Unibanco, Ilan Goldfajn, atual presidente do Banco Central);

– Empréstimos do BNDES a grandes personificadores do capital (como os irmãos Batista e o Batista X), com taxas de juros baixas via emissão de títulos públicos a taxas duas a três vezes mais altas;

– Operações de mercado aberto, pelas quais o Banco Central remunera a sobra de caixa dos bancos com títulos públicos;

– Troca de dívida externa barata e com câmbio favorável por interna a taxas de juros que chegaram a 18% ao ano em alguns títulos (no governo Lula, propagandeada como o “fim da dívida externa”);

– Taxas de juros flutuantes em contratos de dívida pela ditadura civil-militar, o que proporcionou, por um lado, elevado retorno a credores externos (bancos internacionais, principalmente, e FMI) e, por outro, aumento exacerbado do endividamento público (conforme dados levantados por ocasião da CPI da dívida em 2010 – que acabou em pizza – de 1970 a 1982 a dívida que recai em nossas costas cresceu 1.584%, indo de US$5 bilhões para US$85 bi);

– Transformação e incremento de dívidas externas nulas ou prescritas em novos papéis internos e mais onerosos (no caso dos títulos Brandy, em 1994).

Dentre as ilegitimidades e ilegalidades citadas, merece destaque a prática do pagamento de juros sobre juros (o que significa a incorporação de juros como nova dívida e a emissão de títulos para esse fim), além da remuneração de títulos com taxas de juros exacerbadas, das mais altas do planeta.

Considerando que, conforme a Lei 4.320/64 (a qual estatui normas gerais de direito financeiro), as “despesas de capital” referem-se a investimentos como obras públicas, aquisição de material permanente, etc. e amortização da dívida pública, enquanto as “despesas correntes” englobam, dentre outas coisas, o pagamento de juros da dívida pública; e que o inciso III do Artigo 167 da Constituição Federal aponta que é vedada “[…] a realização de operações de crédito que excedam o montante das despesas de capital, ressalvadas as autorizadas mediante créditos suplementares ou especiais com finalidade precisa, aprovados pelo Poder Legislativo por maioria absoluta” [grifo nosso], Fattorelli (2012, p. 209) explica que “a finalidade desse importante dispositivo [constitucional] foi evitar o endividamento do Estado em forma descontrolada, bem como a utilização da dívida pública para o pagamento de despesas correntes […], o que tornaria o processo de endividamento insustentável”. Isso significa que, se o governo pode emitir títulos para a amortização da dívida (enquadrada em “despesas de capital”) ou com o fim de diminuir o estoque dela, ele não poderia emiti-los para pagar os juros da dívida (situados como “despesas correntes”).

Feitas essas considerações, ao observarmos no sítio da Secretaria do Tesouro Nacional os diferentes títulos da Dívida Pública Mobiliária Federal Interna (DPMFi) (Ex: LTN – Letras do Tesouro Nacional; LFT – Letras Financeiras do Tesouro; NTN – Notas do Tesouro Nacional) e seus indexadores e taxas com as respectivas atualizações monetárias (Ex: variação cambial, Selic, IPC-A, IGP-M), verifica-se que o rendimento nominal (total) de cada título aos “dealers” (denominação dada aos credores do Estado ou instituições financeiras credenciadas pela STN e BC para operações especiais com títulos públicos) constitui-se pelos índices citados e específicos mais os juros praticados (o montante que ultrapassa a atualização monetária), ou seja, juros = atualização monetária + juros reais. Fattorelli (2012, p.212, 220 passim) evidencia que isso está de acordo com as Normas de Contabilidade do setor público e é dessa forma considerado nas explicações de remuneração de títulos pelo Banco Central.

Mas o que o governo faz, conforme apurado pela Auditoria Cidadão da Dívida? Primeiro divulga dados da dívida líquida (e não bruta, pela qual incidem os juros) para parecer que a dívida é menor do que efetivamente é, e, paralelamente, deixa de contabilizar a atualização monetária de cada título como juros, passando tal atualização a fazer parte do estoque da dívida. Se os índices migram para o total da dívida, temos: números mascarados, pois os juros divulgados pelo governo são sempre menores do que os nominais ou efetivamente pagos ao mercado; e aumento excessivo da dívida pela incorporação de juros ao estoque dela (a atualização monetária) e emissão de mais e mais títulos para pagá-la, ou seja, juros sobre juros, prática chamada de anatocismo e considerada ilegal pela súmula 121 do Supremo Tribunal Federal. Esse tipo de esquema constitui-se não somente em desrespeito aos dispositivos legais, mas, essencialmente, burla a Constituição (Artigo 167, Inciso III) – novos títulos são emitidos não para amortizar a dívida (despesas de capital), mas para pagar o que, realmente, constitui-se como juros (despesas correntes).

Para completar o quadro de exacerbação do endividamento público e o papel dos “dealers” (com representantes diretos ocupando os principais postos na estrutura do Estado, a exemplo de Henrique Meirelles – ex-presidente do Fleet Bank Boston Financial, ex-presidente do Banco Central do Brasil nos governos Lula, ex-presidente do Banco Original, pertencente à Holding J&F, e atual Ministro da Fazenda e Previdência; e Joaquim Levi – ex-diretor-superintendente da Gestão de Ativos do Banco Bradesco e então ministro da Fazenda no último governo Dilma), deve-se enfatizar que estes são intolerantes a taxas de juros pouco vantajosas. Dessa forma, nos momentos em que a Selic cai a um determinado patamar via pressão de outros capitais, os títulos indexados a ela (que são poucos, aliás) não são aceitos e aparecem como “zerados” na coluna “volume financeiro” das tabelas dos “Históricos de Leilões” da Secretaria do Tesouro Nacional. Ao consultar tais tabelas, a maioria dos títulos tem remuneração nominal geralmente acima da Selic, demonstrando que os “dealers” não podem ser desrespeitados, mas a sociedade deve ser subtraída e fustigada com “o chicote de mil pontas” em nome dos credores do Estado – afinal, eles ocupam o Estado.

É justamente pelo sistema da dívida como mecanismo consumidor de quase metade do orçamento público sem contrapartida social (posto que, conforme vimos, seus termos não são decididos pelo povo) que emendas à Constituição são impostas para congelar gastos públicos (menos com a dívida, é claro) e dificultar o acesso à Previdência, além de leis e outros instrumentos que aparecem colocando limites para tudo o que representa gasto e investimento social, deixando livres os recursos que lubrificam esse sistema malévolo. Se lá por volta de 1867 Marx (2001, v. II, p. 867) já escreveu que “a única parte da chamada riqueza nacional que é realmente objeto da posse coletiva dos povos modernos é…. a dívida pública”, imagine agora! Temos uma “posse” que tende a nos subtrair cada vez mais enquanto rega os ditadores do capital financeiro, pois “todo o ato que lesa os [seus] interesses é crime e será punido”, como muito bem escreveu Paul Lafargue.

Uma movimentação popular ampla sem materialidade suficiente para tal é supor que mudanças substanciais têm condições de ocorrer somente pela força das ideias. Sabemos a fragilidade deste ponto de vista e apontamos que essa materialidade ou dura realidade em nosso tempo histórico gesta-se há tempos, mas se avoluma com o mundo das finanças e com o endividamento público. Qual a escala da devastação social? Como será nosso enfrentamento? Adotaremos somente as medidas necessárias já conhecidas, como manifestações de rua, paralisações e greves, ou conseguiremos agigantar forças promovendo “greves” em sistemas computacionais na mesma escala do capital financeirizado? Não há respostas prontas, mas elas hão de surgir. Por enquanto, exemplos como os da Grécia estão aí para ser dados, onde, diante dos ajustes fiscais impostos pelos “dealers” e seus embaixadores (o mercado), salários tiveram queda de até 60% de 2010 a 2015, aposentadorias foram cortadas e a falta de perspectivas leva tanto à imigração como ao suicídio em praça pública.

*Professor da UFOP


Referências

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BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Súmula 121). É vedada a capitalização de juros, ainda que expressamente convencionada.

Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/menuSumarioSumulas.asp?sumula=2000. Acesso em: 15 abr. 2017.

CURSO AUDITORIA CIDADÃ DA DÍVIDA PÚBLICA. Turma V (Dezembro/2016 a Junho/2017 – 120h). Brasília, DF, 2016. Modalidade à distância.

FATTORELLI, Maria Lucia (org.). Auditoria Cidadão da Dívida Pública: experiências e métodos. Brasília: Inove, 2013.

______________________ Caderno de Estudos: a dívida pública em debate. Brasília: 2012. 80 p.

LAFARGUE, Paul. O direito a preguiça e outros textos escolhidos. Tradução de Maria Flor M. Simões. Lisboa, PT: Estampa, 1977 (Biblioteca do Socialismo Científico).

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