Brasil, mineração e biodiversidade

imagemDe degradadores a prestadores de serviços ambientais: quando as fronteiras entre destruir e conservar são somente retóricas

Por Julianna Malerba, no Boletim WRM 232

O golpe parlamentar que alçou ao poder o governo ilegítimo de Michel Temer não inaugurou propriamente um dos objetivos centrais da atual política mineral brasileira: ampliar a produção mineral e sua participação no PIB nacional. Esse objetivo, anunciado recentemente pelo governo Temer, já estava presente na exposição de motivos feita pela presidente Dilma Rousseff, em 2013, quando enviava ao Legislativo a proposta de um novo código mineral para o país. A diferença crucial entre os dois governos talvez fosse o papel pretendido ao Estado nesse processo, de maior coordenação e planejamento. Pretensões que durante o debate sobre o novo código foram barradas pelo Congresso, onde a bancada de deputados financiados por grandes mineradoras tratou de retirar da nova lei todas as propostas que garantiam alguma governança pública sobre a política mineral e de incluir artigos que ampliassem ainda mais as possibilidades de acesso aos recursos minerais pelo mercado.

No Congresso, as emendas parlamentares restringiram as condições que o governo propunha para outorga de título e simplificaram os regimes de concessão, diminuindo a capacidade do Estado em definir quais minerais e áreas devem ser prioritariamente explorados/as. Também foram incluídos artigos que ampliavam as garantias de acesso à terra e água às mineradoras, outorgando-lhes direito à utilização das águas necessárias para as operações da concessão, e atribuindo à Agência Nacional de Mineração (que deveria ser criada pela nova lei) a prerrogativa de desapropriar imóveis em prol das atividades minerárias. Por meio do novo código buscava-se neutralizar os efeitos de leis e normativas que, ao garantir direitos, criam restrições à atividade mineral. Minerar em unidade de conservação onde atualmente a atividade é proibida e incluir a necessidade de anuência da Agência Nacional de Mineração para a criação de áreas destinadas à tutela de interesses (tais como unidades de conservação, terras indígenas, territórios quilombolas) estavam entre as emendas propostas.

Com Temer, o foco da disputa em torno do código perde centralidade, pois o próprio governo se encarrega, por meio de medidas provisórias e portarias, de acelerar a implementação das propostas apresentadas pelos parlamentares.

O momento, ainda experimentado, de retração no preço das commodities minerais oferece um cenário favorável para que essas medidas sejam implementadas como condição para sustentação de um setor que cumpre o papel de gerar saldos comerciais ao país e manter a estabilidade de uma política econômica altamente dependente de recursos externos. Entretanto, se considerarmos que o mercado de commodities tende a períodos cíclicos de retração e expansão de preços, o maior legado da política mineral do governo Temer será cimentar as bases para a maximização da lucratividade das empresas mineradoras que atuam no país no próximo boom de preços.

Leiloando fronteiras, reservas e terras de populações tradicionais ao grande capital 

Por meio de uma medida provisória o governo de Temer pretende, em uma só tacada, criar a Agência Nacional de Mineração e abrir as áreas de fronteira do Brasil para exploração de projetos de mineração, retirando do Conselho de Defesa Nacional sua prerrogativa de anuência sobre a atividade nessas áreas e permitindo nelas a atuação de empresas com capitais majoritariamente estrangeiros, o que atualmente é proibido.

Para restaurar “a confiança dos investidores e restabelecer a segurança jurídica” (que teria sido produzida pelo debate sobre o novo Código Mineral) o Ministério de Minas e Energia (MME) vem se comprometendo publicamente a simplificar procedimentos de outorga para reduzir o prazo de início da operação dos projetos minerais e a leiloar mais de 300 áreas já pesquisadas pela Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais (estatal vinculada ao MME) e, em grande parte, com jazidas comprovadas. Também pretende definir, por medida provisória, mudanças nas alíquotas de cálculo e na distribuição dos royalties da mineração que estavam sendo debatidas por dentro do novo código. Como o objetivo é atrair investidores supõe-se que será mantida a carga tributária altamente benéfica ao setor que, além de gozar de inúmeros favorecimentos tributários, conta com uma das mais baixas alíquotas de pagamento de royalties do mundo e uma fórmula de cálculo bastante atraente que, diferente da maioria dos países, utiliza o faturamento líquido em vez de bruto.

Outra medida que visa ampliar a mineração no país é a portaria n°126 do MME, que deu início à extinção da Reserva Nacional do Cobre e Associados, criada no início dos anos 1980, com intuito de que as reservas minerais ali existentes, e ricas, sobretudo, em ouro, fossem exploradas em regime especial, sob controle da Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais. A área, situada nos estados do Pará e Amapá, abrange 46 mil metros quadrados e se mantinha fechada às mineradoras. Com a extinção da Reserva, o governo pretende disponibilizar essa área à iniciativa privada, atendendo a uma demanda antiga das empresas de mineração que a consideram tão importante quanto à província mineral de Carajás em termos de montante de reservas minerais. A má notícia para o setor mineral é que atualmente 69% da área que abrange a reserva estão sobrepostas a terras indígenas e unidades de conservação, onde a atividade mineral não é permitida.

As declarações, em abril, do então presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), de que as terras indígenas devem ser abertas à atividade mineral e a edição de medidas provisórias (MP 756 e 759) que propõem reduzir milhares de hectares de áreas protegidas na Amazônia onde há fortes interesses minerários e agropecuários, aponta a convergência entre o governo e representantes dos setores que hegemonizam o Congresso. Projetos de lei que atacam o sistema nacional de unidades de conservação, visam mudar as regras de licenciamento ambiental (PL 3729/2004 e 654/2015) ou mesmo extingui-lo (PEC 65/2012) e pretendem abrir terras indígenas e territórios de populações tradicionais para a mineração e outras atividades econômicas de grande impacto socioambiental (PL 1610/1996 e PEC 215/2000) ganham mais fôlego na atual conjuntura em que o governo trata de sinalizar disposição para fazê-los avançar.

A lógica perversa de uma retórica conservacionista que busca criar equivalência entre degradar e conservar

Até aqui nenhuma novidade. Flexibilizar a proteção constitucional ao meio ambiente e restringir direitos territoriais não constituem propriamente agendas novas para os setores ligados à mineração e ao agronegócio.  A nova estratégia refere-se à elaboração de uma retórica que pretende criar uma equivalência entre degradação e conservação. No centro da argumentação, a hipótese de que seria possível estabelecer um equilíbrio entre o impacto de um projeto sobre a biodiversidade e os benefícios alcançados através de iniciativas voluntárias de compensação.

Essa transmutação é produzida por um conjunto de estratégias que incluem a desregulamentação dos mecanismos compulsórios de proteção ambiental (tal como vimos assistindo) e a criação de bases jurídicas, conceituais e metodológicas que pretendem mensurar tanto as perdas de biodiversidade causadas por grandes projetos de desenvolvimento quanto ganhos de conservação, obtidos por meio de ações decompensação de biodiversidade. Na prática, são feitos investimentos para a conservação de áreas onde haveria um ecossistema similar àquele destruído. Supostamente isso possibilitaria às empresas produzirem uma “perda líquida zero” de biodiversidade e até  um “ganho líquido” que corresponderiam à conservação de uma “quantidade” de biodiversidade igual ou maior que aquela que foi destruída. Além de construir uma imagem positiva para certos setores (cujas atividades têm impactos reconhecidamente negativos sobre a biodiversidade), obter “ganhos líquidos” e “mensuráveis” de biodiversidade possibilita ainda criar “ativos” ambientais que transformados em commodities comparáveis em qualidade e quantidade podem vir a se tornar comercializáveis.

Por meio de uma operação política discursiva poluidores tornam-se “prestadores de serviços ambientais” e novas mercadorias são criadas viabilizando o surgimento de novos mercados.  Essas iniciativas ainda ampliam o acesso a terra às empresas que, além do controle territorial e espacial que já têm sobre as áreas em que desenvolvem suas atividades, passam a exercer controle também sobre o uso das terras destinadas à compensação.

No Brasil, a ação desse lobby já produziu efeitos. Em 2014, a secretária para Biodiversidade e Florestas do Ministério do Meio Ambiente participou de um encontro onde foram discutidos modelos de compensação aplicados à mineração. Setor que, aliás, mais tem aderido à iniciativa a nível global (6). Ela defendeu publicamente a importância de desenvolver instrumentos que construam o mercado de biodiversidade.

Em 2010 foi criado o Movimento Empresarial pela Biodiversidade – Brasil (MEBB) que busca influenciar a elaboração da estratégia brasileira para biodiversidade e tem como um dos objetivos centrais o aperfeiçoamento dos marcos legais e regulatórios sobre temas como valorização e acesso à biodiversidade.

Até 2017, a Hydro, que possui uma mina de bauxita em Paragominas (no estado do Pará), pretende obter “nenhuma ‘perda líquida’ de biodiversidade”. Para alcançar essa meta, a empresa tem financiado ações de “restauração de biodiversidade” e de monitoramento na única área de floresta remanescente em Paragominas. São feitos registros sobre a variedade das espécies e seus comportamentos e desenvolvidas pesquisas piloto sobre técnicas de restauração e metodologias de mensuração de resultados.

Caminho semelhante tem sido seguido pela ALCOA em Juruti Velho (no Oeste do estado do Pará), onde também extraí bauxita. Com o objetivo de “gerar impacto liquido positivo” de biodiversidade, a empresa tem investindo voluntariamente na manutenção de três parques ambientais, em Poços de Caldas (18 hectares), em São Luís (1.800 hectares) e em Tubarão (12 hectares). Tem também desenvolvido programas de reabilitação de áreas mineradas onde são definidos “índices” de biodiversidade, com objetivo de estabelecer métricas de desempenho dos negócios sobre os ecossistemas, “um dos principais desafios da gestão corporativa da biodiversidade”, segundo o gerente de sustentabilidade da companhia.

Ainda que a própria legislação brasileira preveja a obrigatoriedade de ações compensatórias em termos de perdas de biodiversidade por atividades de alto impacto ambiental, o interesse das mineradoras em desenvolvê-las tem levado a disputarem territórios. No estado de Minas Gerais, a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) e a Ferrous Resources do Brasil brigam na Justiça por uma área que embora não tenha minério de ferro, é valiosa para o desenvolvimento de compensações ambientais da atividade mineral.

Por traz da retórica conservacionista da compensação de biodiversidade está em jogo não apenas a consolidação, em médio prazo, de novos mercados referidos à biodiversidade, que irão impor novas formas de regulação territorial conectadas a institucionalidades e atores multiescalares (operadores do mercado financeiro, agencias de cooperação, consultores, etc.). A compensação de biodiversidade também outorga a empresas, sob as quais pairam muitas denúncias de impactos socioambientais e de violações de direitos, o poder de definir a natureza, de valorizá-la e de protegê-la sob um paradigma utilitarista e colonial, que ignora e se impõe sobre a multiplicidade das formas de apropriação e produção de biodiversidade instituída historicamente pela criatividade e luta social de quem ocupa as fronteiras para onde miram as novas formas de acumulação de capital (camponeses, povos indígenas e demais populações tradicionais).

Julianna Malerba, FASE, Brasil

http://port.pravda.ru/news/russa/27-08-2017/43906-brasil-0/

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