A face oculta da crise brasileira
Ivonaldo Leite*
A longa crise política brasileira tem proporcionado oportunidades para se analisar e tirar ilações dos mais diversos aspectos políticos, econômicos e sociais. Do caráter oligárquico do capitalismo brasileiro aos equívocos do PT, do atraso mental do establishment nacional às asneiras repisadas com ar de sapiência por parvos, da indigência teórica de determinados “intelectuais” à falta de projetos da esquerda, da manipulação da grande imprensa à politização do judiciário, de tolices à ascensão de manifestações fascistas, da pequena e da grande corrupção à desfaçatez dos corruptos. De tudo vai-se tendo um pouco.
Há, contudo, um aspecto que tem passado sem receber o enfoque necessário. Trata-se da relação entre o mercado e a corrupção. Possivelmente o devido entendimento desse facto demande um estudo mais sistematizado, mas, quanto a mim, cabe uma hipótese explicativa: a massiva exposição dos casos de corrupção envolvendo as esferas e os atores do Estado tem criado um sentimento, em forma de senso comum, que tende a ver as ilicitudes, exclusivamente, como sendo apanágio de agentes políticos e da administração estatal, bem como dos partidos. Tudo se passa como se a corrupção (ativa e passiva) fosse uma “autoestrada de mão única”, na qual não se encontrariam corruptores e corruptos. Daí forma-se uma percepção cotidiana (ou caso se queira, uma “representação social” ou “imaginário) predisposta, por exemplo, a individualizar a responsabilidade pelos casos de corrupção e os situar apenas na esfera da política, do Estado estrito[1], ignorando a simbiose com o mercado.
Tenha-se em conta, a esse respeito, a empresa Odebrecht. Maior construtora da América Latina e uma das 25 maiores do mundo, a Odebrecht tem um longo histórico de envolvimento com práticas de corrupção (no Brasil e no estrangeiro), a tal ponto de ter institucionalizado um departamento apenas para esse fim, o chamado “Departamento de Operações Estruturadas”. Como já escreveu o jornalista Mario Sérgio Conti, a empresa familiar, a Casa Odebrecht, corrompeu a ditadura civil-militar, a Nova República, o Brasil Novo do presidente Collor, espalhou as garras da ilicitude pelos governos FHC e cercou os do PT de delitos, fazendo, por fim, o país saber dos milhões e milhões de reais destinados a Michel Temer e o seu PMDB. Mas, eis a questão: no dia a dia, a corrupção leva as pessoas a odiarem o político ‘a’ ou ‘b’, mas nunca, por exemplo, o sr. Emílio Odebrecht, o patriarca que recebeu do seu pai (Norberto) a gestão da Casa e a tem repassado para o seu filho (Marcelo).
E tenha-se em consideração que, da Casa Odebrecht, são emitidas mensagens de alta afronta ao povo. É conhecida, nesse sentido, a reação da sra. nora do patriarca ao saber, pelo marido, que receberia a visita de um representante dos trabalhadores em sua casa e teria de sentar à mesa com ele: “se sujar minha toalha de linho, vou pirar. Saudações sindicais? Não mereço”. Mesmo assim, nas manifestações de insatisfação da população brasileira em relação à corrupção, não se observa nenhuma demonstração simbólica que consubstancie revolta contra os malfeitos da Casa Odebrecht, como a utilização de bonecos representando algum dos seus membros. Antes pelo contrário. Mesmo agora que até o Departamento de Justiça estadunidense afirma que a referida Casa perpetrou o “maior caso de suborno da história”, ela continua a ser adulada por seus pares e consegue ainda despertar admiração por sua “trajetória de êxito nos negócios”.
Mutatis mutandis, trata-se de uma situação que nos faz lembrar a dialética do senhor e do escravo, realçada por Hegel. O senhor aparece como a vida e o escravo como um ser para o outro, sendo comparado a uma coisa. O senhor é visto como para-si, enquanto o escravo é a ponte entre o senhor e o objeto de seu querer, sendo o escravo uma coisa de seu senhor. “[…] O que o escravo faz é justamente o agir do senhor, para o qual somente é o ser-para-si, a essência: ele é a pura potência negativa para a qual a coisa é nada, e é também o puro agir essencial nessa relação”[2].
Na ação do escravo, não há essência, pois se trata de pura negação, visto que o senhor ignora seu escravo; é uma relação unilateral, visto que é só o escravo quem reconhece o seu senhor. Este é consciência-de-si independente, tendo-se, por outro lado, o escravo como consciência reprimida para dentro de si.
Se, nas percepções cotidianas da população, a corrupção de grandes empresários não chama a atenção e não causa indignação, de outra parte, a cumplicidade das entidades do patronato em relação aos ilícitos dos seus afiliados salta aos olhos. Logo elas que são sempre tão atentas em apontar o dedo aos malfeitos na esfera estatal. No caso dos crimes da JBS, a empresa brasileira que é a maior processadora de carnes do mundo, assim como no tocante à Odebrecht, o silêncio das organizações empresariais expressa conivência.
A outra face da corrupção do mercado manifesta-se no modo como as chamadas “forças vivas” desse “ente” se comportam no tocante ao mar de lama no qual navega a organização criminosa, conforme a Procuradoria Geral da República, que aportou no governo brasileiro sob o comando de Michel Temer. Encontros na calada da noite em palácio com o próprio presidente, para pactuar delitos; malas de dinheiro em corridas pela rua e amontoadas em apartamentos; compra de apoio político no parlamento; concessão de foro privilegiado para evitar que aliados sejam presos, etc., constituem uma pequena amostra da marcha bandoleira que tomou conta da República no Brasil.
Por outro lado, a trapaça governativa, fraudulentamente, sem autorização da população através do voto, adota a agenda político-administrativa pretendida pelas forças do mercado, agenda que, no entanto, se fosse submetida a escrutínio eleitoral, é quase certo que não seria aprovada. Mas, quando se sequestra a democracia, governa-se sem que as decisões emanem da vontade dos representados e de sua autorização.
Diante de tal estelionato, o mercado, de modo geral, fecha os olhos à corrupção, abonando-a, em nome da adoção da sua agenda político-administrativa. No final das contas, é de negócios que se trata. Nada mais da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP) estimular manifestações e tomar parte nelas, como fez no processo de impeachment de Dilma Rousseff, em nome de uma moralidade sem moral. É sintomático também, a esse respeito, que os “mercados” fiquem eufóricos, com a bolsa subindo, todas as vezes que o governo Michel Temer, acossado pelas trapaças, consegue driblar a ética republicana, basicamente com “apoio negociado” no parlamento, e respira mais algum ar de sobrevida. Não se pergunte por onde andam as agências internacionais de classificação de risco que, entre 2015 e 2016, promoveram um autêntico terror político-econômico no Brasil com a emissão dos tais ratings prenunciando o apocalipse no país. Sabe-se agora, aqui e acolá, que os “gênios dessas lâmpadas” atuaram articulados naquela altura, e que, no presente, confabulam com o ministro da Fazenda, homem de confiança da alta finança, com este solicitando que eles se mantenham em silêncio (as evidências indicam que o ministro tem sido atendido).
Nesse cenário envolvendo corrupção e mercado, os chamados departamentos de compliance das empresas parecem ter mais um papel fictício e de peça de marketing do “politicamente correto”, com o discurso ético-moral em torno da gestão cumprindo mais a função de distinguir positivamente determinada empresa na esfera da concorrência (o mesmo vale para a “moeda” do discurso ambiental), sendo utilizado, portanto, como, digamos, uma espécie de “bem posicional”.
O imbróglio crise, corrupção e mercado no Brasil, de alguma forma, serve como ilustrativo empírico para evidenciar como é ilusória a tese que, no âmbito da história econômica, ficou conhecida como “concorrência perfeita”. Em rápidas palavras, até porque para as mentes versadas nos jogos do espírito as considerações podem ser percebidas cum grano salis, a tese da concorrência perfeita significa que é criada uma situação em que nenhum dos agentes que se encontra no mercado (consumidor, empresa) tem, isoladamente, poder suficiente para influenciar no preço das mercadorias. Dessa forma, seriam as empresas produtoras, em conjunto com os consumidores, que determinariam, no ambiente do mercado, a quantidade de produto a ser disponibilizada e o preço a ser seguido por todas as empresas do setor econômico em causa, dando origem, assim, a um fluxo natural de oferta e demanda em meio à relação entre os agentes partícipes da relação comercial.
Daí, decorreria que não haveria qualquer incentivo para levar a cabo preços diferentes dos praticados no mercado em dado momento, vislumbrando-se que, numa estrutura como essa (de “concorrência perfeita”), haveria uma generalização ideal de bem-estar, na medida em que se proporcionaria, equitativamente, benefícios a todos os agentes envolvidos nas atividades do mercado.
Parece evidente que, nas condições da economia contemporânea (de centralização, monopólios e formação de cartéis), a tese da “concorrência perfeita” soa bastante fantasiosa. No contexto brasileiro atual, com as águas do mar de corrupção tomando conta tanto do mercado como do Estado, é que essa suposta perfeição da concorrência afigura-se como “bastante imaginária” mesmo.
Considerando que a corrupção do mercado tem sido uma espécie de sujeito oculto da crise brasileira, enquanto a esfera política é execrada diariamente (nela, até mesmo porta-vozes do próprio mercado o são, mas não ele), talvez se cosiga entender o porquê de, nas percepções cotidianas da população, na sua revolta, ela não perceber as raízes da corrupção para além do Estado e dos políticos.
Assim, segue, por fim, voltando uma vez mais a Hegel, a dialética do senhor e do escravo. Aliás, em seu reverso, ela também parece refletir, em sentido trágico, a calamidade da crise brasileira e a falta de alternativas, na medida em que configura uma subjetividade dependente e indeclinável. Dependente, pois somente se firma e ganha existência na relação com outrem; indeclinável, visto que a identidade não se dissolve na objetividade do mundo do outrem. Uma situação sem saída aparente, posto que os problemas colocados pela realidade não são equacionados sem que, à luz do conhecimento, se tenha em conta a concreticidade de suas bases e se alcance as suas raízes originárias.
*Sociólogo – Universidade Federal da Paraíba.
1. Embora não a tenha presente de forma tout court, não ignoro a diferenciação feita por João Bernardo expressa mediante as categorias Estado Restrito e Estado Ampliado, para assinalar, com a tese do Estado Amplo, que, contemporaneamente, o Estado não se restringe à sua configuração clássica consubstanciada pelo Executivo, Legislativo e Judiciário, mas incorpora também as empresas e o seu modus operandi de reprodução ampliada (e diferente do que se possa supor, esta perspectiva não coincide com a ideia de ampliação do Estado em Gramsci). Ver, por exemplo: BERNARDO, João. Estado: a silenciosa multiplicação de poder. São Paulo: Escrituras, 1998; DOIN, José E. de Mello. Estado Amplo e Economia dos Conflitos Sociais: uma discussão acerca do roteiro teórico de João Bernardo, in: BLAJ, Ilana e MONTEIRO, John M. História & Utopias: Textos apresentados no XVII Simpósio Nacional de História. São Paulo: ANPUH, 1996.
2. Cf. HEGEL, G.W.F. Fenomenologia do Espírito. Tradução de Paulo Meneses com colaboração de Karl-Heinz Efken. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1992, p. 131.
Ilustração: foto de Jeso Carneiro (CC BY-NC 2.0)
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