Adeus à burguesia industrial
Gabriel Magalhães*
Os ruralistas – ou a fração primário-exportadora da burguesia em operação no país – têm mais um aliado de classe à Portaria Presidencial que restringe o combate ao chamado “trabalho em condições análogas à escravidão”: trata-se da fração industrial da burguesia operante no Brasil.
Com essa nota, a CNI escancara mais do que nunca que a dicotomia indústria versus agricultura de exportação, industrialismo versus agrarismo, como sinônimo de dualidade entre progresso e retrocesso, não passa de uma construção ideológica sem qualquer lastro na realidade efetiva da formação sócio-histórica do Brasil. Se até meados do século passado essa obstrução analítica poderia ser debitada à imaturidade do processo de desenvolvimento do capitalismo brasileiro, contemporaneamente essa obstrução não passa de malabarismo ideológico a fim de fomentar novas estratégias políticas de conciliação de classe.
O consenso em torno da contrarreforma da legislação trabalhista e, agora, em torno da “Portaria do trabalho escravo” despe completamente o setor industrial de qualquer dimensão civilizatória em pretensa contraposição ao setor primário-exportador. A burguesia como um todo, independentemente da fração e dos setores, tem fome por trabalho assalariado superexplorado.
A crise econômica atual fez recrudescer a natureza dilapidatória da burguesia no Brasil, de modo que a ossatura da regulação estatal às relações entre capital e trabalho – erigidas nos anos 30 e aperfeiçoada com a constituinte de 1988 – de funcional à acumulação do capital tornaram-se disfuncionais, devendo, por conseguinte, ser erodida no todo ou em parte.
A estrutura da regulação da exploração do homem pelo homem no Brasil vigente até então jamais foi capaz de superar/inibir a condição estrutural e crônica de sobreapropriação do trabalhador. Longe disso, impôs regras à superexploração de modo a evitar que a sanha dos burgueses de origem escravocrata por mais-trabalho tornasse o capitalismo brasileiro inviável ou impossível. A “consciência de si” do capital no Brasil, dos seus interesses estratégicos de auto-viabilização, entretanto, não foi produto da “mão invisível”, do mercado livre, mas sim imposta a fórceps – de fora para dentro – desde o Estado burguês dirigido por uma classe política dotada de autonomia relativa em relação às personificações do capital. Não à toa Vargas era visto como inimigo mesmo pelos industriais nos primeiros anos da CLT.
Durante 50 anos os trabalhadores rurais brasileiros foram relegados às condições de trabalho e de vida as mais iníquas possíveis, dado que aquela estrutura de regulação erigida nos anos 30/40 tornou viável não a reprodução do capitalismo nacional brasileiro, mas sim a reprodução do capitalismo dependente e subdesenvolvido. O “arcaísmo rural” além de ter alimentado a reprodução do todo com a injeção de moeda estrangeira, serviu de base para o desenvolvimento da “modernidade urbana”, ao fornecer as massas de despossuídos “livres como pássaros” (super)exploráveis pelo “progressista” e “civilizado” industrial urbano.
O compromisso com o atraso entre a fração industrial e a fração agro-exportadora sempre foi um continuum, de modo que as vicissitudes históricas provenientes das mudanças do sistema capitalista mundial sempre resultaram em repactuações regressivas, que engendraram modernizações conservadoras. Ao risco de que o proletariado urbano e os trabalhadores rurais questionassem os limites que tornavam viável o desenvolvimento do subdesenvolvimento, na perspectiva de um capitalismo efetivamente nacional e democrático, todas as frações burguesas se imantaram sob a liderança estratégica do grande capital monopolista estrangeiro e desfecharam o golpe empresarial-militar de 1964. 21 anos de sobreacumulação anabolizada com a política do arrocho salarial na cidade e a “(contra)revolução verde” no campo.
A força do movimento popular nos anos 80 conseguiu arrancar ao capital a constitucionalização de direitos que regulam a exploração da força de trabalho na cidade e, de forma inédita, no campo. A velha/nova estrutura de regulação vem sendo, entretanto, progressivamente dilapidada desde 1988, a despeito da honrosa luta dos trabalhadores. O golpe de 2016 representa uma avalanche regressiva do capital que busca não mais reparar topicamente a estrutura de regulação, mas, inversamente, contrarreformar no “atacado” aquela estrutura tornando-a funcional aos “tempos modernos”.
Sob a hegemonia do capital financeiro, o bloco de poder erigido nos anos 1990 agrega também em posição relevante o capital primário-exportador e, de forma subordinada, o capital industrial, o qual está fortemente imbricado às finanças – está financeirizado. Nestas condições, o caráter anticivilizatório e regressivo do capital no Brasil atinge o paroxismo: as concessões de décadas atrás tornam-se anacrônicas e disfuncionais; a “lei” tem que ser substituída pela “negociação direta” entre Davi e Golias; os parâmetros internacionais de trabalho degradante ou escravo tornam-se subversivos, bem como os servidores públicos concursados e imbuídos da tarefas de zelar pelas condições “normais” de superexploração são taxados de “subjetivos” e “ideológicos” (vide 1° parágrafo da nota da CNI).
O “Agro é Tec, o Agro é Pop” impulsiona a biogenética e a indústria de veneno – quase na sua totalidade estrangeira – e, simultaneamente, batalha no Congresso Nacional contra a atualização do índice de produtividade da terra, contra os direitos trabalhistas, a legislação ambiental e os direitos dos indígenas e quilombolas. Entretanto, o fosso entre a vida no campo e a vida na cidade não é ou não deve ser distante como fora no passado, dado que a burguesia industrial ou urbana milita por equalizar os índices de exploração. Os expedientes de ultra degradação do trabalhador não só estão presentes no universo rural, mas também na cidade, o que fica explícito nas listas de empresas sujas junto ao Ministério Público do Trabalho.
Definitivamente, a burguesia industrial que tolerou a estrutura de regulação da exploração do trabalho instituída nos anos 30 e repactuada em 1988 não existe mais. Esta hoje usa o seu prestígio perante a população – o qual ela goza dado que o setor financeiro, materializado no senso comum pelos bancos, tende a ser rechaçado pelo senso comum popular – para tentar soldar uma consciência ingênua que, pelo menos, se resigne diante da avalanche demolidora dos padrões mínimos de civilidade na periferia do capital.
Desta forma, o adeus a qualquer crença que perspective uma plataforma político-eleitoral capaz de resgatar a “consciência de si” da burguesia industrial é ingenuidade ou cinismo de quem se pretende, novamente, gerir a res publica nos limites da tacanhez de um capitalismo dependente e completamente integrado ao capital monopolista e financeirizado global. A burguesia industrial não está ébria e carente de sobriedade que viria a cargo de representantes de origem popular, de uma política econômica keynesiana ou neodesenvolvimentista. Ela é consciente de si e reflete seu atual patamar histórico de financeirização e da consequente necessidade de radicalizar a crônica e estrutural dependência frente ao capital monopolista estrangeiro e à superexploração do trabalho.
*Comitê Regional do PCB de Alagoas