EUA: Simulacro de democracia
por John Steppling
… país no qual 87% dos cidadãos de 18-25 anos (segundo pesquisa National Geographic Society/Roper Poll de 2002) não conseguem encontrar Irã ou Iraque num mapa mundi, e 11% não conseguem localizar os EUA onde nasceram e vivem, não é só “intelectualmente preguiçoso”. Mais acuradamente é país de imbecis, que podem ser enganados por qualquer um, para crer em qualquer coisa…” — Morris Berman
Não me lembro de outro momento em que a cultura dos EUA estivesse tão gravemente ferida por efeito do que faz a classe dominante. Hollywood só distribui filmes e shows de TV racistas, militaristas e de nacionalismo doentio, cada um mais pervertido que o outro. A mídia-empresa está completamente controlada pelas mesmas forças que controlam Hollywood. Os liberais capitularam completamente aos interesses de uma elite cada dia mais fascista e fascistizante. E não começou com Donald Trump.
Não há dúvidas de que o que hoje se vê nos EUA começou antes, no mínimo ao tempo de Bill Clinton, mas com certeza já aí estava nos anos finais da 2ª Guerra Mundial. A trajetória ideológica que se configurou sob os irmãos Dulles e o complexo industrial-militar – representante de interesses comerciais dos EUA e exibindo-se como aspirante a hegemon global. Mas depois da autodissolução da União Soviética, o projeto foi acelerado e intensificado.
Outro ponto daquele início foi o fiasco da Baía dos Porcos em 1960, ou o assassinato em 1961 pela CIA (e MI6) de Patrice Lumumba. Ou o discurso de Kennedy, em 1962, na American University, clamando pelo fim da Pax Americana. Sabemos o que aconteceu a Kennedy pouco depois. Pode ter sido qualquer desses incidentes. Mas foi o fim da URSS que demarcou, para a classe governante, a classe proprietária, que o último real obstáculo para a dominação global havia sido afastado. Nesse meio tempo, há o caso IrãContra, e a invasão do Iraque. Acho que, hoje, já ninguém se lembra do significado real e simbólico da URSS. Do que significou especialmente para o mundo em desenvolvimento.
Depois, o balão de ensaio seguinte, ação consciente, foi o ataque de Clinton à ex-Iugoslávia. Um teste, para a OTAN em expansão. E funcionou. A máquina de propaganda jamais tivera tanto sucesso como quando demonizou os sérvios e Milosevic. Depois, veio o 11/9.
E a bem azeitada máquina de Relações Públicas & Marketing cuspiu catarata infindável de retórica hiperpatriótica e de desinformação. O excepcionalismo norte-americano foi convertido em item de fé, com credibilidade absoluta. E quem não se lembra de Colin Powell e seus ares de personagem de cartoon pontificando na ONU? Quem discordaria dele? Não, com certeza, a classe branca liberal. E Hollywood subiu o cacife, quando se pôs a vomitar fantasias militaristas. Nenhum outro gênero jamais foi tão completamente dedicado a distribuir mensagens neocoloniais. Em 2007, quando Barack Obama anunciou que concorreria à presidência, a narrativa que dominaria os EUA já estava firmemente implantada. Em 2009, o maior sucesso de Hollywood foi Avatar (2009), fábula neocolonial que se casou perfeitamente com a reconquista da África, a que Obama se dedicava.Dan Glazebrook escreveu recentemente:
“O ano de 2009, dois anos antes do assassinato de Gaddafi, foi crucial para as relações EUA-África. Primeiro, a China ultrapassou os EUA como principal parceira comercial do continente; segundo, porque Gaddafi foi eleito presidente da União Africana. A significação desses dois eventos, que sinalizaram o declínio da influência dos EUA no continente, não poderia ser mais clara. Gaddafi liderava os esforços para unir politicamente o continente africano, aplicando quantidades importantes de petróleo líbio para dar vida ao seu sonho; e a China ia silenciosamente acabando com o monopólio do ocidente sobre os mercados exportadores e de investimentos financeiros. A África já não precisava chegar de pires na mão, implorando por empréstimos do FMI e aceitando quaisquer condições, por degradantes que fossem. Agora, a África podia negociar diretamente com a China – ou, mais fácil, com a Líbia – para obter investimentos. E se os EUA ameaçassem cortar o continente do grupo de seus mercados, a China compraria o que aparecesse, e agradeceria. A dominação econômica do ocidente sobre a África estava sob ameaça mais grave do que jamais antes.”
A resposta dos EUA foi acelerar a construção de bases, aumentar o AFRICOM e, passo seguinte, assassinar Gadaffi. Os sucessos desse período brotados em Hollywood foram Guerra ao Terror [ing. The Hurt Locker] e Batman, O Cavaleiro das Trevas [ing. The Dark Knight]. Em casa, Obama providenciava o OK para a militarização dos departamentos de polícia por todo o país. Noutro front, Danny Haiphong escreveu:
“O que pouco se discute é o quanto Obama trabalhou incansavelmente para proteger e atender os interesses do sistema das empresas de saúde privadas. Em 2009, colaborou com a indústria monopolista de seguros-saúde e seus contrapartes farmacêuticos, para reprimir a demanda pelo seguro saúde de único pagante. Naquele momento as condições pareciam maduras para um sistema de único pagante. O descontentamento popular com o Partido Republicano estava no auge. Um movimento relativamente organizado a favor do único pagante era representado por organizações como Healthcare Now. O Partido Democrata tinha maioria nas duas Casas do Congresso.”
Obama chegava ao poder no momento em que Wall Street derretia, na crise de 2008. Mas em vez de esperança e mudança, os eleitores só conseguiram que quase 5 trilhões de dólares voassem diretamente para o 1% mais rico da elite financeira. A pobreza e a desigualdade aumentaram todos os anos, sem parar, durante os governos Obama. O filme A Rede Social [ing. Social Network] estreou em 2010 e O Lobo de Wall Street [ing. Wolf of Wall Street], em 2013. Os dois foram grandes sucessos. A mensagem de Hollywood nunca mudou. E parte dessa mensagem é que a riqueza se autojustifica e é símbolo (e prova!) de virtude. Hollywood e os liberais de esquerda nos EUA gravitaram naturalmente na direção deles e aproximaram ainda mais dos mais ricos.
Obama atacou o Afeganistão, o Iraque, a Síria, a Líbia, o Sudão, a Somália e o Iêmen. E essa última ação é, provavelmente, a que adiante se provaria a mais significativa. A ação dos EUA de Obama, de armar, treinar e coordenar a agressão saudita (e agora a agressão já escalou para coturnos em solo!) contra o indefeso povo do Iêmen resultou na maior catástrofe humanitária em 50 anos.
Hoje, os EUA já criminalizam completamente qualquer dissidência, especialmente se a dissidência operar contra Israel.
Nada disso visa a criar corolários exatos entre a ação política e o produto de ficção. Trata-se, isso sim, de se servir da mensagem que Hollywood constrói em narrativa, para cinema e TV, para validar o excepcionalismo dos EUA. E para fazer, da crítica, nada além de fraco protesto marginal. Mas não é só Hollywood. Também o teatro, o romance e todas as artes.
O traço mais pronunciado de toda a cultura norte-americana hoje é o total apagamento da classe trabalhadora. Já não há Clifford Odets(que só completou o ginásio); foram substituídos por um fluxo ininterrupto de bem nutridos graduados e pós-graduados. Praticamente todos saídos das caras escolas privadas da elite. Hemingway e James Baldwin nem completaram o ginásio. Nem Tennessee Williams, filho de um caixeiro viajante que vendia sapatos. Até autores mais recentes, como Thomas Pynchon, deixaram a universidade (para se alistar na Marinha), mas o ponto é que a cultura de massas nos EUA hoje é atentamente fiscalizada. Dreiser abandonou a universidade, Twain foi aprendiz de tipógrafo. Outros como Faulkner, até frequentou a universidade, mas trabalhava ao mesmo tempo. No caso de Faulkner, como carteiro. A mesma profissão de Henry Miller e Charles Bukowski. Stephen Crane e Hemingway trabalharam como jornalistas – quando ainda era profissão honrada.
Os tomadores de decisão na cultura de massas estão predominantemente entrincheirados no etos do Partido Democrata (basta ver coisas como House of Cards, Madame Secretary (elogiada por O Globo, no Brasil [NTs], ou Veep).
Quem só assista aos noticiários de MSNBC ou FOX ou CNN [ou Globo, no Brasil (NTs)] só receberá a mais pura propaganda. Rachel Maddow fez toda uma carreira baseada no mais descarado papaguear do que o Comitê Nacional Democrata a mandasse ‘noticiar’, itens de ‘discussão’ e conclusões. Bill Maher, cujo programa está na HBO, não faz outra coisa que não seja propaganda pró-guerra.
Os noticiários de domingo e os programas de entrevista, jamais, em nenhum caso, ouvem qualquer especialista que ofereça qualquer risco de não dizer o que é pago para dizer. Nunca se ouviram nesses programas as vozes de Michael Parenti, ou Ajamu Baraka ou Glen Ford, Mike Whitney ou Ed Curtin ou Dan Glazebrook ou Stephen Gowans. Nada disso. Mas abundam nesses programas generais e políticos aposentados. Essa é a mídia-empresa que tem controle total sobre o que os cidadãos ouvem.
A expulsão da classe trabalhadora – da diversidade de classes – de todos os canais de mídia de massas foi até aqui o mais duro golpe contra a saúde da cultura norte-americana. Pode-se argumentar que a cultura sempre foi, na era moderna, território exclusivo da burguesia, e é verdade. Mas mesmo assim se veem mudanças muito claras. Os norte-americanos são hoje ativamente empurrados na direção de não pensar em termos de classes. Só sabem ver individualismo e questões ‘de identidade’. Querem mais mulheres dirigindo filmes… E elas nos dão renovadas versões de A hora mais escura [ing. Zero Dark Thirty].
Que a igualdade de gêneros é importante, todos os países socialistas em toda a história disseram, afirmaram e fizeram. Chávez cuidou de inscrevê-la na sua Constituição Bolivariana, logo no primeiro dia. O mesmo Chávez, que o arremedo de EUA-liberal de esquerda Bernie Sanders chamou de “ditador comunista morto”. O mesmo Chávez, que o arremedo de progressista feminista Hillary Clinton trabalhou anos a fio, todos os dias, para derrubar do poder.
Hoje os norte-americanos declaram-se chocados… eu disse chocados… ao saber que soldados dos EUA foram mortos no Níger. Culpa de Donald Trump. O que ninguém informa é que foi Obama quem mandou soldados dos EUA para o Níger, quando andava em clima de “pivô para a África”. Diga essa simples verdade histórica a alguém e espere respostas de absoluta desconfiança: você (não a mídia) só pode estar mentindo. A preocupação com soldados norte-americanos mortos no Níger é impressionante sinal de entorpecimento mental, pela hipocrisia e pela crença no excepcionalismo norte-americano. Preocupados com norte-americanos mortos? Claro. Mas por que ninguém se preocupa com os mortos por drones norte-americanos, num único ano, que seja? Podem escolher o ano.
“No governo Obama, o Comando dos EUA na África, AFRICOM, invadiu todos os países africanos, exceto Zimbabwe e Eritreia. AFRICOM submeteu à subserviência militar as nações africanas. Em 2014, os EUA conduziram 674 operações militares na África. Segundo informação que Intercept obteve em recente requisição nos termos da Lei da Liberdade de Informação, os EUA mantêm soldados hoje em mais de 20 países da África. – Danny Haiphong“
As pessoas vivem aterrorizadas, com medo de serem chamados agentes de teorias da conspiração. Nenhum termo pejorativo teve jamais poder mais fora de proporção. Há uma questão subjacente aí, que tem a ver com a posição do sujeito. Há uma versão de masculinidade que está já conectada com aceitar a versão oficial das coisas. Há algo de ‘sério, confiável, maduro, de verdadeiro homem’, em aceitar o que o poder declare… Questionar muito é ‘coisa de maricas’. Macho que é macho faz obedecer e obriga a não discordar… Concordo que seja realmente quase inacreditável, mas, por que, afinal, tão poucos perguntam publicamente por que já parece normal aos olhos das maiorias nos EUA assassinar pessoas em solo estrangeiro, ‘porque’ interessa aos EUA? Por que os ‘vazadores’ de verdades, os que trazem informação verdadeira e comprovada estão presos, quando não mortos e calados para sempre?
Por que há mais de 900 bases militares dos EUA pelo mundo? Por que, dada a miséria que se alastra nos EUA, precisamos manter arsenal moderno de armas nucleares, que custam trilhões? Afinal de contas, por que um orçamento de Defesa que nos custa mais de 4 bilhões por dia?
Os liberais de esquerda já não fazem tais perguntas. Muito menos, claro, perguntam se é verdade que os EUA armaram e estão armando jihadistas takfiri na Síria! Muito do que se rotula hoje nos EUA como “conspiração” não passa de ceticismo perfeitamente razoável – dada uma história que inclui COINTELPRO [programa de contrainteligência], Operation Northwoods, Gladio, MKUltra e Operation AJAX. Também é relevante, em termos da guerra que se aproxima contra *fake news* [notícias ditas falsas]. Uma ideia que Obama introduziu e agora em entusiástica operação orwelliana que fazem Facebook, YouTube e Google. No Reino Unido, Theresa May anuncia com orgulho que o governo DEVE controlar o que se pode e o que não se pode ver na internet. Censura em trajes de santo protetor.
E então se chega à OTAN e à Europa. Por que a OTAN, pode-se perguntar começar, existe? Quero dizer, nem a URSS existe mais. Ora, a resposta vem sendo construída há alguns anos e hoje se vê que sempre esteve aí, na extraordinária campanha de propaganda anti-Putin a que se dedicam os EUA.
A “ameaça russa” é hoje expressão que ninguém estranha e contra a qual já ninguém protesta. É como a anti-informação que se distribui pela mídia-empresa contra o Irã. Fato é que o Irã é muito mais democrático do que ‘ameaça global’. Na verdade, o Irã absolutamente não é ameaça global. Israel e Arábia Saudita, aliados dos EUA, esses sim, são, sim, ameaça global. Com o que chegamos de volta ao Iêmen e à espantosa destruição do Iêmen.
O mais pobre dos países árabes em todo o mundo, e agora local onde se alastra o maior surto de Cólera de toda a história, jamais foi ameaça a alguém, nunca, em tempo algum. Com certeza jamais foi ameaça aos EUA. Querem nos fazer crer que faz algum sentido apoiarmos a Casa de Saud? Na Arábia Saudita degolam homossexuais e bruxas. O líder do Exército do Reino da Arábia Saudita é um psicopata de 32 anos de nome Mohammed Bin Salman. Alguém poderia, por favor, explicar por que os EUA apoiam esse país e seu governo?
Ou a Venezuela. Os EUA moveram incontáveis campanhas contra essa nação soberana ao longo, já, de uma década. Plena democracia. Mas democracia desobediente. E não se ouvem vozes de indignação nos EUA?
Num país onde tantos preocupam-se com o destino de Harvey Weinstein, produtor troglodita de filmes, que literalmente todos sabiam que é abusador serial, há décadas… por que, diabos, o voto das mulheres venezuelanas não parece merecer qualquer respeito?!
Ou as mulheres da Líbia, do Haiti, de Porto Rico, ou, diabos, as mulheres de Houston nesse exato momento?! Pobres mulheres. Mas isso outra vez é questão de classe. Talvez o caso Weinstein sirva para que se construa alguma forma de proteção coletiva, talvez sindicalizando as mulheres, para que possam enfrentar o poder dos homens brancos ricos. Duvido, mas… quem sabe?
Infelizmente, duvido que aconteça, porque os liberais de esquerda hoje aplaudem a ideia de mulheres bombardearem vilas indefesas no Afeganistão no Iraque ou no Iêmen – exatamente como fazem os homens– , e porque tantas dessas atacadas por Weinstein foram e são empenhadas defensoras de Hillary Clinton e do Comitê Nacional Democrata e sempre viveram de adular figuras como Madeleine Albright.
“Abuso e violência sexuais nos EUA têm a idade do país. A cultura patriarcal norte-americana há muito tempo legitimou o abuso e a violência sexuais contra as mulheres – e contra as crianças –, tanto nos locais de trabalho, como em casa, num nightclub ou numa rua deserta. Nos primeiros tempos da nação, o hábito de abusar e violentar sexualmente era legitimado sob uma noção de “castigo”. Era artigo inscrito na Common Law anglo-norte-americana, que reconhecia o marido como patrão da sua [dele] casa e, a esse título, permitia que submetesse a sua [dele] esposa a castigos corporais que incluíam estupro, desde que não resultassem em lesão permanente. O abuso sexual foi institucionalizado no estupro de escravas africanas e depois afro-norte-americanas. Como observa a professora e especialista em legislação Adrienne Davis, “a escravidão nos EUA obrigava as mulheres negras a trabalharem em três mercados – produtivo, reprodutivo e da escravatura –, os três cruciais para a economia política.”
Basta ver a violência sexual que acontece dentro das Forças Armadas dos EUA (vide The Invisible War, de Kirby Dick). Mas não são os militares que se veem nos novelões de TV como SEAL Team ou Valor ou The Brave. O filme de Tom Cruise Feito na América [ing.American Made] é uma espécie de comédia sobre Barry Seal, que trabalhou como piloto para a CIA, e que mantinha vários cartéis na América do Sul. Ah, sim, nada mais cômico que esmagar um governo socialista na Nicarágua! Não há sequer um, que fosse, personagem que fale espanhol e não seja bêbado, sádico ou simplesmente idiota e incompetente. Esse revisionismo espantosamente racista é declarado “divertido e agitado” pelo Hollywood Reporter.
Os liberais de esquerda nos EUA sempre estarão alinhados com o status quo. Sempre. Não se incomodam se o status quo é fascista. E tudo bem em declarar barbaridades sobre abuso sexual de mulheres, desde que as posições ‘progressistas’ não obriguem nenhum liberal de esquerda norte-americano a lidar com a complexidade das mulheres em nações que os turistas não procura, como Iêmen ou Líbia ou Honduras. E o mesmo se passa com os departamentos de polícia nos EUA que assassinaram mais de mil homens negros só em 2015. E continuam a assassinar, além de também assassinarem mulheres negras. Provavelmente, mais histórias “divertidas e agitadas”.
Obama jamais se sentiu confortável falando sobre ou para negros e negras. Mas não teve dificuldades, recentemente, para repreender Colin Kaepernick por causa da dor que ele, Kaepernick, estaria causando. Muita dor, sim, suponho, para os brancos bilionários donos das equipes de futebol. O Tio-Tomismo, como dizia Glen Ford falando da fraca liderança dos negros, nunca foi maior. E esse é mais um crime que se pode depor, na maior parte, aos pés também de Barack Obama.
A Câmara de Deputados dos EUA aprovou por unanimidade que se apliquem sanções contra o Irã e a Coreia do Norte – que são absurdo e crime –, e ninguém percebeu qualquer abalo da escala Richter da mídia-empresa. O que fizeram Irã ou Coreia do Norte, algum dia, que tenha ferido algum norte-americano?
Mas Arábia Saudita e Israel temem mortalmente uma nação democrática como o Irã, e a influência democratizante que possa exercer na região. Então, o Irã é acusado de fomentar a instabilidade. Mas jamais alguém viu qualquer prova disso.
A Rússia é acusada de controlar a opinião pública nos EUA. Mas ninguém jamais viu qualquer prova disso.
Os EUA já nem se dão o trabalho de realmente atribuir algum crime à Venezuela, porque há uma sabedoria transmitida de pai para filho e lateralmente, segundo a qual a Venezuela é “o mal”. Como Castro foi o mal, como Gadaffi, como Aristide, como absolutamente qualquer um que manifeste independência.
Para a mídia-empresa de entretenimento, o mundo é feito de mocinhos e bandidos. Mike Pompeo, diretor da CIA, disse recentemente que sua agência tornar-se-ia “muito mais cruel” na luta contra os inimigos. Difícil imaginar o que se porão a fazer, de pior, considerada a história da CIA. O que pode ser “mais cruel” que entregas ‘especiais’ de prisioneiros, para serem torturados em buracos escuros e prisões clandestinas pelo mundo? Que matar famílias inteiras com drones tripulados à distância? Sem esquecer que foram os EUA e sua Escola das Américas que treinaram aqueles esquadrões da morte ativos na América Central. E disso Hollywood faz comédias.
Nunca, em evento algum, alguém protesta em Hollywood. Assim como as atrizes atacadas por Weinstein (e incontáveis outras) nada disseram, porque falar seria perder oportunidades importantes para as respectivas carreiras. Assim também ninguém protesta contra o racismo e a demonização de muçulmanos, sérvios, norte-coreanos ou russos, porque seria perder oportunidades importantes para as respectivas carreiras. A coerção é silenciosa e está em todos os lugares. É absoluta. Muitos atores e diretores simplesmente já nem pensam nela, e muitos pouco sabem além do que ouvem na mídia-empresa, pela TV, no NYTimes. Mas é compreensível.
As pessoas têm de comer, alimentar a família. O verdadeiro problema é que o poder consolida-se cada vez mais. A distribuição de filmes é monopolizada. Para a maioria dos norte-americanos, política externa ainda é buraco negro gigante sobre o qual pouco sabem. Diga a alguém na rua que Milosovic foi bom sujeito, socialista, democraticamente eleito, e é possível que riam na sua cara (e acontece também se você disser a mesma coisa para alguém da esquerda liberal, o que é ainda mais deprimente). Diga que a Rússia não ameaça nem EUA nem Europa, e também rirão na sua cara. Tente explicar o que é o imperialismo, e logo você receberá aquele olhar em que se misturam tédio e fúria. Regra que nunca falha é a seguinte: se os EUA atacam algum país ou figura de líder político, a única via segura é pesquisar sobre o país ou o líder e desmentir tudo que a mídia-empresa ‘noticie’ sobre o atacado (pense em Síria, Gadaffi, Aristide, Milosovic, Irã, Coreia do Norte). Os EUA não assaltam países que acolham sem reservas o capital ocidental.
Um traço que observei nos filmes de Hollywood é a quantidade espantosamente grande de autopiedade na maioria dos personagens. Autopiedade, propriedade automaticamente autoatribuída de tudo e muito sarcasmo.
O pessoal que produz e faz filmes e TV hoje, sem exceção, se autocensura. Mas opera lá um grupo de pensamento homogêneo, o qual se estende também ao modo como os personagens são concebidos. Os problemas dos brancos novos ricos é o molde que nunca falta. Poucos roteiros examinam o mundo externo e, quando acontece, é para mostrar mundos de perigos e ameaças. Sempre são locais não civilizados que padece por falta de orientação pelo Ocidente branco civilizado.
O filme que me vem à cabeça é Z – A Cidade Perdida (ing. The Lost City of Z, cujo cenário, vale lembrar, é a Amazônia [NTs]), que inclui todas as falas anticolonialismo politicamente corretas imagináveis, dentro de uma narrativa mesmo assim completamente colonialista). Mas é até pior que isso, ainda mais raso.
Tudo faz pensar em estúdio e produção, artifício: as discussões políticas, até quando acontecem numa nave viajando pelo espaço sideral, é como se diretores de empresa discutissem os lucros da abertura da Bolsa, quando acabar o fim-de-semana. E dado que Hollywood cada vez mais se assemelha a Wall Street, ou a alguma sede de grande empresa – todo o mundo lá criado sai de lá com essa mesma cara.
Falta imaginação. Perderam a capacidade de imaginar. “Ocidentais” são sempre os mesmos, com idênticos problemas, estejam em Santa Monica ou em New York. Mundos ‘imaginários’ são idênticos a prédios de empresas comerciais ou a reuniões ‘motivacionais’ em ilhas da fantasia, sempre as mesmas. São mundos criados por autores de menos de 30 anos, quase todos, e com certeza de menos de 40. São mundos ‘imaginados’ por gente que nada sabe sobre mundo algum, esse ou outros, imaginários.
Mas o que aquela gente realmente não sabe, não faz nem ideia, é o que seja ter de trabalhar para comer. O universo dos filmes norte-americanos é absolutamente deserto de qualquer vestígio, que fosse, de consciência de classe.
O enredo é super simplificado para alcançar público mais amplo. Tudo é sempre o mesmo, tem o mesmo jeitão. É impressionante. Até há bons filmes, boas séries, vindas do Reino Unido, sensibilidades diferentes, heterogêneas. Mas saídos de Hollywood, nada.
Como conferências de imprensa na Casa Branca, a ideia é não se afastar da mensagem ‘combinada’. Pretos falam como brancos (ou falam como caricaturas de pretos construídas por brancos), mulatos falam como brancos (ou falam como caricaturas de habitantes de periferias hispânicas construídas por brancos). E muçulmanos falam sempre como se estivessem mentindo e fossem perigosíssimos. Asiáticos parecem extraídos de seriados de Fu Manchu ou Charlie Chan.
Acho engraçado quando ouço alguém zombar dos clichês étnicos dos filmes dos anos 1940s, porque é tudo exatamente como hoje (basta ver a recente encarnação para TV da venerável franquia Star Trek, na qual os vilãos Klingon são escuros, vivem em espaçonaves escuras e emitem sons guturais de uma linguagem inventada que sugere algo de profundamente racista, como os retratos que os colonialistas pintavam dos habitantes da África negra).
A fixação nos crimes de Trump ajuda a não ver um sistema no qual o crime é a pedra fundamental. Clinton, Bush, Obama e Trump. São apenas a parte visível, que lá está para fazer operar o sistema. E o sistema é propriedade da classe governante. As pessoas votam como se votar significasse alguma coisa de muito importante, e votam em quem gostam. Não consideram qualquer tipo de política, porque a maioria dos norte-americanos nem faz ideia do que seja a política.
Trump é alvo óbvio, mas aí, num certo sentido, é que está o problema. EUA não se tornaram racistas e violentos da noite para o dia. As forças da insatisfação social foram-se acumulando durante décadas. Trump foi inevitável.
Seu analfabetismo basal é espelho da nação que nominalmente ele preside. Sua vulgaridade é a vulgaridade dos EUA, e assim também a misoginia e o racismo. Os mesmos conselheiros continuam a aconselhar e, se Hillary tivesse sido eleita, esses bandidos fascistas que aplaudem Trump mesmo assim estariam cometendo crimes de ódio. Trump deu-lhes poder? Até certo ponto, sim. Mas se uma vitória da Clinton teria provavelmente servido de motivação de outro tipo, e a mesma violência estaria acontecendo. É impossível manter, como país, o nível de desigualdade a que os EUA chegaram.
E com super furacões caindo sobre nós cada vez mais frequentemente, e com a biosfera em colapso, nada disso, afinal, fará qualquer diferença.
De fato, há algo de muito estranho, nesses incansáveis ataques contra Trump. É como se o sistema insistisse em espancar uma criança portadora de necessidades especiais. Onde estavam tanto ódio e tanta indignação moral, antes de Trump ser eleito? Quero dizer, os EUA de Trump, expressão que tenho ouvido muito, são simplesmente os EUA.
Os EUA temos mais de 2 milhões de homens e mulheres encarcerados. Líderes mundiais sem concorrentes. Mas a mortalidade infantil põe os EUA entre o 26º e o 51º lugar, dependendo de quem classifique. Não há saúde pública nesse país, nem sindicatos que proteja interesses dos trabalhadores, nem licença-maternidade, nenhuma educação gratuita.
Por que, diabos, as pessoas sentem-se tão especiais por aqui? Trump foi muito popular naquele estúpido show de TV. Claro que não poucos dos que hoje tanto se sentem ultrajados por esse bufão reacionário passaram horas diante da TV, assistindo àquele show. E oshow durou, me parece, 15 anos. Quem supunham que esse homem fosse?
Não há nada de errado em identificar e apontar os crimes do governo Trump. Mas há algo profundamente errado em não ver que o governo Trump é simples prorrogação da velha política que sempre dominou os EUA. Sim, em algumas áreas é pior. O meio ambiente, para começar. Mas, também aí, 47% da poluição mundial é provocada pelos militares. E os EUA têm mais militares que os dez países abaixo dele. E todos os presidentes, desde Bush pai, todos, aumentaram o orçamento dos militares. Esse pesadelo não começou no dia da posse de Donald Trump.
O problema é que ninguém gosta dele. E todo mundo gostava de Obama. E por isso Obama fez tamanho mal aos EUA. Trump é perigoso, não pelo que pense (porque praticamente não pensa), mas por causa de sua ignorância e fraqueza (e medo).
E dessa fraqueza resultou a facilidade com que acolheu o Pentágono. Toda a política exterior dos EUA está em mãos de um general cujo apelido é “Cachorro Louco”. Ninguém pode pretender que essa situação catastrófica seja culpa de um só homem. Não. A catástrofe é criação da história dos EUA.
Foto: Steve Baker (CC BY-ND 2.0)
Tradução do Coletivo Vila Vudu
DIÁRIO LIBERDADE – Fonte: Counterpunch