‘O debate sobre o racismo é a maior pólvora da luta de classes no Brasil’

imagemGabriel Brito

Correio da Cidadania

En­quanto o pacto so­cial faz água no Brasil, ma­ni­fes­ta­ções de um con­ser­va­do­rismo tão ca­ri­cato quanto de pas­sado de­plo­rável as­sustam o país e roubam tempo da dis­cussão po­lí­tica e econô­mica. En­quanto isso, o des­monte geral dos marcos pro­te­tivos dos tra­ba­lha­dores bra­si­leiros pro­mete atingir mais em cheio os se­tores das cha­madas mi­no­rias. Neste con­texto, en­tre­vis­tamos Dou­glas Bel­chior, uma das prin­ci­pais fi­guras do mo­vi­mento negro bra­si­leiro, que na se­mana pas­sada mar­chou pelas ruas do país.

“Agora per­ce­bemos a volta do Brasil a seu eixo mais co­ti­diano, ha­bi­tual, ou seja, a po­sição ul­tra­con­ser­va­dora, de ra­di­cal­mente ex­pli­citar a na­tu­reza da for­mação so­cial bra­si­leira, cuja ca­rac­te­rís­tica é es­cra­vo­crata. Vi­vemos avanços e ex­pe­ri­ên­cias tí­midas, e agora vi­vemos mais uma re­versão deste pro­cesso. É uma re­ação ao nosso avanço? Sim, também existe essa di­mensão. Mas acima de tudo é uma obe­di­ência à na­tu­reza do Es­tado bra­si­leiro e ao perfil das elites es­tú­pidas que o Brasil cons­ti­tuiu”, ana­lisou.

Além de contar um pouco de sua tra­je­tória, Bel­chior re­a­firma o ca­ráter ine­qui­vo­ca­mente ra­cista e es­cra­vo­crata da for­mação so­cial bra­si­leira, o que ainda re­flete nos ódios que pa­re­ciam ex­tintos de nossas re­la­ções co­ti­di­anas. Em sua visão, esse ra­cismo es­tru­tural voltou a ser pre­sente na chuva de crí­ticas à mi­nistra Luis­linda Va­lois, que re­quereu em pú­blico sa­lário acima do teto cons­ti­tu­ci­onal, a exemplo de tantas ou­tras au­to­ri­dades.

“Há outro pen­sa­mento que vale re­gis­trar: não po­demos co­brar de ne­gros e ne­gras uma moral e uma ética, ou uma co­e­rência, mai­ores do que co­bramos da so­ci­e­dade de modo geral. So­fremos muito com isso e tem a ver com o ra­cismo também. Por que a negra não pode errar, a negra não pode se equi­vocar po­li­ti­ca­mente, a negra não pode ser de di­reita, es­querda, centro, sem po­sição?”, pon­derou.

Dessa forma, Bel­chior, também pro­fessor da Une­afro, re­força o traço his­tó­rico que agora se volta rai­vo­sa­mente a se­tores que muito ti­mi­da­mente ti­veram suas de­mandas his­tó­ricas aten­didas, em es­pe­cial após a Cons­ti­tuição de 1988.

“A ana­logia que faço é ter­rível: po­lí­ticas so­ciais e de igual­dade de opor­tu­ni­dades, quando são ge­né­ricas, atingem menos o povo negro. Ao mesmo tempo, qual­quer re­ti­rada de di­reitos, mesmo ge­né­rica, atinge es­pe­ci­al­mente o povo negro, pois este é aquele que mais es­pe­ci­al­mente ne­ces­sita dos ser­viços pú­blicos e di­reitos bá­sicos”, re­sumiu.

A en­tre­vista com­pleta com Dou­glas Bel­chior pode ser lida a se­guir.

Cor­reio da Ci­da­dania: Qual o sig­ni­fi­cado da Cons­ci­ência Negra na atual con­jun­tura do Brasil e também do mo­mento his­tó­rico que ob­ser­vamos?

Dou­glas Bel­chior: Tem o sig­ni­fi­cado que sempre teve, de im­por­tância re­vo­lu­ci­o­nária, dado que o povo negro sempre foi his­to­ri­ca­mente a massa dos opri­midos no Brasil. No con­ceito de Steve Biko, re­vo­lu­ci­o­nário afri­cano, cons­ci­ência negra é a ideia da per­cepção dos ne­gros e ne­gras de sua con­dição e re­a­li­dade.

A partir disso, é união e ação con­junta para mudar a re­a­li­dade. O exer­cício da ne­gri­tude é a ação cons­ci­ente do povo negro em sua ta­refa de romper amarras e cor­rentes que nos oprimem até hoje. A to­mada de cons­ci­ência negra no caso bra­si­leiro é, atu­al­mente, o prin­cipal po­ten­cial em termos de luta de classes.

O de­bate sobre o ra­cismo no Brasil é a maior pól­vora da luta de classes do país. O re­co­nhe­ci­mento do ra­cismo como es­tru­tural das re­la­ções, de­si­gual­dades e con­flitos so­ciais no Brasil tem em seu bojo a grande pól­vora da luta de classes aqui.

Cor­reio da Ci­da­dania: Como você co­meçou a mi­litar pela causa negra?

Dou­glas Bel­chior: Vivi minha in­fância na di­visa de Itaim Pau­lista, úl­timo bairro de São Paulo, com Poá, Ita­qua­que­ce­tuba e Ferraz de Vas­con­celos, en­tron­ca­mento que di­vide quatro ci­dades. Acom­pa­nhei minha mãe no ati­vismo na Igreja Ca­tó­lica, na Co­mu­ni­dade Ecle­sial de Base. De­pois, na es­cola, par­ti­cipei de mo­bi­li­za­ções e grê­mios es­tu­dantis.

Adi­ante, en­trei em cur­si­nhos po­pu­lares e co­mu­ni­tá­rios para ne­gros e tive a cons­ci­ência des­per­tada. A partir daí, com 17, 18 anos, passo a fazer luta po­lí­tica no mo­vi­mento e sempre no campo da es­querda. Já tenho 39 anos, por­tanto, já temos duas dé­cadas de ca­mi­nhada.

Cor­reio da Ci­da­dania: Quais as grandes di­fe­renças que uma pessoa como você sentiu ao longo do tempo em re­lação a tra­ta­mento e opor­tu­ni­dades de vida, e o que mudou desde quando você co­meçou esta tra­je­tória até aqui? 

Dou­glas Bel­chior: A vida de uma pessoa negra num país ra­cista como o nosso é com­ple­ta­mente di­fe­rente de outra não negra. O negro aqui nasce con­de­nado a en­frentar muito mais bar­reiras, im­pe­di­mentos e ne­ga­tivas. Em todos os sen­tidos e quais­quer di­men­sões da vida. Uma pessoa branca, num país como esse, nasce com muito mais ca­minho aberto e pos­si­bi­li­dades de de­sen­vol­vi­mento.

É o que sinto desde sempre. E como sempre es­tudei – apesar da fa­mília muito pobre minha mãe sempre se de­dicou a de­mons­trar a im­por­tância do es­tudo – con­segui ocupar es­paços de des­taque ou me saí bem nos es­paços de tra­balho, desde meu pri­meiro em­prego.

Co­mecei a tra­ba­lhar muito cedo como co­mer­ci­ante de rua, ven­dendo ge­la­dinho na pas­sa­rela da es­tação de trem de Ferraz, com 8 anos. De­pois tive banca de doce na di­visa de Poá com Ferraz, na Vila Ro­mana. Com 13, fui para uma em­presa, guarda mirim de uma fá­brica. E era o único negro, pra­ti­ca­mente cri­ança, que es­ta­giava no de­par­ta­mento de pes­soal da fá­brica.

Sempre me ar­ti­culei e de­sen­volvi bem, lia muito, e assim con­se­guia me des­tacar no tra­balho. Acu­mulei ta­refas e fun­ções que muitas vezes as pes­soas du­vi­davam. Che­guei a pre­sidir o clube da em­presa, res­pon­sável pelos con­vê­nios que se fa­ziam com lojas de roupas, de es­porte, como be­ne­fí­cios aos as­so­ci­ados. Muitas vezes as pes­soas pro­cu­ravam o clube para fazer con­vênio e du­vi­davam que era eu o res­pon­sável.

Enfim, eu sempre senti a ne­gação. Apesar de mos­trar na prá­tica a ca­pa­ci­dade, a des­con­fi­ança sempre existe. É assim até hoje, na vida de todos os ne­gros do Brasil. Nós temos que provar no mí­nimo duas vezes o que somos, provar mais do que qual­quer um pre­cisa, para sermos vistos, en­ten­didos e res­pei­tados. Não tenho ne­nhuma dú­vida de que se fosse branco, com a tra­je­tória e acú­mulo de ex­pe­ri­ência que tenho, além da atu­ação que de­sen­volvi ao lado de ou­tros com­pa­nheiros e com­pa­nheiras de mo­vi­mento negro, es­ta­ríamos todos em outro pa­tamar, em ou­tros lu­gares, com outro nível de or­ga­ni­zação, poder e con­dição de re­pre­sen­ta­ti­vi­dade.

Mas ser negro fecha portas, li­mita atu­a­ções e a pró­pria vida.

Cor­reio da Ci­da­dania: Como en­xerga a atual as­censão de mo­vi­mento ou ao menos ex­pres­sões ul­tra­con­ser­va­doras na so­ci­e­dade bra­si­leira? Trata-se de uma re­ação tardia, exas­pe­rada, à ocu­pação do es­paço do de­bate pelas ditas “mi­no­rias”? 

Dou­glas Bel­chior: Vi­vemos agora um pro­cesso his­tó­rico que sempre existiu. Desde a in­vasão eu­ro­peia e início do es­tupro his­tó­rico de nossa terra, pri­meiro no ge­no­cídio in­dí­gena e de­pois das po­pu­la­ções afri­canas. Destes 517 anos, foram 388 de es­cra­vidão mer­cantil, três quartos da his­tória. E não con­si­de­ramos as per­ma­nên­cias de tal pe­ríodo neste úl­timo quarto de his­tória.

Ima­gi­nemos que de­pois da es­cra­vidão vi­vemos três dé­cadas de tran­sição, em que o poder ainda era ra­di­cal­mente cen­tra­li­zado nas mãos de fa­zen­deiros e, no trans­correr da his­tória, vi­vemos mais duas di­ta­duras mi­li­tares. Ou seja, as ten­ta­tivas de­mo­crá­ticas foram muito curtas. E mesmos nesses pe­ríodos de ten­ta­tiva de ex­pe­ri­ência de­mo­crá­tica – porque não con­si­dero que se tenha vi­vido de­mo­cracia em ne­nhum mo­mento – a si­tu­ação da po­pu­lação negra sempre foi muito ruim, a per­ver­si­dade das elites sempre foi muito grande.

Agora per­ce­bemos a volta do Brasil a seu eixo mais co­ti­diano, ha­bi­tual, ou seja, a po­sição ul­tra­con­ser­va­dora, de ra­di­cal­mente ex­pli­citar a na­tu­reza da for­mação so­cial bra­si­leira, cuja ca­rac­te­rís­tica é es­cra­vo­crata.

Vi­vemos avanços e ex­pe­ri­ên­cias tí­midas, e agora vi­vemos mais uma re­versão deste pro­cesso. É uma re­ação ao nosso avanço? Sim, também existe essa di­mensão. Mas acima de tudo é uma obe­di­ência à na­tu­reza do Es­tado bra­si­leiro e ao perfil das elites es­tú­pidas que o Brasil cons­ti­tuiu. Tanto pelas altas elites pro­pri­e­tá­rias como pela classe média ide­o­lo­gi­ca­mente do­mi­nada pelos in­te­resses e também me­di­o­cri­dade da re­fe­rida elite. Pois esta é es­tú­pida, rei­tero, não acre­dita no país e por isso é en­tre­guista. Abaixo dela, uma classe média que tam­pouco tem in­te­resse na cons­trução do país como nação, para além dos seus in­te­resses par­ti­cu­lares.

O Brasil é fruto de uma ex­pe­ri­ência co­lo­nial e es­cra­vo­crata, das mais per­versas, senão a mais per­versa e du­ra­doura da his­tória da hu­ma­ni­dade, e é a partir de tal lugar que surge o Brasil que co­nhe­cemos. Assim, não há ne­nhum ele­mento da so­ci­a­bi­li­dade bra­si­leira des­pro­vido deste traço fun­da­mental e ca­rac­te­rís­tico, que con­tinua sendo o da es­cra­vidão. No en­tanto, ja­mais foi as­su­mido como pres­su­posto da nossa exis­tência.

Cor­reio da Ci­da­dania: Como en­xerga a dis­puta pelo ima­gi­nário da pe­ri­feria, desde evan­gé­licos até grupos de es­querda e talvez mais re­cen­te­mente di­reita? O que po­deria, de fato, sa­tis­fazer essa par­cela da po­pu­lação ex­cluída do uni­verso de po­lí­ticas pú­blicas mais vir­tu­osas, onde os ne­gros são ampla mai­oria?

Dou­glas Bel­chior: É uma dis­puta ide­o­ló­gica que abarca toda a so­ci­e­dade. Não é nova, apesar de ser óbvio que há mu­danças em al­guns as­pectos. Novas nar­ra­tivas, ver­tentes, grupos po­lí­ticos que se des­tacam vez ou outra. Mas é a mesma dis­puta de sempre.

Desde o fim da es­cra­vidão e início da Re­pú­blica, há a cons­trução de ins­ti­tui­ções cuja ta­refa prin­cipal é manter o poder, a opressão e o con­trole em re­lação à massa da po­pu­lação, de mai­oria negra. E são ins­ti­tui­ções que não ga­rantem o con­trole pela força ob­je­tiva, como na es­cra­vidão, mas também pelo con­trole do ima­gi­nário, das ideias, da opi­nião, enfim, da ide­o­logia.

As ins­ti­tui­ções se formam com esse fim. A es­cola é pro­fun­da­mente di­ri­gida para tal ta­refa, as re­li­giões – não só uma ou outra – têm cum­prido esse papel, a nossa cul­tura sempre fez da pró­pria fa­mília um es­paço de for­mação con­ser­va­dora. E assim che­gamos às ins­ti­tui­ções do pró­prio Es­tado, es­paços po­lí­ticos, le­gis­la­tivos e ju­di­ciá­rios, que re­pro­duzem e for­ta­lecem tal ideário.

No campo pri­vado, temos o es­paço para o sur­gi­mento e cres­ci­mento de uma me­gain­dús­tria de pro­dução de in­for­mação, de grandes mí­dias, além das in­dús­trias da cul­tura e do en­tre­te­ni­mento. Tudo so­mado forma a ca­beça das pes­soas e a dis­puta men­ci­o­nada na per­gunta sempre se deu. Daí que nosso povo sempre teve men­ta­li­dade con­ser­va­dora, não é algo sim­ples falar da men­ta­li­dade de um povo que teve 400 anos de es­cra­vidão e vive a per­sis­tência de tal ló­gica, mesmo no pós-es­cra­vidão. Vi­vemos o fruto dessa si­tu­ação toda.

A agres­si­vi­dade do dis­curso de agora as­susta um pouco porque há coisas que nunca foram ditas antes. Mas a ló­gica da pa­lavra não dita sempre foi posta em prá­tica.

Cor­reio da Ci­da­dania: Di­ante disso, como ana­lisa as inú­meras exor­ta­ções de certa es­querda por um “es­tado de­mo­crá­tico de di­reito” que teria sido que­brado com o im­pe­a­ch­ment de Dilma. Um go­verno dito pro­gres­sista que sob sua gestão viu do­brar a po­pu­lação car­ce­rária de­veria falar nesses termos?

Dou­glas Bel­chior: Se a gente ima­ginar o Brasil por uma linha his­tó­rica, vamos per­ceber que foram poucos e curtos os es­paços e mo­mentos de ten­ta­tivas de ex­pe­ri­ência de­mo­crá­tica. Não vi­vemos de­mo­cracia, mas mo­mentos onde se tentou tal ex­pe­ri­ência. Acon­teceu um pouco antes da di­ta­dura dos anos 30, de­pois nos anos 50, e agora na fase pós-1985.

Por­tanto, ten­ta­tivas. A ponto de só con­se­guirmos avançar al­guns passos mais ex­plí­citos, em termos de ga­ran­tias cons­ti­tu­ci­o­nais, em 1988. Agora, so­fremos um golpe, justo no mo­mento em que os se­tores po­pu­lares foram au­da­ci­osos a ponto de co­locar em prá­tica – mesmo com muitas li­mi­ta­ções e par­cimônia – al­guns as­pectos da Cons­ti­tuição de 88.

É um equí­voco chorar a de­mo­cracia der­ra­mada. Ela não existia, não en­chia o copo. Não dá nem pra chorar o leite der­ra­mado porque não tinha leite no copo. É a ana­logia que faço. Nossa ta­refa his­tó­rica é cons­truir um am­bi­ente de de­mo­cracia real.

Cor­reio da Ci­da­dania: Sobre o atual go­verno, o que pensa do epi­sódio de Luis­linda Va­lois e sua rei­vin­di­cação sa­la­rial acima do teto cons­ti­tu­ci­onal? Acre­dita que houve opor­tu­nismo em certas crí­ticas, in­de­pen­den­te­mente da ava­li­ação que se faça da ati­tude da mi­nistra?

Dou­glas Bel­chior: A Luis­linda Va­lois é equi­vo­cada po­li­ti­ca­mente. Ela tem uma po­sição da qual dis­cordo, não re­pre­senta o his­tó­rico de luta e ela­bo­ração do mo­vi­mento negro. Ela não é uma pessoa re­pre­sen­ta­tiva de tal seg­mento da so­ci­e­dade, em termos de pro­postas de­fen­didas e for­mu­ladas por esse setor or­ga­ni­zado. Não nos re­pre­senta e nunca re­pre­sentou. Mesmo antes de ocupar o atual cargo.

Ela é uma mu­lher negra e por isso me­rece nosso res­peito. Mas equi­vo­cada po­li­ti­ca­mente, como dito aqui. Sendo equi­vo­cada, for­mulou um pe­dido in­feliz. Mas o fato de ser negra trans­formou tal equí­voco. Se com­pa­rado com o equí­voco dos brancos que ocupam postos si­mi­lares, foi co­lo­cado numa pro­porção muito maior.

É claro que as crí­ticas que re­cebeu por seu pleito e pelos erros de suas po­si­ções po­lí­ticas são cor­retas. Porém, al­gumas crí­ticas car­re­gavam no pre­con­ceito, por ra­zões ób­vias. E é ver­dade que houve também gritos mais altos e mais re­per­cussão que em re­lação a erros co­me­tidos por brancos. Vimos que há muitos ser­vi­dores e cargos co­mis­si­o­nados que re­cebem muito acima do teto. E ela quis se igualar a pes­soas que co­metem erros e re­cebem mais do que a le­gis­lação propõe. Ela não é nem me­lhor nem pior que os ou­tros, mas é tra­tada como pior por ser negra. Sem dú­vida al­guma o ra­cismo apa­receu.

Ainda a res­peito, há outro pen­sa­mento que vale re­gis­trar: não po­demos co­brar de ne­gros e ne­gras uma moral e uma ética, ou uma co­e­rência, mai­ores do que co­bramos da so­ci­e­dade de modo geral. So­fremos muito com isso e tem a ver com o ra­cismo também. Por que a negra não pode errar, a negra não pode se equi­vocar po­li­ti­ca­mente, a negra não pode ser de di­reita, es­querda, centro, sem po­sição? Ne­gros e ne­gras são pes­soas que têm todo o di­reito do mundo de se equi­vocar, sendo apenas iguais aos ou­tros nesse sen­tido.

A dis­puta ide­o­ló­gica se dá em todos os campos da so­ci­e­dade, in­clu­sive entre ne­gros. Assim como não é sim­ples co­brar cons­ci­ência de classe de tra­ba­lha­dores po­bres, para que se sin­di­ca­lizem ou com­pa­reçam a ma­ni­fes­ta­ções por di­reitos, en­tende? Assim como não é tran­quilo exigir que todas as mu­lheres te­nham cons­ci­ência de gê­nero, do pa­tri­ar­cado his­tó­rico e devem estar juntas na luta contra a opressão. Não é nada fácil.

Nós somos alvos de um fu­racão per­ma­nente, uma ava­lanche ide­o­ló­gica, que forma nossas ca­beças e opi­nião, e muitas vezes nos fazem re­pro­duzir o pen­sa­mento do opressor. Por­tanto, não somos muito di­fe­rentes dos de­mais seg­mentos. Muitas vezes as crí­ticas aos ne­gros, por terem po­si­ções equi­vo­cadas, são exa­ge­radas. E se devem ao ele­mento ra­cial.

Cor­reio da Ci­da­dania: Pra fi­na­lizar, o que esse go­verno e Con­gresso, com suas po­lí­ticas com­ple­ta­mente vol­tadas ao mer­cado e em es­pe­cial aos grandes ca­pi­tais pri­vados, sig­ni­ficam em termos prá­ticos para o povo bra­si­leiro de modo geral, e aos ne­gros mais em par­ti­cular, dado que suas des­van­ta­gens so­ci­o­e­conô­micos já estão am­pla­mente de­mons­tradas? 

Dou­glas Bel­chior: É óbvio que numa so­ci­e­dade es­tru­tu­ral­mente ra­cista como a nossa, em que a po­breza, as de­si­gual­dades e vi­o­lência atingem so­bre­ma­neira a base so­cial da pi­râ­mide, ma­jo­ri­ta­ri­a­mente negra, qual­quer po­lí­tica que tenha ob­je­tivo de di­mi­nuir di­reitos vai atingir des­pro­por­ci­o­nal­mente a po­pu­lação negra.

É exa­ta­mente o que acon­tece. A ana­logia que faço é ter­rível: po­lí­ticas so­ciais e de igual­dade de opor­tu­ni­dades, quando são ge­né­ricas, atingem menos o povo negro. Ou seja, ini­ci­a­tivas po­si­tivas quando não fo­cadas no negro tendem a atendê-lo menos. Por quê? Porque vai atingir pri­meiro os brancos po­bres, pois há uma hi­e­rar­quia ra­cial que es­ta­be­lece a de­si­gual­dade de acesso a opor­tu­ni­dades.

Ao mesmo tempo, qual­quer re­ti­rada de di­reitos, mesmo ge­né­rica, atinge es­pe­ci­al­mente o povo negro, pois este é aquele que mais es­pe­ci­al­mente ne­ces­sita dos ser­viços pú­blicos e di­reitos bá­sicos. Isto é, quando a ini­ci­a­tiva po­lí­tica é boa o negro é o úl­timo a usu­fruir dela. E quando é ruim os ne­gros são alvo pre­fe­ren­cial e ime­diato. Essa é a sín­tese do Brasil.

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Ga­briel Brito é jor­na­lista e editor do Cor­reio da Ci­da­dania

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